Visão, audição e o bebê de um mês

O mundo sensorial que cerca o bebê muda radicalmente do primeiro mês em diante. Ele, que nasceu altamente dependente do tato e do olfato, vai passar por um grande desenvolvimento da visão e da audição nesse período. Estes dois são os sentidos mais importantes para todo grande primata diurno, daí a importância das mudanças que ocorrem no 2º mês de vida.

A audição dos bebês já nasce bem desenvolvida, mas está praticamente igual à do adulto a partir da 6ª semana de vida. É nesse período que o bebê realiza sua primeira audiometria, ou teste da orelhinha. O pediatra ou fonoaudiologista irá checar se as diferentes frequências de som já são percebidas pelo ouvido, mesmo em volume baixo. Isso é um indicador da atividade da cóclea; sons mais agudos ativam as células sensoriais que ficam na entrada da cóclea; sons mais graves ativam as células sensoriais do fundo desse órgão.

O som atinge o pavilhão (1) e é direcionado ao tímpano (2), nos ossículos do ouvido médio sofre amplificação até chegar à cóclea (3). As células sensoriais no início da cóclea são sensiveis a sons agudos, as do final aos sons graves. Essa informação é levada ao cérebro pelo nervo auditivo (4) (Imagem: Schweiz)

Já a visão ainda tem um longo caminho a percorrer e só estará semelhante à visão de um adulto por volta do 8º mês. Mesmo assim, os progressos do 2º mês de vida são marcantes. Enquanto no primeiro mês o bebê tinha dificuldade em coordenar a movimentação dos dois olhos simultaneamente, o que frequentemente o deixava com um olhar vesgo, agora a coordenação é maior e ele passa a seguir objetos com o olhar. Paralelamente, o campo de foco começa a ultrapassar os 20 cm iniciais, permitindo que o bebê comece a enxergar objetos mais distantes. Isto se deve ao amadurecimento dos músculos oculares, tanto os que movimentam o globo como um todo quanto o que traciona o cristalino.

Anatomia de um olho infantil. (Imagem: oculos.blog.br)

Outra mudança é o amadurecimento da retina. A vitamina A, que era até proibida em produtos estéticos para a gestante, agora pode ser receitada pelo pediatra ao bebê. Essa vitamina irá permear os bastonetes da retina na forma de retinol e melhorar a visão com pouca luz, entre outras funções da vitamina A na pele e mucosas. A percepção de cores primárias pelo bebê irá melhorar, o que pode ser notado pelo crescente interesse pelo móbile, por exemplo, devido a essas mudanças biológicas.

 

Instinto, aprendizado e o recém nascido

Uma das primeiras coisas que todo pai nota em seu bebê é a capacidade de agarrar. Todo bebê segura firmemente com as mãos qualquer coisa que seja posicionada na palma de sua mão. Este comportamento já está presente na hora do parto, mesmo em prematuros, e se mantém até o segundo mês. É um excelente candidato àquele comportamento instintivo, sem nenhum componente aprendido. Só que não.

O reflexo de agarrar emociona os pais pela interação e tem bases evolutivas fundamentais

O reflexo de agarrar emociona os pais pela interação e tem bases evolutivas fundamentais

Os etólogos clássicos descreviam dois comportamentos extremamente simples: o padrão fixo de ação e os atos reflexos. O padrão fixo de ação é a resposta a um determinado fator ambiental conhecido como estímulo-sinal que, depois de desencadeado, não depende mais do ambiente. Ou seja, ao perceber o estímulo-sinal o animal, qualquer que fosse, dispararia o comportamento e seria incapaz de modulá-lo e de interrompê-lo, independente do que ocorresse ao redor. Padrões fixos de ação eram entendidos como comportamentos altamente estereotipados e invariáveis entre indivíduos. Parece combinar com o comportamento de agarrar.

Nos anos 50 a etologia passou por uma mudança de paradigma que propunha que nenhum comportamento é totalmente instintivo nem totalmente aprendido. Na verdade essa distinção é totalmente impossível. Então o que poderia não ser instintivo em se agarrar?

Agarrar-se é um comportamento adaptativo para os bebês de tempos passados, quando não havia carrinhos dobráveis, bebês-conforto ou moisés. Ser levado com a mãe dependia do filhote se agarrar aos pelos dela. Pelos estes que nem mais existem. Como o comportamento de agarrar não causava nenhum prejuízo, a seleção natural não se deu ao trabalho de extirpá-lo do repertório dos nossos bebês. Ele permanece lá como um dente do siso ou um apêndice.

Mesmo assim, o agarrar-se passa por aprendizado. Nos primeiros dias após o parto ele é forte, mas desajeitado, à maneira de alguém puxando outro pelos cabelos. Com o passar das semanas torna-se mais coordenado, com os dedos e o polegar formando um cilindro e tendo maior firmeza, à maneira como seguramos uma lata. A força preênsil vai reduzindo com a aproximação do terceiro mês de vida até que o reflexo desaparece.

O mesmo pode ser dito do reflexo de sucção. É certo que os recém nascidos já têm o costume de sugar o que se lhes ponha na boca. No entanto, qualquer pessoa que já acompanhou uma mãe sabe da dificuldade do aprendizado da chamada pega. O recém nascido frequentemente não sabe ao certo como abocanhar o seio da mãe, surgindo dificuldade em alimentar-se e dor à mãe. É só a prática e a capacidade de aprendizado dos nossos bebês que permite o aumento na eficiência da mamada.

Nem instinto, nem aprendizado. Todo comportamento é uma mescla desses dois componentes indissossiáveis. A grande riqueza do comportamento animal reside na certeza dos comportamentos adaptativos, mas também na flexibilidade que eles mesmos têm para responder rapidamente ao ambiente.

A íbis criativa

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A secretária recém contratada enfiou a cabeça dentro do consultório interrompendo a consulta anterior da doutora, que atendia uma poliqueta fêmea afeita a sexo grupal, numa orgia chamada epitoquia.

-Doutora, o pássaro que vai entrar na próxima consulta está rasgando suas revistas.

-Por favor, não me interrompa. A sessão de terapia é um momento muito íntimo entre profissional e paciente. Deixe-a rasgar o que quiser.

A íbis careca e criativa. Fonte: arkive.org

Momentos depois a doutora abre a porta e deixa passar a poliqueta. A íbis que era a próxima cliente tinha ao seu redor um conjunto de dobraduras feitas com diversas páginas de revistas. Os origamis, todos representando outras íbis, desenhavam no chão formações diversas.

-Vamos entrando, Dona Geronticus, a senhora é a próxima. – A doutora acompanhou a ave totalmente sem penas na cabeça vermelha semelhante à de um urubu caminhando com deselegância para dentro de sua sala e se empoleirando no encosto do divã. – O que a traz aqui hoje, minha cara?

– Doutora, será que tenho uma fixação na fase anal? Adoro inventar coisas diferentes na hora de voar, mas ninguém reconhece a genialidade do que eu crio. Tenho uma dependência de reconhecimento.

-Ninguém reconhece sua genialidade. Fale mais sobre isso.

-Bom, as íbis carecas sempre voam em formação de V. Me parece que todas nós nascemos assim e só sabemos fazer isso. Não nos questionamos, não damos asas à nossa imaginação. Só papagaiamos um padrão. Odeio isso. Eu prefiro criar! Prefiro inventar formações novas. Toda vez que chega minha hora de assumir a frente do bando eu dirijo as outras meninas para fazermos os mais lindos padrões nos céus. Passei pela fase das figuras, desenhando corações, trevos, ondas, casas. Passei pela fase dos emoticons, com as mais diferentes carinhas. Passei pela fase das mensagens, voávamos escrevendo “papagaio come milho, periquito leva a fama” ou “de grão em grão a galinha enche o bico”. Adoro inventar formações diferentes. O problema é que minhas companheiras de bando ficam rechaçando minha criatividade, me inibindo. Não aguento mais essa vida burocrática de só voar em V, mas se elas não querem colaborar, não consigo dar vazão à minha arte! Me ajude, doutora. Como posso abrir a mente delas?

-De fato, a senhora é muito inventiva e reconheço o mérito nisso. Mas já considerou que talvez exista uma razão de ser para todas as outras íbis só voarem no tradicional V? Talvez fosse melhor direcionar sua criatividade para outras áreas.

-Mas por que haveria uma vantagem específica em voar em V? Por que não em círculo ou em X?

-Olha, pesquisadores sugerem há décadas que esteja relacionado à economia de energia e ao aproveitamento do vórtex criado na ponta da asa da ave ao lado, mas nunca foi possível medir se as aves conseguem de fato se posicionar e abanar as asas da forma realmente mais econômica. Seria necessário usar sensores de posição nas aves que seriam grandes e pesados demais para não atrapalhar no próprio voo. A menos que uma íbis resolva estudar isso.

-Doutora, que grande ideia. Sempre quis me tornar uma cientista. Elaborar as mais audaciosas hipóteses e os mais belos teoremas matemáticos de excelência em voo. Seria perfeito! – Sorriu a ave com seu bico adunco e um leve arrepio nas coberteiras atrás da cabeça.

Várias espécies, como os gansos acima, voam em V. Fonte: sharing the planet with animals.

-Não tente mudar a forma de voo, a formação em V aparentemente proporciona uma economia energética razoável, por isso outras formações não são feitas em geral. Não é falta de criatividade, é um ótimo alcançado empiricamente. Nosso horário acabou. Posso ajuda-la em algo mais?

-Não, foi ótimo ter vindo. A senhora deu uma excelente ideia. – E lá se foi volitando a íbis, com uma nova perspectiva, ignorando o elevador e saltando janela a fora. Na antessala do consultório.

A secretária correu até a janela. – Passarinho estranho, hein doutora. Todos os seus pacientes são assim?

-Minha cara, de perto ninguém é normal. Nem a senhorita! E ela não é um passarinho, é uma ave. Uma íbis criativa.
Portugal, S., Hubel, T., Fritz, J., Heese, S., Trobe, D., Voelkl, B., Hailes, S., Wilson, A., & Usherwood, J. (2014). Upwash exploitation and downwash avoidance by flap phasing in ibis formation flight Nature, 505 (7483), 399-402 DOI: 10.1038/nature12939