A fala e o bebê de nove meses
Primeiramente quero deixar claro que um bebê de nove meses dificilmente falará de verdade. Eles balbuciam, gritam, gemem, reclamam, choram. Mas falar mesmo não falam. Há quem diga que falam sim, nós é que não entendemos. No momento considerarei “falar” como a produção de sons compreensíveis por um ouvinte minimamente dentro do padrão de regras de um idioma. Portanto, bebês de nove meses provavelmente não falam ainda. O que discutirei nesse post é o desenvolvimento dessa fala.
Assim que inflam seu pulmão pela primeira vez, os bebês já são capazes de produzir sons. E aliás o fazem quase sempre, abrindo o primeiro de muitos berreiros logo após o parto. Eles ainda levarão alguns meses para perceber a própria capacidade de emitir sons. Com meu bebê aconteceu aos três meses, quando ele gritava e se assustava com o grito que ele próprio havia dado. Também é cedo, por volta dos cinco meses, que eles começarão e imitar sons que escutam. As primeiras sílabas pronunciadas são, frequentemente, o “agu”, mas com o tempo esses sons se diversificarão e passarão a compor narrativas compriiiiiidas que seu bebê fará a qualquer momento. O início da fala parece um momento difícil de apontar exatamente, disperso por todos os primeiros meses da vida. Mas então por que falar disso justo no nono mês?
De acordo com uma série de estudos feitos por Patricia Kuhn, é aos nove meses que os balbucios de um bebê começam a representar uma língua. Esta pesquisadora apresentou balbucios de bebês de diferentes nacionalidades a adultos daquelas nacionalidades. Mesmo não falando uma língua específica, foi aos nove meses que os ouvintes descobriam em que idioma o bebê estava sendo criado com maior frequência. Ou seja, bebês brasileiros a partir dos nove meses balbuciam em português.
Também é nessa idade que os bebês desenvolvem maior sensibilidade aos fonemas e inflexões mais comuns de sua própria língua. Ele aprende quais os sons mais comuns e se torna mais atento a eles. Isso potencializa seu aprendizado, mas apenas da língua materna.
Para os pais ansiosos, sugiro primeiro o post anterior, no qual discuto como cada bebê tem seu ritmo e seu jeito de fazer as coisas. Apesar disso, tem um exercício que parece fazer muito bem para bebês aprendendo a falar: ler livros ilustrados. Se você está com pressa de ter um pequeno tagarela pode investir um tempo todos os dias lendo para ele. Última dica, outras pesquisas indicam que infantilizar nossas vozes ao falar com bebês é excelente para o aprendizado deles até que eles comecem a falar, mas depois disso, quanto mais normalmente falarmos, mais rápido a criança aprenderá a falar corretamente.
Kuhl, P. (2004). Early language acquisition: cracking the speech code Nature Reviews Neuroscience, 5 (11), 831-843 DOI: 10.1038/nrn1533
Jusczyk, P., & Luce, P. (1994). Infants′ Sensitivity to Phonotactic Patterns in the Native Language Journal of Memory and Language, 33 (5), 630-645 DOI: 10.1006/jmla.1994.1030
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A curiosidade e o bebê de sete meses
Desde os três meses que meu bebê dorme a noite inteira. Quer dizer, dormia. Nesse último mês ele passou a ter dias muito mais ativos, interagindo com todas as pessoas ao redor e interessado nos mais diversos tipos de objetos. O problema, para mim, é que essa sede de novidades não cessa mais à noite. Pegar no sono é um sacrifício e mesmo quando isso acontece, assim que o bebê descansa um pouco ele já desperta cheio de energia querendo explorar mais um pouquinho o mundo ao redor. Por isso que digo que esse é um problema para mim, para meu bebê é uma deliciosa oportunidade de aprender mais.
O cérebro do bebê é uma esponja que suga experiências de tudo ao redor. Sons, cores, texturas, cheiros, imagens, sabores. Tudo invade o cérebro que está formando uma imensa biblioteca de sensações que acompanharão o bebê por toda a vida. Quanto mais o bebê for estimulado nessa fase inicial, mais seu cérebro se desenvolverá. Esse desenvolvimento não está relacionado a crescer em tamanho, na verdade ainda não está bem claro como essas experiências transformam fisicamente o cérebro. A transformação talvez esteja mais na esfera da mente.
Toda experiência que o bebê adquire entra para um repertório que ele tem de compreensão sobre o mundo. Isso irá permitir que ele faça previsões sobre os fenômenos. Quanto mais experiências tem, mais preciso será esse modelo de mundo que ele forma. Isso é bastante útil, por isso a seleção natural favoreceu mentes inquisitivas, a despeito delas manterem os pais acordados até a hora em que esse post está sendo escrito.
Um revés disso tudo é que o mundo nem sempre é seguro, e isso a curiosidade do bebê ainda não sabe. Cercar o bebê de cuidados exagerados irá cercear suas experiências. O ideal então é tornar os ambientes que o bebê circula tão seguros quanto possível e deixá-lo livre para experimentar em todos os outros sentidos. Restrinja o acesso ao fogão e a gavetas com objetos pontiagudos ou substâncias tóxicas, cubra tomadas e esconda fios, proteja quinas e portas, mantenha longe objetos pequenos ou sacos plásticos que possam causar sufocamento, afaste também as coisas pesadas que o bebê possa derrubar sobre si. Tomados os devidos cuidados pode deixar seu bebê livre para experimentar o mundo e aprender com isso.
Instinto, aprendizado e o recém nascido
Uma das primeiras coisas que todo pai nota em seu bebê é a capacidade de agarrar. Todo bebê segura firmemente com as mãos qualquer coisa que seja posicionada na palma de sua mão. Este comportamento já está presente na hora do parto, mesmo em prematuros, e se mantém até o segundo mês. É um excelente candidato àquele comportamento instintivo, sem nenhum componente aprendido. Só que não.
Os etólogos clássicos descreviam dois comportamentos extremamente simples: o padrão fixo de ação e os atos reflexos. O padrão fixo de ação é a resposta a um determinado fator ambiental conhecido como estímulo-sinal que, depois de desencadeado, não depende mais do ambiente. Ou seja, ao perceber o estímulo-sinal o animal, qualquer que fosse, dispararia o comportamento e seria incapaz de modulá-lo e de interrompê-lo, independente do que ocorresse ao redor. Padrões fixos de ação eram entendidos como comportamentos altamente estereotipados e invariáveis entre indivíduos. Parece combinar com o comportamento de agarrar.
Nos anos 50 a etologia passou por uma mudança de paradigma que propunha que nenhum comportamento é totalmente instintivo nem totalmente aprendido. Na verdade essa distinção é totalmente impossível. Então o que poderia não ser instintivo em se agarrar?
Agarrar-se é um comportamento adaptativo para os bebês de tempos passados, quando não havia carrinhos dobráveis, bebês-conforto ou moisés. Ser levado com a mãe dependia do filhote se agarrar aos pelos dela. Pelos estes que nem mais existem. Como o comportamento de agarrar não causava nenhum prejuízo, a seleção natural não se deu ao trabalho de extirpá-lo do repertório dos nossos bebês. Ele permanece lá como um dente do siso ou um apêndice.
Mesmo assim, o agarrar-se passa por aprendizado. Nos primeiros dias após o parto ele é forte, mas desajeitado, à maneira de alguém puxando outro pelos cabelos. Com o passar das semanas torna-se mais coordenado, com os dedos e o polegar formando um cilindro e tendo maior firmeza, à maneira como seguramos uma lata. A força preênsil vai reduzindo com a aproximação do terceiro mês de vida até que o reflexo desaparece.
O mesmo pode ser dito do reflexo de sucção. É certo que os recém nascidos já têm o costume de sugar o que se lhes ponha na boca. No entanto, qualquer pessoa que já acompanhou uma mãe sabe da dificuldade do aprendizado da chamada pega. O recém nascido frequentemente não sabe ao certo como abocanhar o seio da mãe, surgindo dificuldade em alimentar-se e dor à mãe. É só a prática e a capacidade de aprendizado dos nossos bebês que permite o aumento na eficiência da mamada.
Nem instinto, nem aprendizado. Todo comportamento é uma mescla desses dois componentes indissossiáveis. A grande riqueza do comportamento animal reside na certeza dos comportamentos adaptativos, mas também na flexibilidade que eles mesmos têm para responder rapidamente ao ambiente.
O que então define o comportamento animal?
Vimos nos dois últimos textos que a genética influencia o comportamento, mas nunca o determina. Da mesma forma o aprendizado ocorre, mas depende de bases genéticas para tanto. No início do século passado o comportamento animal vivia essa dualidade instinto versus aprendizado, cada qual com sua escola e seguidores aguerridos. No entanto, e parafraseando o aniversariante Nelson Rodrigues, todo maniqueísmo é burro, voltamos ao caminho do meio. Foi assim que em 1973 Konrad Lorenz, Niko Timbergen e Karl von Frisch foram laureados com o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina pela conciliação entre esses dois paradigmas.
Todo comportamento animal é um misto de dois componentes: seu instinto geneticamente baseado e o aprendizado proporcionado pelo ambiente onde vive. Não faz sentido isolar os fatores ou dizer que um comportamento é mais instintivo ou mais aprendido. A genética pode até promover uma forte propensão a realizar um dado comportamento, mas ele só irá se manifestar se pressupostos à sua ocorrência forem cumpridos. Mesmo assim o comportamento mudará de acordo com experiências prévias e com as informações que o meio lhe oferecer para essa manifestação.
Por exemplo, vejamos o canto de uma ave. Existem bases genéticas para o canto, tanto que cada espécie tem cantos tão específicos que pesquisadores são capazes de identifica-las de ouvido. No entanto, é necessário cumprir alguns pressupostos. Filhotes não cantam (ao menos não como adultos), portanto é importante que o animal esteja no estágio ontogenético adequado. Não importa quantos genes uma ave tenha, se ela estiver extremamente desnutrida esse comportamento será reprimido, demonstrando assim a importância do fator fisiológico também.
Porém, mesmo que um comportamento ocorra, ele tende a ser afetado por fatores externos. Uma ave pode estar geneticamente apta a cantar, na fase de vida ideal para o canto e fisiologicamente propensa, mas esse canto será melhor ou pior executado dependendo do contato que a ave teve com bons cantores antes. Isso o sabe qualquer criador de canário, já que gravações dos campeões de gogó (no caso, siringe) circulam no comércio para inspirar os futuros concorrentes. Da mesma forma, foi surpreendente quando se descobriu que em ambientes ruidosos algumas aves canoras mudavam seu estilo de canto privilegiando amplitudes maiores (cantando mais alto), ou em ambientes com muitos obstáculos, como uma floresta fechada, privilegiando cantos mais graves (que ultrapassam esses obstáculos).
Nos próximos textos veremos como instinto e aprendizado afetam as diferentes manifestações comportamentais dos animais.
Um animal é um autômato que só responde a seus instintos?
Algumas pessoas têm a impressão de que animais são máquinas cujas linhas de comando são chamados instintos. Ao nascer um pacote de programas já viria instalado no organismo do animal e seria, pouco a pouco, ativado assim que um determinado evento acionasse aquele comportamento. Tenho um cachorro que é só tocar sua barriga e ele imediatamente se põe a sacolejar as pernas trazeiras, ele foi assim desde sempre, não aprendeu a sentir cócegas num dado momento da vida. Pessoas que entendem animais como autômatos agarram-se a exemplos como esses para justificar sua posição.
É claro que existem comportamentos tão simples que mal são modulados e pouco variam, mas esses são exceção dentro da diversidade de possibilidades comportamentais. Em geral os animais precisam (e são capazes de) adequar seus comportamentos a diferentes situações. Nesse cálculo entram o estado interno do animal, os custos do comportamento em questão e os benefícios que ele irá trazer. Falando assim dá a impressão de que a cada atitude o animal executa um instante de reflexão introspectiva para tomar sua decisão. Nem preciso dizer que não é bem assim, na verdade os animais que erraram nessas contas simplesmente foram extirpados pela seleção natural.
Desde pequeno sempre fui acostumado a mergulhar em costões rochosos, um de meus prêmios nesses mergulhos era encontrar um tímido polvo no fundo de sua toca em Guarapari. Mais velho fiz uma viagem a Fernando de Noronha e qual não foi minha surpresa ao descobrir que ali os polvos eram bem mais curiosos com a presença de mergulhadores. Ambos os polvos eram certamente capazes de me perceber ali, mas o custo de matar a curiosidade para o que eu encontrava em Guarapari poderia ser a vida (Esses costões rochosos eram frequentados por pescadores que enxergavam no meu trunfo biológico um delicioso fruto do mar), o de Fernando de Noronha estava a salvo por rígidas leis e fiscalizações, por isso para ele o custo era mais baixo.
Mas então quer dizer que instintos não existem? A resposta desse virá no próximo texto da série.
Como deve aprender biologia aquele que em um futuro próximo dedicar-se-á a ensiná-la?
Com prazer! Essa seria minha resposta mais imediata, mas vou elaborá-la. Existem muitos livros de Zoologia de Vertebrados com muitíssimas informações, possivelmente mais informações desse assunto do que cabe na minha cabeça. Por que então minha disciplina não é apenas uma leitura destes excelentes livros? Acredito que o que difere um curso da leitura de seu livro texto é a emoção, o prazer. Nas minhas aulas posso emocionar com uma sinfonia de cantos de anfíbios ameaçados de extinção, posso cativar com fotos de mamíferos fofos, posso intrigar com a simulação de uma expedição naturalística e fazer rir com um cladograma de sapatos chulerentos. O Pough não pode nada disso em sua encadernação de enésima edição da Vida dos Vertebrados.
Às vezes vale a pena abrir mão de um pouco do conteúdo para encantar sua audiência. Se ela se apaixonar pelo assunto, o que não foi possível ensinar como se deveria, ela irá buscar por interesse próprio porque o professor cumpriu este papel de encantar.
A grande dificuldade reside em saber encantar e em encantar a todos. Quanto ao segundo problema eu já lhes alivio: vocês não conseguirão. É impossível tocar a todos do mesmo jeito, uns sempre se motivarão mais do que outros, isso é natural. Cabe ao professor diversificar as experiências de forma a tentar abraçar a maior parte da sua plateia, mas cabe também a leveza de espírito de saber-se humano e sujeito a incapacidades. Já o saber encantar eu vejo mais como uma auto-sondagem. Pergunte-se por que você ama tanto aquilo que ensina, começar por aí já é um excelente caminho.