Os camundongos inconformados

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora aguardava dois clientes camundongos, mas estava preocupada mesmo era com a reação da secretária. Sua última ajudante ficou apavorada quando um cliente antigo, um ratão do banhado que tinha medo de água, entrou na sala de espera. Ela sempre achara simpática a cara daquele animal, mas concordava que o rabo era repugnante.

A primeira cliente já aguardava na antessala. Uma mãe de oito camundonguinhos de olhos fundos e mamas inchadas de devoção pelos seus filhotes se queixava do parceiro que não a ajudava.

Fêmeas de camundongo pedem ajuda para cuidar da prole a seus parceiros usando feromônios e ultrassons. Fonte: eurekalert.org

Fêmeas de camundongo pedem ajuda para cuidar da prole a seus parceiros usando feromônios e ultrassons. Fonte: eurekalert.org

-Para mim, doutora, a demonstração maior da inutilidade dos machos são aqueles mamilos. Usaram tão pouco que perderam a função! Por mim eles todos podiam cair em desuso e desaparecer que não fariam falta.

-Não seja tão lamarckista. – Interpelou a doutora.

-Extremista?

-Lamarckista. Deixa para lá. Você já pediu a ajuda dele para cuidar das crianças?

-É claro que sim.

-Mostre para mim como você falou com ele. Finja que sou seu marido e me peça ajuda. – Sugeriu a terapeuta usando a técnica do espelho.

-Ora, doutora. Eu pedi. Ah, não sei. Falei mais ou menos assim… Bom, ele nãos está vendo como estou sobrecarregada? Não acho que eu precisasse falar. O que é? Ele queria participar só na hora de fazer a ninhada? Não é justo! Ele fica lá só metido nas coisas de macho dele e não olha para mim. Não colabora. Esquece as minhas necessidades e as dos filhos dele. Nem parece que moramos na mesma cuba do mesmo biotério.

– Você tem razão, mas se não contar para ele que precisa de ajuda não pode exigir que ele adivinhe. Machos são menos inclinados a cuidar da prole mesmo, especialmente em mamíferos como você. Você tem que pedir ajuda do jeito certo.

-Que jeito é esse? – Perguntou a roedora arregalando os olhinhos escuros, mexendo de leve as orelhinhas arredondadas e eriçando as vibrissas.

-Bom, primeiro você precisa liberar feromônio e então emitir vocalizações ultrassônicas. Uns 38 kHz são suficientes.

-ASSIM?!?-Gritou estridentemente a Sra. Mus fazendo tremer os vidros do consultório e levando a analista a tampar os ouvidos, mas num tom que você e eu não escutaríamos.

-Isso, mas não precisa ser tão alto, só agudo. Agora vá para casa e semana que vem você me conta no que deu. – A doutora encerrou a seção encaminhando a primeira cliente até a porta e já chamando o segundo, um camundongo macho de outra espécie. Ao se cruzarem na sala de espera a cliente anterior lançou-lhe um olhar cheio de ressentimento que a ela pareceu cabido contra camundongos machos, mas deixou-o sem entender nada.

A forma da toca desse roedor é determinada geneticamente. Fonte: wikimidia.org

A forma da toca desse roedor é determinada geneticamente. Fonte: wikimidia.org

-Doutora, toda minha vida imaginei a casa dos meus sonhos. A mais linda da ravina. Localização e tamanho de cada cômodo, portas, janelas e corredores amplos. Sonhava em deixar aquelas tocas tradicionais para trás, viver numa casa aconchegante e cheia de personalidade, a minha personalidade. Desde que me lembro vivo em tocas exatamente iguais, um longo corredor de entrada, uma câmara central e um corredor de fuga quase até a superfície para o caso da invasão de um predador. Meus pais vivam assim, meus avós paternos e maternos viviam assim. Queria sair desse ciclo. – Queixava-se o camundongo deitado no divã. – O problema é que, agora que chegou a minha hora de realizar o sonho, fazer minha própria toca, não consigo abandonar o paradigma. Estou construindo os mesmos túneis estreitos e longos, câmaras e saídas de emergência de meus ancestrais.

-É comum reencenarmos coisas do passado, Sr. Peromyscus

-Eu sei, doutora. É aquela história freudiana de recordar, repetir e elaborar os traumas. Né? – interrompeu o roedor.

-Não exatamente. Aí o que está acontecendo é que suas tocas são influenciadas pelos genes. Você herdou essa conformação de toca de ambos os seus pais, portanto tende a repeti-la.

-Mas, doutora, os genes controlam até isso? Não é determinismo demais? – Perguntou o cliente franzindo as sobrancelhas e apertando a boca até quase fazer sumir os longos incisivos.

-Compreendemos ainda muito pouco sobre o papel dos genes no comportamento e sua modulação, mas parece que no caso da sua toca você está geneticamente condenado a repetir a morada dos seus pais. Até as três sequências genéticas que indicam o comprimento do túnel de entrada e a sequência que indica a presença da saída de emergência são conhecidas para a sua espécie. – Sentenciou a psicóloga.

Despediram-se na porta do elevador, o camundongo se esgueirando ligeiro pelo canto do corredor, resignado e mudo. Enquanto isso a doutora pensava como todos nós temos dificuldade de lidar com a realidade. Dois camundongos tão diferentes, mas tão semelhantes. Um quer mudar o parceiro, o outro o lar. Somos todos inconformados. O que não é de todo mau, já que esse inconformismo nos move.
Liu, H., Lopatina, O., Higashida, C., Fujimoto, H., Akther, S., Inzhutova, A., Liang, M., Zhong, J., Tsuji, T., Yoshihara, T., Sumi, K., Ishiyama, M., Ma, W., Ozaki, M., Yagitani, S., Yokoyama, S., Mukaida, N., Sakurai, T., Hori, O., Yoshioka, K., Hirao, A., Kato, Y., Ishihara, K., Kato, I., Okamoto, H., Cherepanov, S., Salmina, A., Hirai, H., Asano, M., Brown, D., Nagano, I., & Higashida, H. (2013). Displays of paternal mouse pup retrieval following communicative interaction with maternal mates Nature Communications, 4 DOI: 10.1038/ncomms2336
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Weber, J., Peterson, B., & Hoekstra, H. (2013). Discrete genetic modules are responsible for complex burrow evolution in Peromyscus mice Nature, 493 (7432), 402-405 DOI: 10.1038/nature11816

Pensamento de segunda

Fatos inexatos são altamente prejudiciais ao progresso da ciência, dado que em geral eles resistem por longo tempo. Mas as visões incorretas, desde que sustentadas por alguma evidência, produzem pouco prejuízo, já que todos se ocupam do salutar prazer de provar sua falsidade.

Charles Darwin

Santa Maria

Em dezembro passado estive numa palestra sobre a divulgação científica em Blogs na UFSM por causa do Ciência à Bessa. Lá fui muito bem recebido por um grupo de jovens felizes e com olhos brilhando de interesse pelo que eu estava falando. Mais tarde alguns até me levaram para sair numa boate como a Kiss. Hoje estou consternado pensando quantas daquelas pessoas estariam no trágico acidente dessa madrugada. Meu pensamento fica com vocês todos dessa universidade tão agradável.

Mate de tonel

Sempre amei o mate vendido em tonéis metálicos nas praias do Rio de Janeiro tanto quanto sempre fui avisado de sua qualidade microbiológica duvidosa. Posso estar sendo injusto e ignorar os procedimentos sanitários aplicados por esses comerciantes, mas preciso considera-los nulos para esse post sobre imunologia que explica por que continuo consumindo esse mate em vez dos de copinho, selado e industrializado.

Vendedor de Mate na praia de Copacabana.

Imunidade que nada, tomo porque é muito mais gostoso! Foto de José Renato Leite.

A alimentação é uma via de entrada de infecções em nosso organismo, pela boca ingressam vários microrganismos que podem ser prejudiciais a nós. Uma informação surpreendente para muitos é que o controle sanitário de vários itens alimentares trabalha com quantidades limites de bactérias fecais nos alimentos, por exemplo, e não com sua total ausência. Mesmo produtos certificados pela ANVISA vêm com algum grau de contaminação (até 102 bactérias por grama de carne), e isso não é um problema porque nosso corpo acaba dando um jeito.

Quando um patógeno desses invade nosso corpo ele eventualmente esbarrará em linfócitos B e T, células de defesa do sangue que circulam pelo corpo como que fazendo rondas. Essas células identificam patógenos e convocam reforços, através de comunicação celular química, para ataca-los. A identificação de um patógeno é possível quando o corpo já teve contato com ele, a chamada memória imunológica, mais ou menos da mesma forma que uma ficha policial com fotografia e digitais faria pela polícia. Desde que já tenha contatado um patógeno específico presente no mate de tonel, nosso corpo saberá responder a ele mantendo seu equilíbrio interno.

Não sei se é fantasia minha, mas sinto até que esse mate de tonel tem um gosto diferente. Dizem que é gosto de água podre. Pode ser. Não sei, mas confio no meu sistema imune para dar conta dos germes e quem sabe até aprender umas coisas novas com os patógenos dessa dose. Mate de tonel faz bem para seu sistema imune.

Tendo dito tudo isso, refuto-me a mim mesmo. Imunidade que nada, tomo esse mate porque é muito mais gostoso!

Pensamento de Segunda

O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida.

Carl Sagan

Pensamento de Segunda

Pensamento de Segunda

“No sofrimento, os animais são nossos iguais.”

Peter Singer