A foca superprotetora
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
A Dra. aguardava a chegada da próxima cliente de portas abertas, o que muito a incomodava. Seu consultório deveria ser uma alcova para estimular a falar quem em seu divã se deitasse. Consultório psicanalítico não é que nem botequim que todo o mundo que passa diante da porta deve ver o que tem lé dentro. Ainda mais um consultório para animais de todas as espécies. Estes que escondem os mais reconditos segredos aos quais só a doutora teria acesso. Estes que nela confiam. Mas desta vez a secretária estava de licença médica. Havia pego malária de um gorila que vinha tendo problemas com seu harém de quatro esposas, todas ovulando juntas. Agora a moça exigia um adicional de insalubridade e periculosidade ao seu soldo.
O sinal sonoro do elevador foi o prenúncio da chegada, mas a doutora ainda teve que esperar quase um minuto para a cliente desta manhã atravessar aos tabefes os doze metros que separavam a porta do consultório e o elevador. Era uma foca de pelagem e humor cinzentos que atravessou a antessala sem responder o “Bom dia” que a doutora lhe dirigiu. Foi direto ao divã onde subiu como pode e deitou-se de lado.
– Meu filho, doutora. Não sei o que fazer com ele. Vocês psicanalistas vivem dizendo que é tudo culpa da mãe, pois eu queria ver o que seria do Sr. Freud sem sua mãe judia! Isso não é culpa da mãe, né? – Foram as primeiras palavras da foca naquela sessão.
– Sra. Halichoerus, bem vinda. Como é que a Sra. está? – Perguntou a terapeuta com um sorriso forçado, ciente do histórico da cliente.
– É impressionante que eu precise pagar alguém para me perguntar como estou. Ninguém se preocupa com como é que eu estou! Meu filho? Um desnaturado. Não fica ao meu lado, nada pela praia com outros filhotes que não lhe são boa companhia, entra na água e some por aí, nem mamar ele mama. Ele é jovem demais para sair de casa.
– Que idade mesmo tem seu bebê?
Se fosse seu filho você o perderia de vista?
Fonte: Animal Diversity Web
– Só 17 dias, meu filhinho. Pode uma coisa dessas? Essas crianças de hoje não têm coração, nunca ajudam em nada e não se preocupam com suas velhas mães quando resolvem sair de casa. Sabe que eu já perdi peso desde que meu filhinho me abandonou? Estou me sentindo tão fraca. – Disse a foca com os olhos rasos d’água.
– É mesmo? E por que a senhora emagreceu?
– Porque não tenho saído para pegar peixes?
– E por que não? – Interrogou a doutora.
– E se meu filhinho retorna e eu estou no mar procurando comida? Não podia correr o risco! – Concluiu a foca.
– Mas Sra. Halichoerus, filhotes da sua espécie tendem a desmamar aos 15 dias de idade. São muito independentes desde cedo na maioria dos casos. A senhora não pode querer controlar a vida dele. – Ralhou a analista.
– A senhora diz isso porque não é o seu filho. Sabe que nem ganhar peso ele ganha? Os outros filhotes na praia estão grandes e gordos. Saudáveis. Meu filho está esquelético. O bebezinho de uma amiga ganhou 5 kg em uma semana, já meu filho perdeu 2 kg, pesa só 40 kg. A senhora sabe que ele pode até morrer por causa disso? Aposto que não, nem filhos deve ter! – Disse a foca com os bigodes eriçados e um ar que seria aterrorizante se sua aparência não fosse tão dócil.
A doutora adotou seu tom mais severo e recolheu-se para longe do abajur onde a foca não a podia enxergar. – Minha vida pessoal não lhe diz respeito. Estamos aqui para falar sobre a senhora. Além do mais, filhotes de foca mal nutridos podem sim ter problemas, mas seu filhote está saudável, 40 kg é mais do que suficiente para ele. Por que a senhora sente tanta culpa?
Agora todas as defesas da cliente pareciam ter desmoronado. Ela largou-se prostrada no divã e disse em um sussurro rouco: – Dra., acho que escolhi o pior ponto da praia para ter meu filhote, perto demais da margem. Temos muitas tempestades e quando o vento aumenta as ondas varrem a praia. A primeira vez que meu filhote foi para a água foi numa tempestade dessas, levado por uma onda. É tudo culpa minha! – Dito isto a foca pôs-se a chorar.
Passados uns dois minutos e meia caixinha de lenços a psicóloga recomeçou a falar.
– Tenho certeza que ele sabe como a competição por um lugar na praia é acirrada, Dona Halichoerus grypus. Se ainda não o sabe, logo descobrirá. A senhora não deve se culpar por isto. O que importa é que seu filho é mais franzino do que seus colegas, mas é saudável. Sabe do que mais? Estou certa de que nessas incursões marinhas que a senhora tanto se preocupa, seu filhote estava aprendendo muito sobre como capturar peixes. Logo mais todos os seus colegas irão perder o peso que ganharam sob as barras das saias de suas mães quando forem para o mar. E então será a vez do seu guri se destacar e engordar novamente.
– Ah, mas é tão duro deixá-los ir embora. Eu olho para meu filhote e não o vejo como uma foca adulta. Para mim ele será para sempre a coisinha branca e felpuda de grandes olhos negros que eu vi nascer e criei. – Dizia a mãe superprotetora quando o final da sessão foi anunciado.
– Até breve, Sra. Halichoerus. Não se preocupe nem se culpe tanto. Vá aproveitar a vida que ela é curta. – Despediu-se a analista com um sorriso ao ver as formas roliças da foca afastando-se pelo corredor.
Jenssen, B., Åsmul, J., Ekker, M., & Vongraven, D. (2010). To go for a swim or not? Consequences of neonatal aquatic dispersal behaviour for growth in grey seal pups Animal Behaviour, 80 (4), 667-673 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.06.028
Pensamento de Segunda
“O homem que começa com certezas está fadado a terminar em dúvidas. Mas se há alguém disposto a começar com dúvidas, sua recompensa será terminar com certezas.”
Francis Bacon
Tudo em um ano 11-Eucariotos
Uma membrana. Ok, uma membrana dupla, mas ainda assim uma membrana. Hum, quer contabilizar também organelas? Um esqueleto celular de microtúbulos. São todos detalhes. Mas são os ridículos detalhes que separaram os últimos 322 dias (ou 11,9 bilhões de anos) dos próximos 43 dias (ou 1,6 bilhões de anos). Aqueles que nos permitiram deixar de sermos bactérias unicelulares isoladas para nos tornarmos organizados, mais ousados em colonizar este planeta, um dia multicelulares e tantas outras coisas que ainda estão por vir neste restinho de ano cósmico que nos resta. Há que se dizer que essa mudança que hoje se consolida foi a libertação de grilhões evolutivos de eras acumuladas. A partir de hoje em nossa jornada anual de evolução somos eucariotos.
Pensamento de Segunda
Todo mito é perigoso porque induz o comportamento e inibe o pensamento. O cientista virou um mito.
Rubem Alves
Por que o código florestal que tramita no congresso não pode passar: Exóticas
O uso de plantas exóticas no reflorestamento é previsto pelo novo código florestal em até metade de sua cobertura. Imagine chegar a uma área de campo cerrado a ser recuperada e encontrar tudo coberto de capim-elefante ou braquiária. Seria algo parecido com reflorestar a Amazônia com eucalípto. Aí precisaríamos criar programas de introdução e preservação dos coalas.
Em meio ao cerrado de Pirinópolis um exemplar da flora africana
As reservas legais precisar ser reflorestadas urgentemente, para isto alguns pesquisadores apontaram plantas exóticas como uma solução rápida para criar condições de uma floresta se restabelecer. Contudo, a permanência destas invasoras na vegetação madura só levaria à perda de biodiversidade. Certamente as RL’s podem servir de fonte de renda aos proprietários rurais na forma de sistemas agroflorestais bem preparados, da exploração de recursos nativos de maneira sustentável ou através de seu valor cênico. Mas o que vem acontecendo é o uso da RL com interesse agrícola estrito maquiado de preservação ambiental.
Por que o código florestal que tramita no congresso não pode passar: Soma das reservas
O novo código florestal permite que se some as áreas das áreas de preservação permanente (APP) nas áreas de reserva legal (RL). Se é necessário preservar 30% da área e 10% é de áreas de preservação permanente, continua-se com apenas 30% da área preservada, já que desconta-se da RL a área de APP. Antigamente o total preservado seria de 40%.
Em termos ecológicos este cálculo é errado. As APP’s precisam ser preservadas por possuírem características e papéis ecológicos específicos (encostas, margens de rios), as RL’s precisam estar lá para compor uma trama de fragmentos conectados do que antes era um contínuo. Mato não é tudo igual!
É necessário que se desvincule a preservação de APP’s e RL’s na compreensão dos proprietários rurais, só assim os papéis destes dois tipos de áreas poderão ser realizados.
Por que o código florestal que tramita no congresso não pode passar: Biomas
O novo código florestal permite que um proprietário rural que deseje desmatar uma área compense esta perda preservando outra área dentro do mesmo bioma. Mata Atlântica com Mata Atlântica, Cerrado com Cerrado, Caatinga com Caatinga…
O problema é que o que nós chamamos de Cerrado, na verdade é uma mixórdia de ambientes muito diferentes, campos limpos, veredas, cerradões, murundus são algumas das fisionomias que o cerrado pode assumir. Pela proposta que ora tramita eu posso desmatar 50 hectares de vereda no norte de Minas Gerais e compensar com 50 ha de campo sujo em Mato Grosso do Sul! O mesmo vale para os outros biomas, eu posso derrubar uma área de floresta ombrófila densa em São Paulo e compensar com uma cabruca na Bahia. Cada fisionomia dessas tem um papel ecológico, características ambientais e uma biodiversidade específicas e insubstituíveis. Semana passada um pesquisador recém-chegado de Cambridge, Gustavo Canale, veio a Tangará dar uma palestra sobre conservação e ecologia de uma espécie de macaco prego restrita a uma parcela de mata atlântica no nordeste. Um cacaueiro que decida desmatar sua propriedade e compensar isto com um fragmento de mata atlântica no Paraná estará contribuindo para a extinção deste importante dispersor de frutos.
Os pesquisadores do painel de conservação do programa Biota Fapesp sugerem que áreas degradadas sejam compensadas em locais próximos e comparáveis em termos fisionômicos.
Por que o código florestal que tramita no congresso não pode passar: Amazônia Legal
As reservas legais na amazônia eram de 80% da área da propriedade, fato há muito contestado por proprietários rurais nesse bioma. Com os zoneamentos sócio-econômico-ecológicos (ZSEE) de cada estado englobado pela Amazônia Legal os proprietários rurais têm feito pressão e o novo código florestal considera a redução das reservas na Amazônia Legal para 50% nas áreas florestais e 20% em outras formações (cocais e savanas, por exemplo).
Esta alteração resultará em intenso desmatamento da floresta amazônica, induzindo o aumento das emissões de gás carbônico, seja pela queima da floresta, seja pela introdução da pecuária no que antes era floresta. Haverá ainda uma redução na complexidade do ambiente e da conectividade entre manchas de floresta nas propriedades rurais, o que, novamente, levará à perda de biodiversidade e serviços ecossistêmicos.
Alternativas apontam para um mínimo de 60% da vegetação amazônica preservada e planejada de forma a manter a conectividade entre fragmentos. Além de maior fiscalização para garantir a permanência desta área de reserva legal na amazônia.
Por que o código florestal que tramita no congresso não pode passar: reserva legal
Reserva legal é a área mínima preservada que um proprietário rural deve manter de suas terras. O novo código florestal sugere reduzir esta reserva legal dispensando de preservá-la agricultores com propriedades consideradas pequenas (até 4 módulos fiscais, o que aqui no Mato Grosso dá 240 hectares). Outra estratégia foi fundir à reserva legal á área de preservação permanente, assim, se um proprietário precisa preservar 100 ha, mas em sua área já existem 30 ha de mata ciliar e 50 ha de encostas, só é necessário preservar mais 20 ha de reserva legal, ao contrário dos 180 ha anteriormente preservados.
A fragmentação decorrente das atividades agrícolas no país todo tem resultado numa perda enorme de biodiversidade. O valor mínimo de área preservada com vegetação nativa e resguardada de ações catastróficas como a caça ou queimadas deveria ser de 30%, abaixo disso sabe-se que o risco de extinção aumenta exponencialmente. Mesmo para os produtores rurais a presença destas áreas implica em polinizadores, controladores naturais de pragas agrícolas e manutenção de recursos hídricos usados na irrigação.
Além do tamanho da propriedade, o tipo de atividade realizada deveria ser considerada no momento da estipulação da reserva legal. Da mesma forma, manter uma área mínima de 30% das propriedades fora da Amazônia preservada é fundamental para a manutenção da biodiversidade e seus serviços prestados.
Mata Atlântica ontem e hoje, o pouco que restou foi graças a reservas legais