Vinte mil léguas submarinas
Quando eu era pequeno meus pais participavam de um clube do livro. A cada dois meses um moço muito bem vestido batia à nossa porta com uma pasta e um catálogo, nós escolhíamos os títulos e eles nos eram entregues pelo correio. Foi assim que me tornei fã de um escritor francês chamado Júlio Verne. Ele era célebre por suas ficções quase proféticas, descreveu uma viagem à Lua, o submarino e uma série de outras coisas que só seriam inventadas dali a muitos anos. Meu livro preferido era Vinte mil léguas submarinas.
Nesse livro o capitão Nemo comandava o Náutilus, um submarino, através dos mares descobrindo seres incríveis. Talvez aí eu tenha começado a me interessar por biologia marinha, talvez antes disso já gostasse. Acontece que a realidade muitas vezes é bem mais estranha que a ficção. Mesmo os mais fantásticos monstros medievais ou seres das 20.000 léguas não fazem jus aos peixes abissais que descobri na biologia.
O ambiente abissal é caracterizado por uma luminosidade tão baixa que não sustenta vegetais. Isso levou a uma baixíssima quantidade de alimentos, então todo alimento deve ser aproveitado. Existem três origens para o alimento dos peixes abissais: pequenos animais na coluna d’água, outros peixes menores e detritos como peixes mortos e até fezes que caem lá de cima onde o sol bate mais forte. Os animais que se alimentam de pequenos animais são os filtradores, como Bassogigas gillii aos 2000 m, possuem longas estruturas na faringe que peneiram o alimento da água. Os predadores têm uma grande diversidade de estratégias para conseguir seu alimento em um ambiente tão ermo. Alguns têm bocas espantosamente grandes totalmente articuladas, como o Malacosteus niger que habita águas até 4000m. Outros têm uma modificação da nadadeira dorsal em órgão luminoso usando-o como isca, é o caso do Echinophryne mitchellii, encontrado a 700 m. O alimento é tão escasso que, depois de abocanhado, não pode ter chance nenhuma de fugir. Por isso os dentes funcionam como a grade de uma prisão (Anoplogaster cornuta, 5000 m).
Se conseguir alimentos já é difícil, um parceiro sexual não fica atrás. Para isso os peixes abissais deram também três soluções. Allocittus verrucosus aos 1800 m, formam cardumes grandes com machos e fêmeas vivendo sempre juntos, assim eles não precisam se encontrar só na época reprodutiva. Benthosema suborbitale, que vive aos 750 m de profundidade, resolveu esse problema tornando-se hermafrodita. Assim, o peixe pode se autofecundar na falta de um parceiro, ou servir de macho e fêmea quando encontra alguém. A solução mais radical foi a de Melanocetus johnsonii aos 1300 m. Nessa espécie os machos reduziram-se a apenas parasitas das fêmeas que sugam seu sangue e entregam-lhe sêmem.
Talvez a característica mais impressionante dos peixes abissais seja a capacidade de produzir luz. Na verdade eles apenas têm câmaras em seus corpos que servem como meios de cultura para bactérias, essas sim, capazes de produzir luz. É o caso de Astroonestes macropogon aos 2000 m. De fato, 75% dos animais abissais são luminescentes e usam essa luz de diversas formas. Alguns têm luz apenas no ventre para esconder sua silhueta de predadores que estiverem abaixo dele, como Argyropelecus gigas, de 650 m. Algumas águas-vivas, quando atacadas, acendem e iluminam seus predadores, expondo-os a peixes maiores que os comerão. Com toda essa diversidade de animais luminescentes, os predadores, que muitas vezes têm corpo transparente, não podem correr o risco de ficar com seu estômago brilhando no escuro. Por isso esse é o único órgão opaco desses animais.
Em se tratando de peixes abissais a evolução foi extremamente criativa. Mas tenha em mente que a diversidade de espécies conhecidas ainda é pequena comparada à diversidade existente. A cada viagem do submersível Alvin, do centro de pesquisa oceanográfica de Monterrey, novas espécies são descobertas.
Fonte das imagens: www.fishbase.org e www.bbc.co.uk
Biologia: Ciência única. Mas currículo único?
Conversas de sala dos professores sempre rendem idéias. Aqui na UNEMAT o fato de não haver uma sala isolada para cada professor às vezes faz falta. Mas quando houver certamente sentirei falta dessas conversas ao redor da mesa.
Essa semana discutíamos sobre as diferenças entre os currículos de biologia nas diferentes universidades de biologia do Brasil. Aqui tem professor vindo do Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Brasília, São Paulo, Goiás e Acre, portanto temos uma boa amostragem do país. O ponto central da discussão era: Deveriam os currículos de Ciências Biológicas do país inteiro ser iguais?
Os pontos de vista eram diversos. Eu vou argumentar em favor de que cada região tem suas particularidades e, portanto, deve ter currículos distintos. Mas não deixarei de apresentar o ponto de vista dos colegas que se opunham. Quem votava por um currículo único achava que há um conjunto de conhecimentos básicos que qualquer um que queira intitular-se “Biólogo” deve ter. Também achava que a formação de um profissional não deveria ser regionalizada, já que alguém que se forme em um lugar poderá migrar para outros locais.
Pessoalmente, acredito que é quase que inexorável que os conteúdos de um curso convirjam para a realidade e as necessidades de um determinado local. Foi um problema grande, assim que cheguei ao Mato Grosso, dar aula de peixes sem um conhecimento mais profundo da fauna regional. Na sala havia pelo menos dois pescadores amadores que conheciam os animais bem melhor que eu. Acabei descambando a falar de grupos de peixes marinhos que a maioria nunca havia visto fora de uma lata no mercado.
O próprio processo de memorização passa por três mecanismos: associação, sensação e envolvimento. Isso significa que algo só é apreendido pela memória se correlacionamos aquele conhecimento a outros pré-existentes, se percebemos aquele estímulo com nossos sentidos e se aquilo traz algum significado para nós. Como querer que nossos alunos aprendam alguma coisa se o que ensinamos não carrega significado para nossos alunos.
Hoje eu tinha que dar aula sobre biodiversidade de peixes, aquela mesma aula que me fez sofrer quando recém havia chegado. Foi tudo muito diferente. A decepção de me ouvir falar de grupos que os alunos não conheciam transformou-se no processamento de conhecimentos mais técnicos a partir dos conhecimentos empíricos que eles obtiveram em inúmeros finais de semana nas barrancas do Rio Paraguai.
Fora isso, cada região precisa de um tipo de profissional. No sudeste, onde me graduei, a biotecnologia carrega muitos profissionais. Genética humana, biologia molecular, melhoramento genético são áreas que despontam aí e empregam muita gente. É natural que haja um esforço em formar pessoal apto a trabalhar nessas áreas. O Mato Grosso vem sendo apontado como campeão nacional em desmatamento, contém três das maiores bacias hidrográficas do Brasil (Amazonas, Araguaia e Paraguai) e representa três biomas (Pantanal, Cerrado e Amazônia). Isso faz com que muitos biólogos vão para o lado da conservação. É igualmente natural que façamos aqui um esforço para formar pessoal apto a trabalhar com meio ambiente. Não é deixar de dar conteúdos básicos necessários a qualquer biólogo, mas aprofundar-se em alguns. Mesmo que esse profissional migre, como eu migrei, ele terá bagagem para começar a se adequar ao novo ambiente, só terá que aprofundá-la.
Apesar da Biologia ser, certamente, uma ciência única, como propôs o Ernst Mayr, ela é ampla o suficiente para abraçar variações sobre o mesmo tema.
À sua imagem e semelhança
Fontes: www.tcrecord.org e www.bbc.co.uk
Nesses tempos de olimpíadas ficamos com o nacionalismo exaltado, noites mal dormidas, sempre querendo nos interar dos resultados que perdemos. Mas meu lado etólogo não pôde deixar de reparar. Quando vi a foto do Phelps comemorando o ouro naquela prova de revezamento imediatamente me lembrei de uma foto que tenho num livro de comportamento animal. Um gorila intimidando os fotógrafos em um comportamento típico de agressividade. Ele está de olhos vidrados, boca escancarada e dentes expostos, músculos do pescoço e braços tesos. Bem parecido com a imagem acima.
O primeiro a perceber a semelhança entre os comportamentos humanos e nos animais foi, tchan tchan tchan tchan, Charles Darwin. Em 1877 ele publicou o livro “A expressão das emoções nos homens e nos animais”, um trabalho pioneiro que traça relações entre o comportamento humano e dos animais. De fato, são muitas as expressões faciais que nós humanos temos que se assemelham àquelas de outros mamíferos.
Outras expressões nossas são semelhantes a expressões de nossos parentes, mas têm um significado diferente do deles. Num congresso de etologia que eu fui, vi um trabalho propondo que crianças interpretavam fotos de cachorros rosnando como sorrisos, o que aumentava a chance de acidentes. Isso me remete ao conceito de exaptação, que é uma estrutura que evoluiu graças a uma pressão seletiva sendo aplicada em uma função diferente. O mesmo pode valer para comportamentos, afinal, eles também são frutos da evolução por seleção natural. Compreender e ser compreendido por seus pares em uma espécie social como a nossa é fundamental.
Fecho com essa outra imagem. Vai dizer que não existe uma similaridade entre as expressões faciais.
Fonte: http://nomoremister.blogspot.com
No começo era o caos…
Já que tudo precisa ter o seu começo, aqui começa o Blog Ciência à Bessa. Nele pretendo apresentar pensamentos cotidianos sobre Ciência, vida acadêmica e Biologia. O espaço também deverá ser usado para apresentar material de suporte para as disciplinas que ministro no curso de Ciências Biológicas da Universidade do Estado de Mato Grosso, em Tangará da Serra.