O que o comportamento animal tem a dizer sobre delações?
Será que o comportamento animal pode nos dizer algo sobre a operação Lava Jato? Outro dia conversava com o colega Ricardo Machado sobre como a Biologia pode nos ajudar a compreender diversos fenômenos. Um exemplo é a delação premiada dos executivos da Odebrecht, que me lembrou um assunto comum no estudo da socialidade, o dilema do prisioneiro.
A política é mais antiga que o homem
A vaca subordinada
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
Era o primeiro dia da secretária e ela não parava de encarar a cliente que esperava a doutora no sofá de frente ao seu balcão. Uma enorme vaca, com ancas carnudas e manchas nos pelos mascava sabe-se lá o que do mesmo jeito que a secretária mascava seu chiclete. Ela já estava desconfortável com o olhar insistente da vaca, com seus olhos plácidos, mas isto era pouco comparado ao mal-estar de atender uma vaca num consultório psicanalítico.
-Moooça, você sabe se a doutora demora? – Perguntou a ruminante no exato momento em que a porta se abriu convidando-a para entrar.
-Bom dia, queira entrar e se acomodar no divã.
-Muuuito bom dia, doutora. Pedi esta sessão porque estou desapontada com o juízo que minhas companheiras de rebanho fazem de mim. Elas não me respeitam, ficam seguindo cegamente os palpites de uma vaca velha que é puro osso. Ninguém me escuta, fingem que eu não existo. Outro dia uma delas disse…
-Por favor, fale de você. Não quero saber o que as outras dizem. Quero saber como você se sente. – Interrompeu a psicanalista.
-Muuuda, eu me sinto muda. Ou então invisível. Ninguém me percebe! – Mugiu a cliente triste.
-Me desculpe a indiscrição, mas quantos anos a senhora tem?
-Moooagem nenhuma, eu sou jovem, não tenho problema em dizer minha idade. – Respondeu a vaca.
-Imaginei, a senhora sabe que entre as suas pares a idade é o mais importante na definição de quem manda no rebanho?
-Múúúmias, quer dizer que eu devo seguir as múmias do rebanho? Pois para mim é a força que define. Eu, uma vaca grande, forte e viçosa, é que deveria liderar aquele bando de múmias. Não consigo aceitar que eu não seja a líder. – Revoltou-se a vacona.
-Pois é, em muitos animais é mesmo a força que determina a hierarquia, mas não é sempre assim. Vacas mais velhas sabem onde o pasto está melhor, são mais sábias. Por isso são respeitadas.
-Mooodestamente, tenho que reconhecer que elas são mesmo experientes. Têm seus méritos para liderar o bando. Mas eu também tenho.
-Nem tudo se ganha na força, minha cara. Por que não experimenta a tranquilidade de se deixar liderar, aproveita este tempo para aprender muito e espera que seu dia de líder ainda vai chegar? – Sugeriu a terapeuta.
-Muuuito obrigado, doutora. Não era o que eu esperava, mas vou tentar. Um dia chega a minha vez. – Despediu-se a cliente passando pela secretária que ainda ruminava seu chiclete.
Radka Sarova, Marek Spinka, Ilona Stehulova, Francisco Ceacero, Marie Simeckova, Radim Kotrba (2013). Pay respect to the elders: age, more than body mass, determines dominance in female beef cattle Animal Behaviour DOI: 10.1016/j.anbehav.2013.10.002
As festas de fim de ano aos olhos de um etólogo ateu
Várias pessoas que me conhecem pessoalmente se surpreendem com o minha ligação com as festas de fim de ano, já que sou ateu convicto e um cientista. Por isso resolvi explicar aqui a conexão que tenho com essas datas sob um ponto de vista etológico.
Primeiramente, somos uma espécie altamente adepta a simbologias. A data de nascimento de um importante personagem histórico ou a virada do ano nada mais são que símbolos. Existem fortes imprecisões na determinação da data do nascimento de Cristo. Um ano, nada mais é que o período (com 4 horas de imprecisão) que a Terra leva para rodear o sol. Além disso, não existe nada astronomicamente memorável no momento estabelecido como nosso ano novo. Talvez fosse melhor mudarmos de ano no solstício do dia 21 de Dezembro. É por isso que, sendo puramente racionais, não faria sentido idolatrar esses símbolos.
Mesmo assim não acho incongruente da minha parte celebrar as festividades de fim de ano sendo ateu e materialista (no sentido de valorizar o concreto, não de me apegar aos bens materiais). Encaro o natal como a celebração da nossa vida em sociedade, especialmente nossa unidade social, a família. O natal para mim é a principal época de retribuir o altruísmo que me foi concedido, ou pelo menos agradecer por ele (o agradecimento funcionando como uma nota promissória de reciprocidade futura). Sem reciprocidade a socialidade perece, especialmente se não houver laços fortes de parentesco. Por isso considero o natal uma data extremamente importante.
Já o réveillon para mim é a data da renovação. É quando analisamos o ano que passou para projetar o futuro. Obviamente também é simbólico, uma meia-noite como qualquer outra das 364, mas precisamos de uma data para fazer as coisas, como uma meta socialmente imposta para repensarmos a vida e celebrarmos os acertos.
Assim sendo, seja você cristão, budista, macumbeiro, cubista, corintiano ou ateu, feliz ano novo e até 2014.
Evitando virar almoço 13 – Diluição da predação e confusão
Nesse último ardil das presas para evitar virarem comida vamos falar do efeito do grupo na evitação da predação. Para muitas espécies, viver em grupo é uma forma de reduzir a chance de ser comido (assim como para outras, viver em grupo é uma forma de aumentar a chance de comer).
Pelo simples fato de estar em grupo a chance de ser comido diminui por pura probabilística. Sozinho, a chance de um filhote de pinguim ser o alvo de uma skua é de 100%. Num grupo de cinco a chance cai para 20%, ou 1/5.
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=XH-groCeKbE”]
Além disso, grupos podem trabalhar em conjunto de maneira coordenada para confundir o predador. Esse comportamento gera algumas das imagens mais belas da natureza, incluindo o balé de cardumes de anchovas ou bandos de estorninhos.
O poder do nós também pode ser egoísta
A vida em sociedade é importante para muitas espécies, incluindo, e especialmente, nós humanos. Somos uma espécie altamente social, cuja vida depende muito de outros membros da nossa sociedade. Sempre me ocorre isso quando vejo esses filmes de catástrofes. Tente imaginar, por exemplo, sua vida sem o agricultor que planta trigo ou sem o técnico responsável por manter funcionando sua linha de provisão de energia elétrica. Vivemos numa sociedade com especialização dos trabalhos.
Recentemente voltou à tona uma discussão que se considerava havia muito enterrada num artigo na Nature. A pergunta que intriga é, por que dedicar os seus esforços para realizar uma atividade que não irá te trazer um benefício direto? Por que ser altruísta?
Biólogos até a década de 1960 sustentavam que a evolução privilegiava ações de indivíduos que agissem pelo bem da espécie. No entanto, uma análise mais detalhada demonstrou que esses comportamentos dificilmente se sustentariam se o indivíduo infligisse a si um prejuízo para beneficiar seus pares. O prejuízo auto-infligido se converteria numa punição evolutiva, menos filhos herdando o hábito de ajudar os outros. Já o benefício oferecido pelo altruísta se converteria em mais descendentes para aqueles que não fossem generosos, rapidamente diminuindo na população o hábito de ajudar a qualquer preço.
No início do mês um pedreiro de Catalão, Goiás, encontrou uma pasta com 50 mil reais. Ele levaria 2 anos para ganhar esse valor, mas não teve dúvida, devolveu o dinheiro aos donos. Se a evolução privilegia o egoísmo, por que é que não vivemos numa sociedade de aproveitadores perversos? Por que é que vemos rotineiramente atos de generosidade como esse?
Acredita-se que a resposta esteja em benefícios indiretos. O ato altruísta pode gerar um prejuízo a quem o realiza de imediato, mas, se no futuro ele resultar em benefício, já se justificará. Esse benefício pode vir na forma de reciprocidade. A escola dona dos 50 mil encontrados pelo pedreiro lhe ofereceu em retribuição uma bolsa para o filho, estimo isso em uns 12 mil reais por ano, mais do que o dinheiro devolvido se o menino cursar do 5º ao 9º ano ali.
Mas e essas generosidades cujo receptor nunca fica sabendo quem o beneficiou? Receptores de sangue nunca ficam sabendo quem o doou. Como retribuir o favor? Muitas vezes quem retribui o favor, nesse caso, são os outros. Aqui na UNEMAT doador de sangue ganha isenção nas taxas de todos os concursos estaduais. Num experimento, pessoas identificadas como generosas receberam mais ajuda de estranhos do que pessoas sem essa característica. É o que chamamos de reciprocidade indireta.
Recentemente alguns pesquisadores têm tentado trazer de volta a seleção de grupo. Eles sugerem que dentro de um grupo de generosos, um egoísta seria privilegiado. No entanto, quando grupos são postos a competir, os mais generosos tendem a se dar melhor. Por isso os autores chamaram esse processo de seleção multinível, embora ela represente basicamente a seleção de grupo.
O problema é que esse conceito não contribui em nada mais do que a seleção sobre o indivíduo. Sim, grupos mais coesos superarão competitivamente os mais egoístas. Mas isso porque os indivíduos desses grupos se darão melhor. A unidade de atuação da seleção natural continua sendo o indivíduo e não o grupo.
A ressurreição da seleção de grupo reanimou a esperança numa natureza intrinsecamente altruísta1,2 e 3, especialmente em espécies sociais como a nossa. De fato, só a ação sinérgica de muitos indivíduos seria capaz de nos dar um poder maior do que a soma de cada um. No entanto, esse processo pode sim ser guiado por interesses pessoais e ainda assim trazer um benefício geral. Não é necessário que haja um altruísmo desprendido e cego, até evolutivamente perigoso, para que vivamos em uma sociedade forte e generosa.
A rainha paranóica
Naquela manhã no consultório psicanalítico.
A doutora saiu de sua sala ao ouvir os tambores e trombetas e chegou bem a tempo de ver a comitiva real saudando a entrada da rainha enquanto sua secretária, ainda na primeira semana no cargo, se encostava contra a parede oposta assustada.
– Vossa Majestade, que honra recebê-la mais uma vez! Vamos entrando, por favor. – E a analista escoltava a rainha para dentro do consultório.
A rainha havia mudado bastante desde que a doutora a vira pela última vez. E não era apenas a substituição da aparência jovial esbelta e pequena por um traseiro enorme que a rainha agora arrastava atrás de si como um produto das gerações seguidas de filhos que produzia. Antes ela emanava o viço de ter acabado de tornar-se rainha e o frescor que sua única oportunidade de acasalar na vida a tinha concedido. Nesta manhã a rainha parecia exausta e desconfiada.
– O que vossa majestade me conta? – Interrogou-a a terapeuta na penumbra.
– Doutora, nunca imaginei que ser rainha fosse tão duro. Desde que eu era apenas uma larvinha protegida dentro da célula de cria onde cresci eu sonhava em ser uma rainha. E agora que este sonho se realizou sinto falta das coisas boas da vida. – A abelhinha estava deitada no divã, mas percebia-se que seu corpo estava teso.
– É verdade, o poder cobra seu preço. Mas diga-me, o que a perturba?
– Olha, passo o dia todo perambulando pela colméia, eliminando feromônios para inibir as insurgentes e botando incontáveis ovos. O tempo todo minhas operárias se queixam da carga de trabalho e exigem mais ovos, principalmente querem irmãs. Sempre irmãs! Às vezes me pergunto quem é mesmo que manda naquela colméia.
– Trivers também se perguntou isso e as notícias não são as melhores. – Respondeu a psicóloga.
– Todos me perseguem! – Queixou-se a suprema sem escutar o comentário.
– Não é verdade. – Disse a analista.
– Ninguém acredita em mim – Retrucou a rainha.
– Eu acredito, majestade.
– A doutora diz isso só para me agradar.
– Eu não estou aqui para te agradar!
– Por que não? – Perguntou a rainha com olhar tristonho e as asinhas baixas.
Esse círculo branco em cima da rainha não é a coroa
Fonte: D. A. Alves
A abelha agora olhava ao redor, tensa. E continuou: – Na verdade, acho que minhas súditas, hemolinfa da minha hemolinfa, estão se rebelando contra mim. – Por fim revelou a monarca em um sussurro e engolindo em seco.
– Mas isto é muito grave! – Exclamou a terapeuta. – O que a levou a concluir isso?
A rainha fez sinal para que a doutora se aproximasse e olhou para a porta antes de prosseguir com a voz cada vez mais baixa. – Doutora, tem aparecido uns machinhos meio esquisitos das células de cria. Tenho certeza que aqueles não são filhos meus. E, se não são filhos meus, isso só pode ser sinal de um golpe de estado. Bem que a plebe me ameaçou. Se meu reinado não lhes satisfizesse então elas se reproduziriam.
– E você tem certeza de que estes machos são filhos de suas súditas revoltosas? Acho que deveria se preocupar menos, tenho certeza de que são descendentes da antiga rainha? – A voz da analista vindo daquele canto escuro e invisível atrás do divã não deixava a rainha nem um pouco à vontade.
– Você acha que poderiam ser netos da falecida? – A abelha eriçou as anteninhas pensando consigo mesma. – Isso explicaria por que eles nem se parecem comigo, explicaria a presença daquelas operárias tão velhas e ranzinzas e explicaria a devoção de minhas operárias ao cuidado com a minha prole. Talvez então não seja pura falsidade da minha corte. Talvez não estejam querendo me depor ou, pior, arrancar-me a cabeça. – Os ocelos da rainha recomeçavam a ganhar brilho e um esboço de sorriso surgia em seus palpos labiais.
– E não se esqueça que estas operárias remanecentes nem são aparentadas suas, elas não teriam nada a perder em deixar seus filhos aos cuidados das operárias que deveriam se ocupar da sua prole. – Lembrou a psicóloga.
– Estou tão aliviada. Nem dormia mais direito com medo de tornar-me uma Maria Antonieta de seis pernas, ficando com as cerdas brancas da noite para o dia antes da execução. Doutora, te devo a estabilidade política de meu reino. – Bradou a monarca.
– Nosso tempo se esgotou, majestade. Posso esperá-la na próxima semana?
Ao abrir da porta a comitiva real imediatamente se curvou em reverência. A rainha caminhou para fora do consultório parecendo muito mais leve. – Pode apostar, doutora. Até logo.
Alves DA, Imperatriz-Fonseca VL, Francoy TM, Santos-Filho PS, Nogueira-Neto P, Billen J, & Wenseleers T (2009). The queen is dead–long live the workers: intraspecific parasitism by workers in the stingless bee Melipona scutellaris. Molecular ecology, 18 (19), 4102-11 PMID: 19744267
Os babuínos entediados
Naquela manhã no consultório psicanalítico
A Doutora recebeu o aviso afobado de sua secretária e foi à porta. Na sala de espera havia cerca de 30 babuínos chacma espalhados nos bancos, sentados sobre o cesto de revistas e na mesa de centro. Ao ouvir o estalo da porta todos se voltaram para ela ao mesmo tempo. A secretária era nova em sua função, o que a espantara tanto em geral era parte da rotina da psicóloga.
– Quem é o primeiro? – Ela perguntou com tranquilidade. Uma mão se ergueu e quase instantaneamente todas as outras levantaram-se também.
– Você, entre. – Disse a Dra. apontando para um macho grande com os pelos de trás da cabeça mais arrepiados e o focinho mais longo que os demais.
O babuíno a seguiu consultório adentro e em um instante estava acocorado sobre o espaldar do divã.
– Doutora, estou incomodado. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma rotina monótona. – Disse o bicho coçando com o indicador o umbigo.
– Ué, e porque você não procura sair dessa rotina? Vá fazer coisas diferentes.
– Impossível, Dra.! Temos que viver em grupo para conseguirmos alimento mais eficientemente e nos protegermos de predadores. Se decido me catar quando todos estão indo beber água, ora, então isto não é bem vida em grupo, não é mesmo? – Disse o macacão.
– Bom, há riscos que se tem de correr para mudar. Poderia vez por outra, quando estivesse sem nenhum predador espreitando, fazer algo diferente. – Sugeriu a analista.
– A Sra. não entende. Se decido fazer algo diferente logo todos estão fazendo igual a mim. E então deixa de ser diferente, volto à rotina. – A psicóloga parecia intrigada, mas compreendia o que estava acontecendo.
– Essa imitação não costuma ser assim o tempo inteiro. Ela deve ser pior antes de vocês começarem a comer, em vegetações mais fechadas e em grupos mais próximos. – Afirmou a analista.
All together now!
Fonte: www.gemata.com
– Puxa, doutora, é isso mesmo. Como a senhora sabe? – Agora era o macaco que estava intrigado.
– Minha profissão exige estes conhecimentos. Mas então, sabendo disso, por que você não aproveita momentos em que a tropa esteja saciada, em vegetação aberta e mais afastados entre si para cuidar de seus próprios interesses? – Sugeriu a terapeuta.
– É, deve funcionar. Mas essas ocasiões são tão raras. – Lamentava-se o babuíno quando a doutora respondeu.
– É, você tem razão, é essa rotina que garante nossa sobrevivência. – Finalizou o babuíno. – Até a próxima, doutora.
A terapeuta acompanhou o grande macaco até a porta. Ao ouvir o clique da maçaneta todos se voltaram para a analista ao mesmo tempo.
– Quem vem agora? – Ela perguntou outra vez. Todas as mãos se levantaram novamente.
A psicóloga escolheu uma das muitas fêmeas ali presentes que a acompanhou ao consultório e sentou-se no alto do espaldar do divã.
– Doutora, estou incomodada. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma tediosa rotina, a senhora pode me ajudar? – A analista deu um suspiro longo como seria aquele dia.
King, A., & Cowlishaw, G. (2009). All together now: behavioural synchrony in baboons Animal Behaviour, 78 (6), 1381-1387 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.09.009