Pensamento de Segunda

Em homenagem às hipóteses de pelúcia do Glauco Machado

“A falha de uma teoria deixa o público em geral decepcionado. Já que a ciência prospera se auto-corrigindo, nós que praticamos a mais desafiadora das artes humanas não podemos partilhar desta idéia. Refutações quase sempre trazem lições positivas que sobrepôem-se ao desapontamento, mesmo que nenhuma teoria nova preencha a lacuna.”
Stephen Jay Gould

Sorteio do livro Com quantas memórias se faz uma canoa

Eu, que sempre fui apaixonado pelo mar, me encantei desde a primeira vez que visitei o litoral paulista com as canoas dos caiçaras. São canoas de um só pau e bem coloridas cujo feitio as torna robustas, velozes e companheiras de incontáveis histórias.

 

canoas

Quer? Mande a sua foto.

Fonte: www.io.usp.br

 

São estas as histórias que estão contadas no livro “Com quantas memórias se faz uma canoa”. Um levantamento da cultura caiçara através de um de seus mais eloquentes produtos. Os autores Márcia Denadai, Maria Angélica Gonçalves, Débora Olivato e Alexander Turra compuseram uma obra extremamente bem ilustrada e bonita que traz ainda a história das canoas e sua relação com o município de Ubatuba, com a cultura caiçara, a arte da construção destas embarcações, a percepção deste povo sobre a pesca e preservação dos recursos pesqueiros e o próprio futuro destas canoas que dependem para seu feitio da derrubada de árvores de Mata Atlântica. Por fim o livro faz uma compilação dos “causos” contados pelos canoeiros da região em toda sua riqueza de tradição oral, exageros e fantasias.

O livro é um esforço do Instituto Costa Brasilis e do IO USP com o apoio da FundArt e o patrocínio da Petrobrás, Governo Federal e da Lei Rouanet. O lindo resultado obtido em parceria com a Empresa Júnior da ECA USP é uma forma de valorizar e divulgar a canoa caiçara entre tantas embarcações tão ricas que a gente do mar colocou em suas praias por todo o Brasil de forma a buscar ali seu sustento e sua felicidade.

icb 

 

Um exemplar me foi concedido para divulgação do livro. Para isso vou fazer um concurso de fotografias com o tema “O Homem e as águas*”, enviem as fotos de vocês para o e-mail edu_bessa@ig.com.br e eu as disponibilizarei online em um post futuro. Podem mandar mais de uma foto. O autor da melhor fotografia, escolhida por mim e pela primeira autora do livro, ganha o exemplar. As fotos deverão ser enviadas até o dia 21 de maio próximo.

 

______________________________________________________________________________________________

Disclaimer: O autor deste livro foi membro do Instituto Costa Brasilis e tem uma relação de amizade com os autores do livro.

* ampliei ligeiramente o espectro do tema para incluir águas continentais para permitir aos colegas aqui do MT participarem.

Quando a galinha tiver dentes e a cobra tiver pernas

À Profa. Christine Strüssman

Colega zoóloga da UFMT e nova visitante

 

No dizer popular quando você quer dizer que não faria algo de maneira nenhuma diz-se que só “quando a galinha tiver dentes” ou só “quando a cobra tiver pernas”. Cientificamente, no entanto, nenhuma das duas situações é assim tão inusitada quanto você gostaria. De fato, esta é uma das evidências mais interessantes e bonitas sobre a validade da teoria evolutiva.

A linha de pesquisa do Evo-Devo, do inglês evolution-development ou evolução-desenvolvimento, propõe estudar a origem das novidades evolutivas tanto em termos embriológicos. Ou seja, como adaptações como penas de aves ou a asa do morcego surgem durante o desenvolvimento embrionário. Na verdade é a modernização de um preceito já há muito sugerido, mas atualmente discutido, de que a ontogenia recapitula a filogenia, assistir o embrião se desenvolver seria como assistir o filme da evolução rebobinado. Claro que não é bem assim, mas é possível ter idéias muito boas sobre a evolução observando o embrião.

dentes da galinha

Os dentes da Galinha

Fonte: www.gamespot.com

 

Adoro exemplos da evolução não tão perfeitos. O besouro bombardeiro é um caso lindo da evolução, irredutível não, mas lindo. Mas o que eu gosto mesmo é das gambiarras evolutivas. Coisas que deixam claras que qualquer engenheiro de fundo de quintal faria melhor. Por que um animal que no final não teria dentes desenvolveria dentes no início de seu desenvolvimento apenas para voltar a perdê-los depois? A foto acima é de um embrião de galinha. Você consegue ver nele os dentes sendo formados? Mais adiante estes dentes regridem e desaparecem. Os Evo-Devolucionistas (acabei de inventar o termo) ainda relacionam isto ao fato de que um ancestral das aves, talvez o Arqueoptérix, tivesse dentes. É o desenvolvimento embrionário recontando a história da evolução.

 

pernas da baleia

Na setinha os brotos de pernas da baleia

Fonte: www.scienceblogs.com/pharyngula

 

O mesmo pode ser visto com as patas traseiras das baleias, por serem descendentes de um animal terrestre, as baleias necessariamente tinham quatro patas. Hoje as dianteiras formam as nadadeiras, mas o que foi feito das patas traseiras? A ontogenia nos conta que elas regrediram até desaparecerem e, de fato, o rico registro fóssil das baleias nos conta esta mesma história. As pernas das baleias chegam a surgir durante seu desenvolvimento embrionário, não uma perna completa e promissora (como era a dos ancestrais terrestres da baleia), mas os brotos que dariam origem a uma. Por isso a ontogenia não repete a filogenia, caso contrário a baleia teria em seu desenvolvimento a completa formação de uma perna para depois perdê-la. As baleias no máximo mantém vestígios dos ossos do quadril, da mesma forma que jibóias mantém vestígios das patas traseiras.

Vestígios são o que restou de um órgão que não realiza mais a sua função. Não confundam isto com Lamarckismo, não é uso e desuso! É que se, aleatoriamente, você sofre uma mutação que permite poupar a energia de produzir um ceco no intestino grosso porque já não depende para viver da digestão da celulose por bactérias que viviam ali, então esta energia pode ser gasta na produção de gametas que carregarão os genes para um apêndice no lugar em que antes havia o ceco. Membros são órgãos supérfluos para quem anda entre o folhiço no chão das florestas e podem ser substituídos para a natação, estes são os dois cenários possíveis para a evolução das serpentes e sua vida atual. Por isto a perda das pernas foi uma economia justa de energia, de fato, entre os grupos mais aparentados às serpentes, lagartos e anfisbenas, a perda dos membros é recorrente. Apenas um vestígio de membro pode ser encontrado nas jibóias, cuja persistênsia suspeita-se que se deve ao alinhamento dos parceiros durante a cópula. Em todas as outras serpentes os membros chegam a formar-se no estágio de brotos apenas para serem perdidos novamente. Que tipo de engenheiro colocaria rodas em um barco apenas para retirá-las novamente depois?

E os exemplos não param por aí, temos os axolotles do México que experimentalmente já até saíram de sua fase larval e tornaram-se adultos; temos nossa própria cauda que evolutivamente foi-se deixando tanta saudade, mas que está presente até a 16a semana da gestação. As mudanças evolutivas nunca ocorrem aos saltos ou teríamos um mundo habitado por monstros esperançosos de se encaixar num nicho e vicejar evolutivamente. Contudo, uma forma de produzir mudanças dramáticas na forma adulta de uma espécie é gerar uma pequena modificação em formas embrionárias. Galinhas têm dentes num momento de suas vidas, serpentes têm pernas também. Então, se você quer realmente denotar que não faria algo de maneira alguma, poderia dizer que só fará isso quando a evolução for refutada!

Feliz aniversário Brasília

Nesse aniversário de 50 anos da minha cidade natal fica meu desejo de dias melhores e minha gratidão por aquela terra que ainda hoje vejo como meu lar. Cresci escutando rock brasiliense, velejando no lago Paranoá, assistindo o sol nascer na esplanada, passeando no parque da Cidade e morando nas super quadras e olhando para o céu mais lindo do país. Parabéns, Brasília e melhores dias nos próximos 50 anos!

Pensamento de Segunda

“Há poesia real no mundo real. A ciência é esta poesia.”
Richard Dawkins

Pensamento de Segunda

“São os que sabem pouco, e não os que sabem demais, que frequentemente afirmam que a ciência nunca será capaz de explicar algo.”
Charles Darwin

A rainha paranóica

Naquela manhã no consultório psicanalítico.

 

ResearchBlogging.org

A doutora saiu de sua sala ao ouvir os tambores e trombetas e chegou bem a tempo de ver a comitiva real saudando a entrada da rainha enquanto sua secretária, ainda na primeira semana no cargo, se encostava contra a parede oposta assustada.

– Vossa Majestade, que honra recebê-la mais uma vez! Vamos entrando, por favor. – E a analista escoltava a rainha para dentro do consultório.

A rainha havia mudado bastante desde que a doutora a vira pela última vez. E não era apenas a substituição da aparência jovial esbelta e pequena por um traseiro enorme que a rainha agora arrastava atrás de si como um produto das gerações seguidas de filhos que produzia. Antes ela emanava o viço de ter acabado de tornar-se rainha e o frescor que sua única oportunidade de acasalar na vida a tinha concedido. Nesta manhã a rainha parecia exausta e desconfiada.

– O que vossa majestade me conta? – Interrogou-a a terapeuta na penumbra.

– Doutora, nunca imaginei que ser rainha fosse tão duro. Desde que eu era apenas uma larvinha protegida dentro da célula de cria onde cresci eu sonhava em ser uma rainha. E agora que este sonho se realizou sinto falta das coisas boas da vida. – A abelhinha estava deitada no divã, mas percebia-se que seu corpo estava teso.

– É verdade, o poder cobra seu preço. Mas diga-me, o que a perturba?

– Olha, passo o dia todo perambulando pela colméia, eliminando feromônios para inibir as insurgentes e botando incontáveis ovos. O tempo todo minhas operárias se queixam da carga de trabalho e exigem mais ovos, principalmente querem irmãs. Sempre irmãs! Às vezes me pergunto quem é mesmo que manda naquela colméia.

– Trivers também se perguntou isso e as notícias não são as melhores. – Respondeu a psicóloga.

– Todos me perseguem! – Queixou-se a suprema sem escutar o comentário.

– Não é verdade. – Disse a analista.

– Ninguém acredita em mim – Retrucou a rainha.

– Eu acredito, majestade.

– A doutora diz isso só para me agradar.

– Eu não estou aqui para te agradar!

– Por que não? – Perguntou a rainha com olhar tristonho e as asinhas baixas.

rainhaparanoica

Esse círculo branco em cima da rainha não é a coroa

Fonte: D. A. Alves

 

A abelha agora olhava ao redor, tensa. E continuou: – Na verdade, acho que minhas súditas, hemolinfa da minha hemolinfa, estão se rebelando contra mim. – Por fim revelou a monarca em um sussurro e engolindo em seco.

– Mas isto é muito grave! – Exclamou a terapeuta. – O que a levou a concluir isso?

A rainha fez sinal para que a doutora se aproximasse e olhou para a porta antes de prosseguir com a voz cada vez mais baixa. – Doutora, tem aparecido uns machinhos meio esquisitos das células de cria. Tenho certeza que aqueles não são filhos meus. E, se não são filhos meus, isso só pode ser sinal de um golpe de estado. Bem que a plebe me ameaçou. Se meu reinado não lhes satisfizesse então elas se reproduziriam.

– E você tem certeza de que estes machos são filhos de suas súditas revoltosas? Acho que deveria se preocupar menos, tenho certeza de que são descendentes da antiga rainha? – A voz da analista vindo daquele canto escuro e invisível atrás do divã não deixava a rainha nem um pouco à vontade.

– Você acha que poderiam ser netos da falecida? – A abelha eriçou as anteninhas pensando consigo mesma. – Isso explicaria por que eles nem se parecem comigo, explicaria a presença daquelas operárias tão velhas e ranzinzas e explicaria a devoção de minhas operárias ao cuidado com a minha prole. Talvez então não seja pura falsidade da minha corte. Talvez não estejam querendo me depor ou, pior, arrancar-me a cabeça. – Os ocelos da rainha recomeçavam a ganhar brilho e um esboço de sorriso surgia em seus palpos labiais.

– E não se esqueça que estas operárias remanecentes nem são aparentadas suas, elas não teriam nada a perder em deixar seus filhos aos cuidados das operárias que deveriam se ocupar da sua prole. – Lembrou a psicóloga.

– Estou tão aliviada. Nem dormia mais direito com medo de tornar-me uma Maria Antonieta de seis pernas, ficando com as cerdas brancas da noite para o dia antes da execução. Doutora, te devo a estabilidade política de meu reino. – Bradou a monarca.

– Nosso tempo se esgotou, majestade. Posso esperá-la na próxima semana?

Ao abrir da porta a comitiva real imediatamente se curvou em reverência. A rainha caminhou para fora do consultório parecendo muito mais leve. – Pode apostar, doutora. Até logo.

 

Alves DA, Imperatriz-Fonseca VL, Francoy TM, Santos-Filho PS, Nogueira-Neto P, Billen J, & Wenseleers T (2009). The queen is dead–long live the workers: intraspecific parasitism by workers in the stingless bee Melipona scutellaris. Molecular ecology, 18 (19), 4102-11 PMID: 19744267

Pensamento de Segunda

“As descobertas mais importantes responderão perguntas que ainda nem sabemos como perguntar e vão se referir a objetos que nem mesmo imaginamos.”
John Bahcall

Os babuínos entediados

Naquela manhã no consultório psicanalítico

ResearchBlogging.org

A Doutora recebeu o aviso afobado de sua secretária e foi à porta. Na sala de espera havia cerca de 30 babuínos chacma espalhados nos bancos, sentados sobre o cesto de revistas e na mesa de centro. Ao ouvir o estalo da porta todos se voltaram para ela ao mesmo tempo. A secretária era nova em sua função, o que a espantara tanto em geral era parte da rotina da psicóloga.

– Quem é o primeiro? – Ela perguntou com tranquilidade. Uma mão se ergueu e quase instantaneamente todas as outras levantaram-se também.

– Você, entre. – Disse a Dra. apontando para um macho grande com os pelos de trás da cabeça mais arrepiados e o focinho mais longo que os demais.

O babuíno a seguiu consultório adentro e em um instante estava acocorado sobre o espaldar do divã.

– Doutora, estou incomodado. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma rotina monótona. – Disse o bicho coçando com o indicador o umbigo.

– Ué, e porque você não procura sair dessa rotina? Vá fazer coisas diferentes.

– Impossível, Dra.! Temos que viver em grupo para conseguirmos alimento mais eficientemente e nos protegermos de predadores. Se decido me catar quando todos estão indo beber água, ora, então isto não é bem vida em grupo, não é mesmo? – Disse o macacão.

– Bom, há riscos que se tem de correr para mudar. Poderia vez por outra, quando estivesse sem nenhum predador espreitando, fazer algo diferente. – Sugeriu a analista.

– A Sra. não entende. Se decido fazer algo diferente logo todos estão fazendo igual a mim. E então deixa de ser diferente, volto à rotina. – A psicóloga parecia intrigada, mas compreendia o que estava acontecendo.

– Essa imitação não costuma ser assim o tempo inteiro. Ela deve ser pior antes de vocês começarem a comer, em vegetações mais fechadas e em grupos mais próximos. – Afirmou a analista.

babuinos

All together now!

Fonte: www.gemata.com

 

– Puxa, doutora, é isso mesmo. Como a senhora sabe? – Agora era o macaco que estava intrigado.

– Minha profissão exige estes conhecimentos. Mas então, sabendo disso, por que você não aproveita momentos em que a tropa esteja saciada, em vegetação aberta e mais afastados entre si para cuidar de seus próprios interesses? – Sugeriu a terapeuta.

– É, deve funcionar. Mas essas ocasiões são tão raras. – Lamentava-se o babuíno quando a doutora respondeu.

– E olhe, pare de falar mal da rotina. Pare com essa sina anunciada de que tudo vai mal só porque se repete. Pensando firme, nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas: dia azul, lua cheia, primavera, barulho do mar.

– É, você tem razão, é essa rotina que garante nossa sobrevivência. – Finalizou o babuíno. – Até a próxima, doutora.

A terapeuta acompanhou o grande macaco até a porta. Ao ouvir o clique da maçaneta todos se voltaram para a analista ao mesmo tempo.

– Quem vem agora? – Ela perguntou outra vez. Todas as mãos se levantaram novamente.

A psicóloga escolheu uma das muitas fêmeas ali presentes que a acompanhou ao consultório e sentou-se no alto do espaldar do divã.

– Doutora, estou incomodada. Todos da nossa tropa fazem sempre as mesmas coisas, caímos em uma tediosa rotina, a senhora pode me ajudar? – A analista deu um suspiro longo como seria aquele dia.

 

King, A., & Cowlishaw, G. (2009). All together now: behavioural synchrony in baboons Animal Behaviour, 78 (6), 1381-1387 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.09.009

A visita de um fantasma

Eram 8 horas da manhã e meu visitante chegou precisamente no horário, não que eu fosse esperar algo diferente, afinal era um britânico. Ele chegou com um cabelo imaculadamente branco e a barba, igualmente alva, muito cheia e bem aparada, uma aparência que lembrava Sigmund Freud. Minha missão naquela manhã era ciceroneá-lo na visita ao campus, mas queria especificamente mostrar-lhe o laboratório de informática.

Apesar de seus 73 anos e de exalar um forte cheiro de cigarro, meu convidado me seguia a passos rápidos pelos corredores do campus. Perguntei-lhe o que gostaria de ver e ele logo pediu para ir até a biblioteca. Folheou os exemplares mais recentes da Nature e da Science com curiosidade, de vez em quando se atinha um pouco a examinar um artigo sobre métodos moleculares e evolução, sempre olhando muito de perto através das lentes redondas de seus óculos, sua visão era muito ruim. Mostrei-lhe os artigos que apresentaram a clonagem da ovelha Dolly e o sequenciamento do genoma humano, seu queixo caiu e logo em seguida abriu um sorriso. Levei-o a um laboratório de biologia molecular, mostrei-lhe o sequenciador e o PCR. Ele corria os dedos por sobre os aparelhos, depois fomos a uma sala onde um colega mostrou o último gel de eletroforese que havia corrido sob a iluminação UV intensa. Meu convidado estava extasiado, embora tenha ficado visivelmente intrigado com a cor morena da pele de meu colega. Ele era um eugenista confesso, apesar de ter trabalhado em companhia de indianos ainda tinha imbuída em sua mente a superioridade dos caucasianos.

Quando tive chance apontei para uma sala no corredor e o fiz entrar. Ali havia uma dezena de computadores e lhe perguntei se sabia o que era. Ele respondeu perguntando se era um computador, sua genialidade de raciocínio era assombrosa. Liguei a máquina e comecei a apresentá-la ao convidado maravilhado. Mostrei-lhe a internet, até entrei na página da Wikipedia sobre ele. Mas o que mais queria era apresentar-lhe as planilhas de cálculo, abri o programa de estatística que mais usávamos no laboratório, importei uma tabela de dados e dei o comando para rodar uma análise de variância. Em menos de um segundo a tela ficou preenchida com os números resultantes e os olhos de meu convidado faiscaram de prazer. Ele disse que não acreditava que ainda utilizássemos aquilo. Respondi que usávamos, mas que muita coisa nova e interessante havia surgido desde então para outras finalidades. Assim, mostrei-lhe uma análise de componentes principais, um dendrograma, depois fui aos métodos de aleatorização de resultados como o Monte Carlo. A cada estatística que eu apresentava dava uma idéia dos conceitos matemáticos envolvidos, mas minha ingenuidade era humilhada por uma enxurrada de perguntas para as quais eu não tinha a mais vaga idéia de resposta. Mesmo assim o fantasma foi tolerante comigo, o que não combinava com a visão arrogante que me haviam passado dele, que costumava chamar de óbvias idéias que ninguém além dele conseguia compreender.

A mente de meu convidado maquinava em silêncio enquanto ele se espantava com a capacidade de cálculos velozes do computador, mesmo sendo tão pequeno. Fiz questão de mostrar-lhe um Mac Book que havia na sala e processava sua análise de variância igualmente rápido. Passamos a manhã e também a tarde juntos, eu fui seu guia pelas novidades da biologia e estatística desde a década de 60. Ao final da tarde meu convidado me agradeceu muito, mas disse que precisava voltar para sua fazenda e que Ruth o estava esperando para jantar. Ele se retirou da mesma forma que entrou pela manhã, mas sabia que o fantasma continuaria presente em meu trabalho, assim como no de muitos cientistas.