Convergência – I


“É evidente que pensam ser a missão mais importante da História”, explicou Lupov. “Viagem no tempo, afinal”. Sua velha face não denunciava nenhum sorriso, e seu leve sotaque russo apenas tornava a situação mais tensa. Um pesadelo remoto do professor Adell se realizava – um grupo de malucos o seqüestrava para tentar viajar no tempo. De alguma forma entenderam o que “Operações Transitivas fechadas e o Princípio de Incerteza” significava.
“Se pudéssemos alterar a história, isso realmente seria ‘histórico'”, arriscou brincar Adell. “Infelizmente, meu trabalho não tem qualquer relação com isso, e pessoalmente não acho que seja possível”.
“Também não acredito que seja possível, pelo menos não como eles pensam que seria”, respondeu Lupov. “Só posso lamentar que seu trabalho em verdade esteja diretamente relacionado com esta possibilidade, o que explica por que o seqüestraram”. Não havia funcionado.
“Sim, estou aqui contra minha vontade. Você pode me ajudar a sair? O que poderia fazer contra eles?”
“Lamento ainda mais, mas suspeito que não haja nada que você ou eu possamos fazer, principalmente se estivermos certos, e eles, errados. Esta é a crueldade da situação”.
“E quem seriam eles?”, finalmente perguntou Adell.
A resposta lhe atingiu como um golpe:
Majestic 12“, disse Lupov.


“Pela sua reação, imagino que já tenha ouvido falar”.
Adell começava a se desesperar, e Lupov subitamente deu uma gargalhada.
“O que estou lhe dizendo sem dúvida deve lhe soar como loucura” continuou. “Poderia lhe dizer que não somos um bando de malucos, mas sinceramente, estaria mentindo. O que sei sobre o comitê Majestic 12, nome que deve ter lhe soado tão pouco sensato, é que o conhecemos muito antes que se tornasse popularmente conhecido como algo relacionado a extraterrestres e todas essas bobagens. Estou razoavelmente seguro de que o projeto ou o comitê nada têm a ver com alienígenas”.
Adell permanecia sem palavras. Lupov se estendia: “O comitê pensa que o projeto deve permanecer secreto, por uma série de motivos, e isto é algo com que todos parecem concordar. Mesmo eu. Agora, por que criaram e divulgaram essa história de extraterrestres, é algo que só o comitê deve saber ao certo. Torna muito mais difícil ter conversas como a que estamos tendo agora, embora eu deva admitir que tenha sua dose de humor, afinal…”.
O professor parecia não ouvir, e isso fez Lupov parar por um instante.
“O que querem de mim?”, perguntou Adell.
“Você deve trabalhar no comitê científico do projeto, professor. Exatamente de que forma, é algo que dependerá de uma série de avaliações. Se tiver sorte, poderá seguir sua vida em algumas horas”.
“Então só me resta esperar…?”
“Sim. E ouvir as loucuras que tenho a lhe dizer, o que é um privilégio de dimensões que você só perceberá em alguns anos. O comitê está muito ocupado neste exato momento, e está seguro de que você acabará fazendo parte integral do projeto. É por isso que está falando comigo e não com um oficial militar”.
“Eu sou responsável por administrar o comitê científico, e se me permite dizer, salvei o mundo”. Novamente, nenhum sorriso no rosto de Lupov.
O rosto de Adell começava a se contorcer novamente.
“Você vê, camarada Adell, ao buscar controlar a história prevendo o futuro, o Projeto efetivamente já a controla. Há mais de meio século americanos e soviéticos vêm trabalhando no Projeto. A maior parte separadamente, claro. Mas toda a ‘Guerra Fria’ foi em grande parte impulsionada e mantida pelo desenvolvimento do Projeto. É mesmo uma coincidência curiosa de que o ano em que você nasceu tenha sido o ano em que a Guerra Fria acabou, graças ao meu trabalho”.
“Senhor… Lupov”, disse Adell lendo a placa sobre a mesa, “o senhor deve saber que nasci em 1979”.
“Precisamente, Adell. Foi em 1979 que nós finalmente conseguimos realizar uma reação controlada em laboratório de encadeamentos regressivos com níveis de energia milhares de ordens de grandeza menores do que o necessário até então. Até então os encadeamentos regressivos só haviam sido criados através de explosões termonucleares. Algumas mesmo na atmosfera, muito insensato. Praticamente todos os testes nucleares realizados depois dos anos 1950 foram testes de encadeamentos regressivos”.
“Vocês americanos realmente levaram a idéia a sério”, Lupov contava, “até foram à Lua para poder explodir quantas bombas quisessem por lá. A obsessão mútua de nossos dois governos com o Projeto tomou dimensões muito pouco razoáveis, embora ir à Lua tenha sido um feito notável. Nosso governo decidiu investir em formas alternativas. Quando conseguimos, seu governo esteve disposto mesmo a encerrar a ‘Guerra Fria’ para que pudéssemos desenvolvê-la em conjunto. Foi assim que salvamos o mundo”.
Era uma história muito pouco convincente, ainda mais quando contada por alguém que havia claramente vindo da Rússia. Sem muito a perder, Adell retrucou:
“Pensava que a Guerra Fria havia acabado com o colapso da URSS. Ainda que nossos dois governos tivessem negociado tal fim, não vejo como seu governo concordaria com o próprio colapso. Principalmente se foram vocês a criar uma tecnologia tão importante e eficaz em prever o futuro. Não previram o próprio colapso?”.
Lupov gargalhou novamente.
“É realmente engraçado que até hoje não possamos prever o futuro. Como lhe disse desde o início, não podemos, e não penso que seja possível. Mas o comitê sim. Os encadeamentos regressivos mesmo hoje são apenas demonstrações de conceito, em que a informação é enviada a algumas frações de segundo no passado. A informação só pode ser enviada enquanto um encadeamento perfeito é mantido, e até recentemente não conseguíamos mantê-lo além de alguns segundos”.
“Isso realmente não…” tentou dizer Adell contrariado, sendo logo interrompido.
“Nas últimas semanas estivemos testando a primeira reação contínua, com um encadeamento de longa duração. Em tese poderia finalmente receber informação do futuro. Mas os resultados são completamente ambíguos, inconclusivos. Não prova mesmo que conseguimos manter o encadeamento. Isso não impediu o comitê de tomar tais resultados extremamente a sério. Parte dessa histeria também atingiu alguns membros do projeto científico, que andam dedicando muito tempo a tentar validar e entender os resultados produzidos. Não posso fazer muito com relação a isso, já que o fazem em seu tempo livre”.
“E é aqui que chegamos a seu nome, professor Adell. Um de nossos camaradas achou ter descoberto uma forma de não apenas validar, como decodificar parte dos resultados recebidos. Isto quando nem mesmo enviamos qualquer sinal, e nem pretendíamos neste primeiro teste. Mas, como disse, o comitê levou tais resultados muito a sério, e estivemos mantendo o encadeamento até hoje”.
“O que o sinal supostamente decodificado revelou é uma série de 119 números, com mais de 73% de chances de ser um resultado aleatório, dada a imensa quantidade de dados originais produzidos no encadeamento. De forma completamente arbitrária tentou-se entender tal série como uma mensagem divina, e acredito que por mero acaso, uma parte desta série indicava um trabalho científico publicado por você”.
“‘Operações transitivas fechadas e o princípio de incerteza’“, suspirou Lupov, sentando em sua mesa e retirando um maço de papéis. Eram o trabalho de Adell. “Obviamente pensaram ser um sinal de deus que uma parte da série de números tivesse o mesmo número de registro de um trabalho publicado que estava de alguma forma relacionado com a possibilidade de viagens no tempo. Se isso já é temerário, a histeria foi além e a partir de seu nome, buscaram decodificar o resto da série de números. E concluíram por seqüestrá-lo, porque imaginaram que a mensagem ordenava”.
Adell finalmente sorriu. “Essa é uma história extremamente implausível para que resolvam me seqüestrar, mas sempre suspeitei que publicar aquele trabalho me traria problemas”.
“O trabalho é realmente muito interessante, parte das idéias estão corretas, professor, e algumas equações sugeridas estão próximas das que de fato utilizamos. Claro que seguindo o raciocínio exposto em seu trabalho, nunca conseguiria prová-las, nem seriam úteis para nada. Mas codificar o princípio da incerteza em função da inexistência de uma seta do tempo em nível subatômico é realmente parte das premissas envolvidas e verificadas no encadeamento regressivo. É interessante, mas então, não sabemos ao certo se o camarada que diz ter encontrado seu trabalho já não o conhecia de antemão e tentou apenas forçar tal interpretação. Se este é o caso, ele poderia tê-lo integrado ao projeto de formas muito mais convencionais, já que seu trabalho garantiria tal de toda forma”.
Lupov folheou o trabalho de Adell. Pela primeira vez em muito tempo, permanecia calado.
“E então?”, perguntou Adell.
“Bem, devemos esperar”, respondeu Lupov. “Não demorará muito até que nos contatem, e saberemos algo mais sobre seu futuro no Projeto”. Fitava intensamente para a tela de seu computador, calado.
“A estas horas já devem estar começando a procurar por mim”, comentou Adell. “Eu deveria estar participando de uma reunião importante. Todos sabem onde eu estaria, e não costumo desaparecer. Se eu retornar agora, talvez ainda possa dizer que foi apenas algum imprevisto…”.
Lupov permanecia calado.
“Veja, embora não tenha visto nenhuma prova, achei sua história curiosa”, conciliou Adell. “Fico lisonjeado que tenham apreciado meu trabalho, mas poderia ajudá-los muito mais se retornar a meu serviço. Realmente gostaria de participar da reunião a que deveria comparecer, e ainda penso que poderíamos agir como se nada tivesse acontecido…”
Sua reunião não irá mais acontecer“, Lupov afirmou. Apertou um botão, e um monitor ao fundo se acendeu exibindo imagens de um canal de notícias.
“As duas torres do World Trade Center acabam de ser atingidas por aviões. Sua reunião estaria ocorrendo em um dos andares diretamente atingidos. 79º andar”.
“Sinto muito, professor Adell. Bem-vindo ao Projeto”.
***

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