O Segredo de Gregor Samsa
Quer algo pior do que uma barata gigante? É você tornar-se uma barata gigante. É uma das obras mais famosas de Franz Kafka, A Metamorfose, onde o autor, digno de um Processo, em verdade nunca diz exatamente no que o protagonista, Gregor Samsa, se transformou. Todos presumimos – ou nos é ensinado! – que Samsa transformou-se em uma barata, mas o termo original em alemão, Ungeziefer, não é nem mesmo rigorosamente traduzível como “inseto”!
Tudo isso já tornaria a apreciação dos muitos significados de “A Metamorfose” mais saborosa – Samsa, além de todos seus problemas é injuriado como uma barata – mas Aberron de Fogonazos há alguns dias blogou sobre algo ainda mais curioso, e que efetua o nexo entre a literatura e a entomologia.
Resulta que ninguém menos que o autor russo Vladimir Nabokov, mais conhecido por escrever sobre outros temas, também era um entomologista! E um estudioso de insetos particularmente dedicado, capaz de, orgulhoso, distinguir espécies através da comparação sob microscópio da genitália dos bichos. O Museu de História Natural de Harvard ainda possui o “gabinete de genitália” de Nabokov. Estendendo-se por fim sobre o russo, o paleontólogo Stephen Jay Gould analisou a relação entre a literatura e a entomologia de Nabokov.
Retornando a Kafka a ao nexo, finalmente: Nabokov lecionou sobre A Metamorfose de Kafka, e não apenas como autor, mas também como entomologista, tentou definir em que tipo de inseto Gregor Samsa se transformou depois de seu “sono agitado”. Da transcrição de sua palestra:
“Muitos falam em barata, o que claro não faz sentido. Uma barata é um inseto achatado com grandes pernas, e Gregor não é nada achatado: é convexo em ambos os lados, barriga e costas, e suas pernas são pequenas. Ele se parece com uma barata em apenas um aspecto: sua cor é marrom. Só isso”.
O que Samsa seria então?
“Ele é apenas um grande besouro. (Devo adicionar que nem Gregor nem Kafka viram esse besouro muito claramente)”.
Uma barata, por sua repulsividade, talvez ainda soe mais impactante e absurda no contexto da Metamorfose, mas considere melhor o besouro:
“[Samsa] tem uma enorme barriga convexa dividida em segmentos e costas duras e redondas sugerindo um abrigo para asas. Em besouros esses abrigos escondem pequenas e frágeis asas que podem ser expandidas e então podem levá-lo por quilômetros e quilômetros em um vôo errático. Curiosamente, Gregor o besouro nunca descobriu que possuía asas sob a carapaça dura de suas costas”.
Nabokov completa:
“Esta é uma observação muito boa de minha parte para ser apreciada por todas suas vidas. Alguns Gregors, alguns Joãos e Marias não sabem que possuem asas”.
E é assim que, certa manhã, ao despertar de um sonho inquieto Gregor Samsa havia se transformado em uma criatura capaz de voar, sem no entanto nunca tê-lo percebido. A beleza e o significado disto, intencional ou não, só poderia vir de um entomologista. [via Fogonazos]
Discussão - 9 comentários
"A beleza e o significado disto, intencional ou não, só poderia vir de um entomologista".
Isso é Ciência Pós-Moderna!
“Não virá longe o dia em que a física das partículas nos fale do jogo entre as partículas, ou a biologia nos fale do teatro molecular ou a astrofísica do texto celestial, ou ainda a química da biografia das reacções químicas” (p.16).
“Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos
persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural” (p.16).
"A criação científica no paradigma emergente assume-se como próxima da criação literária ou artística, porque a semelhança destas pretende que a dimensão activa da transformação do real (o escultor a trabalhar a pedra) seja subordinada à contemplação do resultado (a obra de arte)" (p.20).
In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. Porto: s.n., 1985.
Disponível em:
Putz! Sinto-me "iluminado" com essa revelação, hehe!
Quanto disso havia sido pensado por Kafka, pergunto-me?
Eu não trabalho nem com entomologia, nem com literatura, mas acho sempre enriquecedor ler o seu blog. Parabéns!
Faltou o link para o texto do Boaventura!
Disponível em:
http://eugeniovital.googlepages.com/DiscursosobreasCiencias-Boaventurade.pdf
na edição que li de metamorfose (LP&M se não me engano... aquela com capa vermelha que vende nas bancas) a empregada, na única cena em que remete qual animal gregor seja, o chama de rola-bosta... o que nitidamente é um besouro, o que semre me faz estranhar, até hoje, todo mundo se referindo a ele como barata...
kafka era um perturbado, por causa do pai, que fica super claro em a carta ao pai... mas isso é outro papo.
bela divagação!
Olá,
Glenn, no comentário acima, falou exatamente o que eu iria dizer... Nesta edição da LP&M a empregada realmente refere-se ao rola bosta, tirando qualquer dúvida. De qualquer modo, como dito no post já existem outros indícios que vão sendo apontados no livro e nos leva a entender que não é uma barata.
Mas adorei o post, bem legal a ideia dele não se dar conta que tem asas, que tem outras possibilidades de viver...
parabéns!
Sempre pensei em Gregor como um besouro! Mas nunca cheguei a essa belíssima dedução sobre as asas! Pobre mortal!
Mas acho que a comparação não foi poposital... O conceito em si da metamorfose é fugir do nexo e da linearidade. É pertubar. Trata-se de induzir o medo no leitor de que um dia pode-se acordar e perder o controle sobre absolutamente tudo. No fundo, é bem depressivo. Não interessa se besouro, percevejo ou barata.
Parabéns pelo blog!
Certamente que Gregor era um besouro, mas o que chama a atenção mesmo é que, quantas familias igual a essa existem no mundo afora. E quantos gregores são usados para depois serem descartados como insetos..
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