O Apocalipse Inevitável (parte V)
No deserto do real de Matrix (1999), o planeta está envolto nas trevas. A própria humanidade havia bloqueado a luz do Sol em uma última tentativa desesperada de vencer os robôs, que se alimentavam diretamente de energia solar. Como resposta, e de alguma forma que nunca foi realmente explicada (afinal, é apenas um filme) as máquinas passaram então a colher energia de bilhões de seres humanos cultivados em casulos, com as mentes ocupadas em um mundo virtual.
Começamos falando de Apocalipses da ficção porque em 2007, no deserto real e vermelho de Marte, dois de nossos mais valentes robôs, Spirit e Opportunity, foram atingidos por um problema muito parecido. O planeta árido vê redemoinhos e tempestades de poeira a todo momento, e periodicamente as gigantescas tempestades se reúnem para englobar Marte completamente. Detalhes de seu relevo, que geralmente podem ser vistos claramente a grande distância devido à ausência de nuvens, são turvados por uma espessa camada de poeira. A poeira que se eleva até a alta atmosfera de Marte bloqueia a luz do Sol, praticamente transformando o dia em noite, ou em um “crepúsculo ao meio-dia”, prejudicando assim a fonte de energia das sondas-robô, os painéis solares.
Matrix e Marte, mas nós ainda estamos falando do Inverno Nuclear.
“A sonda espacial americana Mariner 9, o primeiro veículo a orbitar outro planeta, chegou a Marte no final de 1971. O planeta estava envolto por uma tempestade de poeira global. Enquanto as partículas finas lentamente retornaram à superfície, pudemos medir as mudanças de temperatura na atmosfera e superfície. Logo ficou claro o que havia acontecido”, escreveu Carl Sagan em um suplemento dominical lido por milhões naquele mesmo ano de 1983. O título? “O Inverno Nuclear”.
“Eu e meus colegas James B. Pollack e Brian Toon do Centro de Pesquisas Ames da NASA estávamos ansiosos por aplicar estas descobertas à Terra. … Juntando forças com Richard Turco, que havia estudado os efeitos de armas nucleares por muitos anos, começamos a dirigir nossa atenção aos efeitos climáticos da guerra nuclear”. O resultado desse trabalho seria o estudo científico que definiria o Inverno Nuclear.
Se a linhagem direta de conhecimento científico que levou à descoberta dos efeitos climáticos globais de uma guerra nuclear começava com Paul Crutzen e seus estudos sobre alta atmosfera, incluindo o ozônio, o que incluiu um ufólogo alertando sobre o câncer de pele no Congresso, foi Marte e suas tempestades de poeira que levaram Sagan ao Inverno Nuclear. O estudo TTAPS trabalha referindo-se tanto à ciência atmosférica terrestre de Crutzen quanto à extraterrestre desenvolvida entre outros pelo próprio Sagan.
Estes são detalhes deliciosos da história da ciência, no cruzamento entre ficção e realidade, sobre como cientistas planetários estudando a dinâmica de planetas a milhões de quilômetros de distância podem fazer descobertas importantes para bilhões de seres humanos em nossos próprios países. No entanto, estes detalhes curiosamente também seriam, e são usados, para criticar esta mesma ciência.
Desde o início “céticos” e negadores do Inverno Nuclear questionaram a validez do conceito. Décadas de políticas e trilhões de dólares e rublos haviam sido investidos sem considerar os efeitos climáticos globais de um confronto nuclear. Que estes efeitos fossem apocalípticos e questionassem tais políticas não seria aceito sem contestação.
Segundo tais críticos, a promoção intensa feita por Sagan e seus colegas, mesmo antes da publicação na Science, incluindo coletivas de imprensa e inúmeros programas televisivos, incluindo o painel de debate após a exibição de “The Day After”, refletiriam muito mais ativismo político que uma descoberta científica. A crítica se estende até hoje. Recentemente, o escritor de ficção científica (!) Michael Crichton proferiu uma palestra comparando a famosa equação de Drake sobre a existência de civilizações extraterrestres – popularizada principalmente pelo mesmo Sagan – com a ciência do Inverno Nuclear. Para ele, seriam ambas muito questionáveis, enquanto nenhum dos parâmetros usados nos modelos poderiam ser conhecidos com a segurança apropriada. Ficção e ciência, extraterrestres e o futuro da Terra novamente se cruzando, mas para negar o Inverno Nuclear.
Além dos ataques aos proponentes e a seus motivos, o questionamento ao Inverno Nuclear se dirigiria de forma concentrada justamente ao fato de que se baseava em modelos computadorizados da atmosfera. Na década de 1980, com computadores menos poderosos que um aparelho de MP3, o modelo utilizado no estudo TTAPS era de fato primitivo: lidava, por exemplo, com apenas uma dimensão. Toda a complexidade tridimensional da atmosfera, as interações imensamente complexas em diferentes latitudes e longitudes, o comportamento de sistemas complexos e caóticos como nuvens, eram todos simplesmente ignorados em um modelo unidimensional simplificado.
“É um exemplo absolutamente atroz de ciência, mas eu receio muito em expor seus erros publicamente. Acho que vou me distanciar desta: quem quer ser acusado de ser a favor da guerra nuclear?”, teria confidenciado o físico Freeman Dyson a Russell Seitz. Seitz citaria várias outras figuras acadêmicas renomadas criticando a ciência do Inverno Nuclear, incluindo o prêmio Nobel Richard Feynman. “Você sabe, não acho que esses caras realmente saibam do que estão falando”, teria dito. Victor Weisskopf, físico do MIT, resumiria a questão comentando como “Ah! O Inverno Nuclear! A ciência é terrível, mas talvez a psicologia seja boa”.
Um episódio especialmente embaraçoso aos defensores do Inverno Nuclear, e especialmente, a Carl Sagan ocorreu em 1991 quando em outro debate televisivo sobre as consequências da Primeira Guerra no Golfo, Sagan previu que a fumaça de centenas de poços de petróleo em chamas no Kwait, consumindo seis milhões de barris diariamente, teria um efeito similar ao de um Inverno Nuclear em pequena escala. A fumaça cheg
aria à alta atmosfera, e todo o sudeste asiático e possivelmente outros continentes ao norte poderiam passar um ano sem verão, frio e seco, prejudicando a agricultura sustentando centenas de milhões de pessoas. Em conjunto com Richard Turco, do Inverno Nuclear, também assinaria os mesmos alertas em editoriais publicados em jornais.
Nada disso aconteceu. De fato o impacto ambiental na região do Golfo Pérsico foi significativo, com dias transformados em noite, e a fumaça densa absorveu a radiação solar. No entanto ela nunca chegou à troposfera, nunca afetou assim áreas mais distantes, e à pouca altitude foi dissipada rapidamente pela ação atmosférica de nuvens e outros processos naturais.
Teria Sagan, ao tentar promover uma Verdade Inconveniente, vendido ao invés a Grande Farsa do Inverno Nuclear? Ao buscar salvar o mundo, teria subvertido a ciência que tanto defendeu como a vela na escuridão e a ferramenta indispensável a garantir nosso futuro? A resposta, ou o melhor que pudermos oferecer como resposta, no próximo nexo.
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Discussão - 4 comentários
KM,
Concordo que é necessário um pouco de cautela ao prever cenários apocalípticos unicamente "causados pelo homem".
A Terra é muito mais resiliente do que em geral se pensa ou acreditamos. A vida (como um todo) idem.
Exemplo:
Há 55 milhões de anos praticamente não haviam geleiras na Terra, por algum tempo, e a vida animal (principalmente os mamíferos) superou isto:
http://eternosaprendizes.com/2010/04/25/aquecimento-global-massivas-erupcoes-vulcanicas-foram-responsaveis-pelo-maximo-termico-paleoceno-eoceno-de-55-milhoes-de-anos-atras/
._._.
(ROCA, és o ROCA do Yahoo Respostas? Há qto tempo n vou lá ajudar a desmistificar 2012!)
Kentaro, vc sempre deixa todos com água na boca com seus textos. Ler seus posts me faz ter uma vontade louca de atualizar meu blog (5 posts + 12 no forno há teeeempos). Vc é inspirador.
Quanto a Sagan, sua coragem de fazer uma previsão e retratar-se depois, apontando onde seu modelo estava errado, mostra que ele era um cientista responsável.
Gostaria de comentar mais sobre o Inverno Nuclear, mas acho que seria spoiler e você certamente colocará melhor os novos estudos sobre o tema. Keep writing!
Obrigado ROCA!
E muitíssimo obrigado, Kim! No final, você não deixou o link de seu blog! 🙂
Olá Kim,
Sou eu mesmo.