O Apocalipse Inevitável (fim)

Zombieland

Não é o fim do mundo, mas você pode vê-lo de lá” – Pierre Trudeau

O Fim está Próximo, sempre esteve, sempre estará, exceto quando finalmente chegar. O lugar-comum de que a única certeza na vida é a morte também se aplica à espécie como um todo. E se mal conseguimos lidar com nossa própria mortalidade, que se dirá do inevitável fim da Humanidade – uma ideia tão perturbadora, tão assustadora, que pode ser mesmo impensável. De fato, a maior parte de nós lida com a questão evitando mesmo concebê-la: acredita-se que o apocalipse em si mesmo seria apenas uma grande revelação, o fim de uma era, enquanto a essência imortal de todos nós sobreviveria, de outra forma, eternamente. Se esta crença pode oferecer algum conforto imediato, permanece entretanto, e desafortunadamente, apenas uma questão de fé, e uma que pode ser perigosa quando motiva decisões em questões muito concretas.

No mundo real e objetivo que todos nós, crentes ou não, partilhamos, postergar o Apocalipse Inevitável é tudo que podemos fazer. Mais de 98% das espécies que já viveram foram extintas, vítimas de fenômenos naturais aos quais estavam completamente sujeitas. Embora nossa espécie tenha sido bem-sucedida em evitar o próprio fim – alcançando o número de 6,5 bilhões de indivíduos espalhados por todos os continentes – ela continua tão e por vezes mais vulnerável quanto outras espécies a uma série fenômenos naturais catastróficos. Mesmo aqueles perigos que conseguimos dominar, através da ciência e tecnologia, acabam por ser substituídos por outros criados pela mesma ciência e tecnologia. E os novos perigos de criação humana, como a Caixa de Pandora, uma vez descobertos não podem ser esquecidos, “desinventados”.

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Um dos últimos grandes Apocalipses pelo qual a vida no planeta passou foi a extinção K-T, que varreu os dinossauros. Ela é o nexo final que se liga pelo Inverno Vulcânico, decorrente de erupções naturais e periódicas, ao Inverno Nuclear, consequência de um confronto atômico. Depois de reinar por milhões de anos, os dinos teriam sido extintos não apenas como consequência direta do impacto de um asteróide, mas também da nuvem de poeira que teria lançado na alta atmosfera, provocando efeitos similares, e apocalípticos, como o dos invernos vulcânicos ou nucleares. A descoberta e associação do impacto de um asteróide com a extinção K-T também ocorreu aproximadamente na mesma época que o Inverno Nuclear foi descoberto.

Dos confins do Universo, das profundezas do planeta, ou pela mais sofisticada e poderosa criação humana, a devastação da “Escuridão” vista por Lord Byron seria a mesma.

Ainda que por mágica esquecêssemos o conhecimento, a ciência nuclear, estaríamos tão vulneráveis quanto os dinossauros ao fim inevitável, e dificilmente adiável uma vez que o poderio nuclear é até o momento também o único que poderá um dia, sim, nos salvar de tal ameaça – a energia que podemos extrair de reações químicas é o fator limitador que torna tão difícil conquistar o espaço. Não podemos nem devemos desejar abandonar a ciência, precisamos apenas controlá-la. E para isso, precisamos compreendê-la melhor.

Mais que a conscientização a respeito do fato de que o Fim está Próximo e como o estamos constantemente postergando, salvando o mundo, ou pelo menos, a nós mesmos diariamente, esta série pretendeu chamar atenção aos nexos entre os diversos Apocalipses. Por uma série variada de conexões, o buraco na camada de ozônio, a guerra atômica, o inverno nuclear, o inverno vulcânico e mesmo a extinção dos dinossauros se relacionam. E atualmente, relacionam-se de forma especial com o aquecimento global.

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Mais próximo da ameaça à camada de ozônio do que da extinção completa da humanidade vaticinada pelos proponentes do Inverno Nuclear, o aquecimento global provocado pela queima de combustíveis fósseis é o “fim do mundo” da vez. Como todos os Apocalipses anteriores, enfrenta contestação seja ponderada e razoável do processo científico, seja a radical e falaciosa movida por um sem número de motivos. Diferenciar um do outro nem sempre é simples. Havia, e há, céticos e negadores da ameaça ao ozônio, do inverno nuclear, vulcânico e da extinção K-T provocada por um asteróide. É apenas o fato de que tais temas saíram de moda o que os torna menos polêmicos.

É curioso que sejam os contestadores do Aquecimento Global que mais chamem atenção a sua relação com os apocalipses anteriores – embora isso seja mais facilmente compreendido porque a lógica subjacente é a de que, se os apocalipses anteriores foram evitados, talvez porque nem mesmo fossem de fato reais, então este novo “fim do mundo” deve seguramente ser mais um exagero. Um raciocínio temerário: se ter sobrevivido o dia anterior fosse o único parâmetro para prever com confiança a chance de sobreviver ao dia seguinte, seríamos todos imortais.

A verdade é que passamos assustadoramente próximos do Fim incontáveis vezes. Adiar o Apocalipse contou inúmeras vezes com fatores arbitrários e apenas marginalmente dependentes da ciência e da razão. Ronald Reagan, como presidente dos EUA, deveria estar plenamente ciente de relatórios científicos sobre as desastrosas consequências de um confronto nuclear, mas como anotou em seu diário, ficou “profundamente deprimido” após assistir a “The Day After”, e quando se reuniu e assinou tratados de reduções de armas com o premiê soviético Mikhail Gorbachev, três anos depois, teria enviado um telegrama ao diretor do filme reconhecendo seu papel.

Será possível que apenas através de um filme feito para TV o comandante-em-chefe tenha finalmente entendido o que dezenas de think tanks, instituições e toda a comunidade científica expressavam há décadas? Talvez este seja o perigo de ter no comando da maior potência mundial um ator de Hollywood. Este é o perigo de viver sob sistemas políticos claramente inapropriados para lidar adequadamente com os desafios que encaramos – embora, paradoxalmente, o principal desafio do século passado tenha sido consequência justamente da busca por algum outro sistema revolucionariamente mais adequado.

Se críticos da “Farsa do Aquecimento Global” a associam ao Inverno Nuclear e mesmo à Eugenia, é igualmente curioso, e compreensível, que os principais proponentes do “Apocalipse” da vez por seu lado raramente mencionem sua relação com apocalipses anteriores. A estes ativistas interessa pintar o Aquecimento Global como a maior ameaça já enfrentada pela espécie humana em toda a história, e inseri-lo no contexto de perigos anteriores, tão ou mais prementes, não é conveniente.

Apesar de fora de moda, contudo, o Inverno Nuclear continua sendo uma ameaça:

arsenal nuclear

O gráfico à esquerda já foi discutido aqui: em 1986, pouco depois da exibição de “The Day After” e a descoberta do Inverno Nuclear, EUA e a União Soviética entraram em acordo para reduzir drasticamente seus arsenais nucleares, em uma tendência que permanece até hoje. A linha negra total de armas sobre para então descer. Carl Sagan e um filme feito para TV, a seu modo, salvaram o mundo.

O gráfico à direita representa no entanto o Apocalipse Inevitável: apesar do número total de ogivas no mundo ter diminuído além das mais otimistas expectativas, o número de países com poderio atômico vem aumentando desde a primeira explosão em 1945, a uma média de um novo país para o clube nuclear a cada 5 anos. Não há sinal de que a tendência tenha se alterado. Cinco anos – calcule quantos novos países, quantos novos governos, presidentes ou generais, passaram a ter seu dedo sobre o botão vermelho desde que você nasceu. Aí podem se incluir Israel, Índia, Paquistão e Coréia do Norte. E em breve, provavelmente, Irã, como temido por Eli Wiesel em 1983.

Parece inevitável que cedo ou tarde, com tantos dedos, algum deles apertará o botão, provocando em minutos a morte de milhares, milhões. O mesmo estudo de Robock citado no texto anterior simulou o efeito de um conflito regional de pequena escala: não seria o fim, mas ele poderia ser visto de lá. Centenas de milhões seriam afetados em efeitos comparáveis ao do “Ano sem Verão” a inspirar “Frankenstein”. O gráfico da anomalia climática provocada mesmo por um conflito regional é fascinante, porque combina o famoso gráfico “hockey stick” para demonstrar o aquecimento global (em azul), com a previsão computacional que mostra os efeitos do confronto (em vermelho), com consequências climáticas já maiores do que toda a ação humana acumulada ao longo de mais de um século:

Hockey Stick vs Inverno Nuclear

Este gráfico talvez resuma o nexo indissolúvel entre as ameaças constantes e diversas que enfrentamos.

Se evitar todos os Apocalipses anteriores não é motivo para muito conforto, deve ser de esperança. Pelo menos um dos Apocalipses que discutimos aqui, a ameaça à camada de ozônio por CFCs, então largamente utilizados industrialmente, foi contida com base em pesquisa científica e protocolos internacionais assinados e ratificados mundialmente com sucesso.

E embora Reagan tenha destacado o papel de um filme feito para a TV, também foi influenciado pela ciência do Inverno Nuclear, que Gorbachev citou como um imperativo moral para que alguma atitude fosse tomada. Tais alertas científicos podem ter um efeito ambíguo e discutível sobre a população em geral, mas seu efeito entre representantes pode ser decisivo, ainda que largamente imprevisível.

Ao encerrar esta série, citamos mais uma vez o filósofo francês Edgar Morin:

“Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva. De um modo trágico, quanto mais nos aproximarmos do perigo, mais teremos chances de sair dele, mas aumentarão também mais os riscos de nele mergulhar”.

O Apocalipse é Inevitável, mas pode ser adiado.

– – –

Releia toda a série:

Discussão - 5 comentários

  1. Hugo disse:

    Parabéns pela série!
    Foi muito bem escrita e conduzida! Quem sabe com atitudes como esta consigamos adiar ainda mais os apocalipses...
    Abraços

  2. Kentaro Mori disse:

    Obrigado, Hugo!

  3. Magnus Deon disse:

    Acompanhei toda a série de textos. São milhares de nexos. Parabéns!

  4. raph disse:

    "Esta é a maior lição da natureza: da próxima vez que olhar um pequeno roedor em sua toca, saiba que foi graças a eles que sobrevivemos à época da grande extinção dos dinossauros. Nós somos filhos dos roedores, e das bactérias, porque nesse caminho cósmico, ninguém é mais especial que ninguém, a todos foi dada a mesma oportunidade de viver e de evoluir."
    De um jeito ou de outro, o apocalipse não é o fim... Pode ser o nosso fim, mas a vida não pode ser contida por apocalipses 🙂
    E o Aquecimento Global, este é o grande inimigo comum, o "invasor alienígena", contra o qual todos temos de nos unir para combater... A diferença, as vezes sutil, é que devemos combater a nossa própria ignorância - e não uma entidade externa.
    Porém, do jeito que somos seres viciados em simbologias, que combatamos o Sr. Aquecimento Global - um supervilão que veio salvar-nos desse ciclo rotineiro da Terra em torno do Sol. Ufa, finalmente um grande vilão para tornar nossa história interessante!
    "Rocket Man...
    It's gonna be a long, long, time...
    It's gonna be a long, long, time..."
    Abs
    raph

  5. Andréia disse:

    Parabéns, Mori. Excelente este teu seriado, mais interessante que novela.
    Apenas um reparo: se o aquecimento global conseguir atingir o ponto de não-retorno como aconteceu em Vênus, podemos extinguir toda a vida na Terra. Vida pode ser algo raro no universo e deveríamos cuidar melhor de toda ela. Acho que, talvez guiados por nosso antropocentrismo, não vemos muita valia na continuação da vida no planeta depois que a humanidade se for.

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