Ordem e Progresso Não-Linear

sr71

É objetivamente o avião mais espetacular do mundo. Não só possui linhas agressivas que parecem tão modernas quanto o mais estiloso dos bólidos de Fórmula-1, como é detentor do recorde oficial de velocidade a mais de 3.500km/h riscados no dia 28 de julho de 1976.

Você leu bem, o SR-71 bateu os 3.500km/h no distante ano de 1976, quando a Apple foi fundada por dois jovens barbados e os Ramones lançaram seu primeiro álbum. “O avião mais avançado e mais rápido do mundo voou pela primeira vez 47 anos atrás. O recorde de velocidade tem 35 anos”, destacou Carlos Cardoso em um excelente texto no MeioBit sobre o avião supersônico: “Ainda Que eu voe pelo Vale Da morte…”. Parece um paradoxo tecnológico. Onde está o sucessor do SR-71? E se for assim, onde estão nossos jetpacks? As questões estão entrelaçadas e antes de respondê-las é bom rever rapidamente o que consideramos progresso.

Vivemos cercados por tecnologia progredindo a um ritmo alucinante: computadores, celulares, MP3s, MP4s, MPns. Este ritmo alucinante tem um nome, é a exponencial Lei de Moore verificada há mais de cinco décadas, e como tal, nos acostumamos com ela. Toda a indústria de informação se estruturou em torno deste progresso previsto e concretizado, e com ela, muitos outros setores da sociedade, das finanças ao entretenimento. Assim é fácil esquecer que ela se aplica rigorosamente apenas à tecnologia de informação.

Se a indústria automotiva tivesse avançado sua tecnologia como a indústria de computadores, estaríamos dirigindo carros custando R$50 que andariam mais de 1.000km/l”, dizia o e-mail que você deve ter recebido pela primeira vez em um computador jurássico. E isto porque automóveis sim progrediram imensamente nas últimas décadas em vários aspectos. “Em 1964 estávamos dirigindo verdadeiras carroças, hoje carros têm mais eletrônica embarcada que aviões de caça. É ABS, controle de tração, sensores de pista, software que detecta quando você VAI perder o controle e reage evitando… até uma Palio com acelerador DBW detecta que o motor vai morrer e força a aceleração sem que você pise mais fundo (aconteceu comigo, me senti no KITT)”, escreveu Cardoso. Note contudo que são todos avanços relacionados diretamente com circuitos integrados.

Se há uma grande diferença que não deva diretamente algo a Gordon Moore, é que seu carro hoje, mesmo um Palio, pode ser Flex. É sua fonte de energia.

Na era dourada da ficção científica sonhava-se com um futuro repleto de carros voadores, jetpacks, conquista espacial e tanto mais. Bem, já foram criados muitos carros voadores, jetpacks e nós sim conquistamos a Lua. Podem ter sido saltos gigantescos para a humanidade, mas aqui está a questão, foram saltos movidos a energia química. Gasolina, querosene, mesmo peróxido de hidrogênio ou hidrogênio líquido são todos combustíveis químicos. Foram assim não por coincidência todos breves saltos, porque a energia química de ligação entre átomos é muito menor que aquela que une seus núcleos. É ordens de grandeza menor que a energia nuclear.

Se apenas tivéssemos à disposição reatores nucleares compactos, então carros voadores, jetpacks e a conquista espacial avançariam no ritmo sonhado pelas visões tecnológicas utópicas do tempo dos Jetsons. Mas você se sentiria confortável com um reator nuclear nas costas? Por trás deste sonhos estava o pré-requisito de uma revolução energética que a tecnologia a princípio permite, mas a riscos e custos ambientais que logo provaram ser inaceitáveis.

E não só o uso da energia nuclear encontrou limitações, como o futuro dourado de progresso linear e contínuo sofreu um enorme golpe quando mesmo a fonte de energia química abundante de que dispúnhamos encontrou seus limites naturais e ambientais.

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No gráfico acima [fonte], é fácil entender como os Jetsons no início da década de 1960 podiam sonhar com carros voadores. O consumo de energia aumentava a um ritmo quase tão alucinante quanto uma Lei de Moore – especialmente nos EUA. O progresso energético estava em curso. O início da década de 1960 também foi o período de financiamento e desenvolvimento do que se tornaria o SR-71 e em que John Kennedy prometeu pisar na Lua até o fim da década. O progresso parecia seguro. Parecia.

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Este segundo gráfico é menos animador. É o consumo comercial de energia por habitante de 1860 a 1995. Note que a partir da década de 1950 o ritmo de crescimento per capita é ainda mais fenomenal, contudo em meados da década de 1970 o progresso sofre uma queda e então estagnação. Foram as crises do petróleo, quando a produção nos EUA atingiu seu ápice. Passou-se a depender cada vez mais de fontes no Oriente Médio e outros países que quase imediatamente capitalizaram sua nova importância criando cartéis. Logo depois a instabilidade política de tais fontes só se acentuaria, e entre muitas outras consequências as crises levaram à criação no Brasil do PROALCOOL que hoje leva ao seu carro Flex.

O consumo de energia global continua crescendo vertiginosamente, mas a população aumenta a um passo ainda maior. Até o fim deste ano seremos sete bilhões de pessoas, dependendo primariamente de combustíveis fósseis, enfrentando o dilema dos muitos riscos da energia nuclear e a incerteza de fontes alternativas, sem a revolução energética de que os Jetsons dependem, limitados não pela quantidade de energia que conseguimos usar, mas pela que podemos usar. O que, no dia-a-dia, é o que podemos pagar. Os desafios são ainda maiores enquanto a produção mundial de petróleo, Oriente Médio incluído, pode já ter atingido seu ápice.

Relembre agora o ano do recorde do SR-71. 1976. Note que o último ser humano pisou na Lua em 1972, com o encerramento antecipado do programa Apollo. Entre as muitas perspectivas que podem ser oferecidas para não termos voltado à Lua ou não termos quebrado o recorde do SR-71, uma das mais fundamentais é a de encará-los como o canto do cisne de uma era em que energia não era um problema.

Em 1964, podíamos dirigir carroças, mas essas carroças sob certo ponto de vista eram máquinas mais poderosas que as que dirigimos hoje, simplesmente porque consumiam mais energia. Eram muito menos eficientes, mais pesadas, mais barulhentas, mais poluentes. O SR-71 também era menos eficiente que os satélites e aviões espiões não-t
ripulados que o substituíram. Não havia mais razão econômica para manter a frota de SR-71s, como não havia para criar uma próxima geração: ainda que exista um sucessor secreto em atividade hoje, que voe ainda mais rápido e seja mais versátil que satélites de reconhecimento, é pouco provável que seja tripulado. Em 2004 a NASA testou o pequeno X-43, não-tripulado, que atingiu o recorde de velocidade 12.144km/h, quase o triplo do SR-71. Em uma certa ironia, o X-43 foi lançado de um B-52, aeronave que deve prestar serviço por mais de um século.

A ciência tem há mais de trezentos anos progredido vertiginosamente em inúmeras áreas do conhecimento, fundamentando avanços tecnológicos estupendos em ciclos de progresso que parecem eternos enquanto duram. Poucos deles têm sido progressos inexoráveis, e nenhum deles poderá se manter indefinidamente.

Não temos jetpacks para ir ao trabalho, por outro lado hoje podemos trabalhar sem sair de casa. E sem o risco de um acidente radioativo caso deixemos cair café na mochila.

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Leitura recomendada:

[Imagem no topo: Drublair.com]

Discussão - 7 comentários

  1. Belo texto.
    Mas mesmo a tecnologia flex está ligada à lei de Moore. Os sensores que percebem os índices de mistura do combustível, bem como a o sistema de distribuição e injeção eletrônica que fazem a mistura adequada de ar-combustível e detonam no tempo apropriado dependem da velocidade de processamento dos chips.
    []s,
    Roberto Takata

  2. Agnaldo disse:

    Breve seremos baterias para nossos próprios eletrônicos, para aliviar nossa obesidade sedentária ficaremos em bicicletas ergométricas gerando energia para nossos computadores e robôs de manutenção.
    Não temos medo de ser imprudentes, temos é culpa pela morte de outros, por isso não deixamos alguém entrar em um foguete construído em casa e se lançar à marte.
    Podemos mandar robôs desumanos lá mapear os planetas e então recriá-los aqui em nossos televisores "3D".
    Quero muito pular de uma ponte, de bungee ou base jump, em direção ao desconhecido, mas minha família e amigos me seguram pelo braço, "é perigoso, menino!", que coisa chata, tediosa!
    Sim, eu quero usar uma bomba nuclear nas costas e quero viajar até alfa do centauro vestindo nada mais do que um capacete. Eu iria nu se a seleção natural permitisse!
    Termino este comentário aparentemente suicida com a música de abertura do Plunct, Plact, Zum!: Raul Seixas - Carimbador Maluco.

  3. Rafael disse:

    ...por outro lado temos equipamentos que destroem células cancerigenas promovendo curas que outros métodos seriam impossíveis de curar, por outro lado temos submarinos e navios quebra-gelo e porta-aviões colossais que podem(e vão) ficar 25 anos sem precisar reabastecer e sem gastar uma gota de petróleo ou outro tipo de fonte de energia.
    Não entendo esse desgosto com a energia nuclear, temos acidentes e mal-uso de tecnologia desde o tempo das lanças e espadas. Não é por isso que devemos ser contra o desenvolvimento e uso de uma tecnologia que sem duvida é a melhor forma de obtenção de energia atualmente.

  4. rafael disse:

    A questão economica é sempre importante nessas questões. Precisamos sempre avaliar o custo-beneficio a curto e a longo prazo. Não basta ter tecnologia. No nosso dia a dia mesmo provavelmente usamos coisas que devem ser muito rústicas se comparadas à tecnologias a nossa disposição em laboratórios mas que ainda possuem um custo benefício pior.

  5. Vinicius disse:

    Interessantíssimo o texto! Nunca tinha parado pra pensar na questão energética como limitante ao desenvolvimento tecnológico (limitante à redução de custos e viabilidade dos projetos, na verdade).
    Mas Kentaro, o recorde não pertence ao X-15, que chega a mais de mach 6?

  6. Reinaldo A. Schroeder Filho disse:

    Comparando com os Jetsons: Curiosamente eles não tinham nem metade da eletrônica utilizada hoje numa casa de classe média.
    seus robôs apesar de até terem emoções eram puramente mecânicos, seus carros voavam, mas tinham que ser pilotados à mão, como teco-tecos. suas fábricas eram todas controladas manualmente, e internet nem pensar.
    é um caso irônico onde o futuro se torna obsoleto antes mesmo de acontecer.....

  7. gostei do texto. foi conciso e direto. mas nao sei, nao concordo muito com o ponto de vista. ao menos o ponto de vista inicial. veja, o final foi melhor do que ele todo.

    o x-43 foi bem mais rapdo -- apesar de ser considerado tecnicamente um aviao, nao é bem um aviao -- e mesmo os satelites cumprem melhor a missao q o cara e belo sr-71.

    mas nao vejo nada de retrocesso.
    é o progresso cientifico q avança msm. antes os eua gastava muito para ter parcos resultados. hoje se gasta mais eficientemente -- apesar de alguns projetos serem realmente geniais, como o b-52, o u-2, o tu-95, o tu-160, o mig-25[31] -- e continuam ate hoje plenos e voando, ou andando.

    sabe, é como uma boa ideia, uma boa tecnologia.
    é tao pratica q persiste ate hoje. afinal os motores a combustao evoluiram mas continuam 'combustando'.

    abraços.

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