A Garota Afegã em 3D
A Garota Afegã é uma das mais famosas e celebradas fotografias modernas, capturada pelo fotógrafo Steve McCurry em junho de 1984 em um campo de refugiados, enquanto o Afeganistão era ocupado por forças soviéticas. Como capa da revista National Geographic e a imagem mais reconhecida da história de mais de 100 anos da publicação, a menina só foi identificada por nome e localizada quase vinte anos depois como Sharbat Gula, já uma mulher de 30 anos vivendo sob o regime fundamentalista Talebã.
Nesta bela imagem de enorme contexto histórico, o detalhe é que o que vemos aqui não é uma fotografia. É uma recriação digital realizada por computação gráfica pelo artista Hyun Kyung Up. Ele utilizou os programas Z-Brush, 3D Max e Photoshop para “expressar as singulares obras de arte [de McCurry]”, que vem fazendo um tour e passou inclusive pelo Brasil.
Abaixo, algumas capturas de tela do processo de modelagem:
A recriação é imensamente bela e quase perfeitamente acurada, mas admirei ainda mais o relance parcial de seu rosto visto de frente – ainda que sem os poderosos olhos verdes. Esta outra visão de Sharbat Gula tem grande significado porque, como se descobriu, Gula só foi fotografada três vezes em toda sua vida. A primeira justamente aos doze anos, no que se tornou o registro icônico. Apenas ao redor de 2002 a busca por ela pôde ser empreendida, e como parte da procura ela foi fotografada uma segunda vez, identificada, para então ser finalmente clicada novamente por McCurry. Ela mesma só viu seu famoso retrato em 2003.
Hyun Kyung Up pode ter recriado outra visão de uma beleza jovem e também perturbadora que estaria do contrário perdida para sempre.
Vinte e seis anos depois, tanto mudou, e no entanto, tão pouco. No ocidente, especialmente nos EUA, onde antes uma beleza perturbadora chamou atenção ao sofrimento de refugiados por todo o mundo durante uma ocupação soviética, agora uma outra revista publica em sua capa um retrato chocante de outra bela jovem afegã, mas desta vez, horrivelmente desfigurada. Desta vez são os próprios EUA que ocupam o Afeganistão, e a mensagem que se pretendeu transmitir foi bastante diferente.
Não é minha intenção afirmar aqui qualquer posicionamento político simples sobre a ocupação do Afeganistão, os EUA, ou mesmo a URSS e o Talebã. Se 26 anos depois tanto mudou, mas tão pouco mudou, é porque as questões não são nada simples. Mas ao partilhar esta reinterpretação fabulosa de uma fotografia belíssima e repleta de significado precisava mencionar ao menos alguns dos nexos políticos que esta arte pode inspirar. Até porque o título deste post pode soar como uma versão superficial e de puro entretenimento para uma fotografia tão séria.
“A Garota Afegã em 3D” e a arte digital, como arte, podem e devem provocar reflexão. Com ZBrush, Max e Photoshop.
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[Sugestão de Paulo Dias na Ciencialist. Arte apresentada no fórum ZBrushCentral]
A Humanidade não merece ir à Lua (parte VI)
Reconhece a imagem acima? É a olhada mais profunda no Universo já conseguida, contendo aproximadamente 10.000 pontos luminosos, quase todos, e cada um deles, uma galáxia completa, estendendo-se no espaço e tempo a 13 bilhões de anos ao passado. Tudo isso, em uma fatia minúscula do céu, menor do que a largura de seu dedo mínimo com o braço estendido – dividida por seis, em verdade.
Começamos esta série de textos em fevereiro deste ano com um reflexo resumindo nosso gigantesco avanço tecnológico, do Flyer dos irmãos Wright ao traje lunar de Neil Armstrong, e encerramos esta série com um outro reflexo. Isto porque a Hubble Ultra Deep Field (HUDF) acima foi capturada pelo telescópio espacial Hubble, o famoso e e venerável instrumento lançado há vinte anos, com um espelho refletor primário de 2,4m de diâmetro.
O telescópio Hubble foi lançado após o fim da Guerra Fria, o período único na história humana que levou a corridas tecnológicas absurdas, incluindo aí o avião supersônico Concorde, em uma espécie de dilema do prisioneiro em escala global. No caminho, demos um salto gigantesco ao pisarmos na Lua, mas ao custo de deixar de lado visões e projetos mais grandiosos e racionais de conquista e exploração espacial. No penúltimo texto desta série, comentamos por fim como “a humanidade não merece ir à Lua. Ciência e tecnologia nos oferecem o Universo infinito, mas como macacos nos preocupa muito mais o que outros macacos andam fazendo. Acabamos todos prisioneiros do poço gravitacional terrestre”.
O telescópio Hubble ainda é uma demonstração desta triste constatação, não por si mesmo, mas por um detalhe pouco conhecido. O diagrama que você vê acima não é um projeto do instrumento astronômico que contribuiu tanto para a ciência e tornou-se sinônimo de fonte para algumas das imagens mais profundas, incluindo literalmente a imagem mais profunda do Universo já capturada. O diagrama acima é uma concepção do que se acredita ser a série de satélites espiões Keyhole KH-11 classe Kennan. Um total de nove satélites da classe KH-11 foram lançados entre 1976 e 1988, e eles eram praticamente idênticos ao telescópio espacial Hubble.
Ou melhor, se você se lembrar de que o Hubble foi lançado em 1990, o inverso é verdade: um dos mais conhecidos instrumentos científicos da história recente é basicamente uma versão civil de um projeto militar. Até mesmo o tamanho do espelho refletor do Hubble foi determinado pelo tamanho exato dos espelhos usados inicialmente nos satélites espiões. Uma das únicas diferenças é que enquanto os satélites militares espionavam a Terra, mirando mísseis nucleares, bases militares e conflitos pelo mundo, o Hubble passou a mirar… o céu.
Há um trecho no romance “Contato” de Carl Sagan onde, e aqui estrago algo das surpresas da história, com a destruição de uma Máquina ao custo de bilhões de dólares, descobre-se em uma reviravolta considerada por muitos inverossímil que uma segunda Máquina havia sido construída secretamente. “Por que construir uma quando você pode ter duas pelo dobro do preço”, brinca o personagem Sol Hadden na versão cinematográfica.
A realidade é ainda mais absurda: considerando que o telescópio Hubble custou em torno de U$2,5 bilhões, contando em verdade com tecnologias já desenvolvidas para os satélites espiões secretos, pode-se ter uma vaga ideia do custo do programa Keyhole ao desenvolver e lançar nada menos que nove satélites equivalentes. No mais completo segredo.
E o programa de satélites espiões americanos não parou aí, como não começou aí. Enquanto astrônomos lutam por frações do tempo de observação do Hubble há vinte anos, com descobertas que alteraram nosso conhecimento da origem e futuro do Universo e tantos outros conhecimentos esperando para serem desvendados, satélites ainda mais potentes, com espelhos refletores ainda maiores, estão disponíveis neste exato momento para uso militar e secreto. É absurdo, mas aparentemente – é tudo muito secreto – há pelo menos dois satélites mais potentes que o Hubble orbitando o planeta neste exato momento. Mas, ao invés de mirar o céu, miram a Terra. “Como macacos nos preocupa muito mais o que outros macacos andam fazendo”.
No penúltimo texto prometemos que aqui encerraríamos a série com as esperanças de que mereçamos voltar à Lua e consigamos alcançar as estrelas. Há, sim, e apesar de tudo, muita esperança. Você que se aventurou até aqui, em um mergulho profundo e talvez deprimente, deve desculpar este desvio: não planejei toda a série de textos de antemão, como talvez possa ter ficado claro, e não resisti complementá-la com este nexo. Se há alguma dúvida sobre as loucuras de que somos capazes, a exploração espacial, com seus custos literalmente astronômicos e suas possibilidades literalmente infinitas as demonstram com uma clareza cristalina.
Porém, encontrar esperança para encerrar a série em um tom positivo não é difícil. E os meses de espera entre as primeiras partes e este encerramento vieram bem a calhar. No próximo e final texto.
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Confira as partes anteriores:
Tributo a Escher: Escadas Interativas
Nico Roig criou este fascinante panorama interativo baseado na obras “Stairs” de M.C. Escher. Clique para apreciar em tela cheia, usando a scrollwheel do mouse para zooms. [via cgr 2.0]
Basquete, Yao Ming e a Eugenia
Com 2 metros e 29 centímetros de altura, Yao Ming é um gigante, o mais alto jogador de basquete na NBA americana em atividade. Sua altura e seu gosto por basquete não foram mera obra do acaso. Seu pai, Yao Zhiyuan, media mais de dois metros e sua mãe, Fang Fengdi, 1,90m. Ambos também eram jogadores de basquete profissional, e como Razib Khan notou em um post recente em Gene Expression, citando o livro “Superfusion”, de Zachary Karabell:
“[A mãe de Yao Ming] havia servido da Guarda Vermelha no ápice da Revolução Cultural, e era uma Maoísta ardorosa. Ela participou entusiasticamente no plano glorioso do governo local de usá-la e ao seu marido para produzir uma super-estrela dos esportes. As autoridades de Xangai que encorajaram o par investigaram várias gerações anteriores para se assegurar de que a altura fazia parte da linha de sangue. O resultado foi Yao, um bebê gigante que só continuou a crescer”.
Yao Ming nasceu com 5kg, e media 1,65m aos dez anos. Começou a praticar basquete pouco antes, não parando desde então. Sua concepção deliberada não é um evento isolado, uma vez que a China é efetivamente o único país no mundo a promover oficialmente a eugenia – termo cunhado por Francis Galton, que deve, e merece ser mais conhecido pelas suas contribuições à ciência estatística, entre tentas outras ciências.
Através do controle da reprodução e descendência dos indivíduos, a eugenia pretendia “melhorar as qualidades genéticas humanas”, um caminho cheio de boas intenções que encontrou todavia seu ápice mais tenebroso nas loucuras promovidas pelo regime nazista. A eugenia foi a pseudociência que embasou e levou do racismo ao genocídio.
Exterminar ou esterilizar indivíduos “inferiores” é parte do que seria a “eugenia negativa”, que ainda encontra eco hoje no humor macabro do prêmio Darwin, “honrando aqueles que melhoram a espécie… ao acidentalmente removerem-se dela!”. Complementando tais medidas para evitar que traços “negativos” se perpetuassem, estaria a “eugenia positiva”, justamente o que se vê no caso do jogador de basquete chinês, com a reprodução deliberada de um casal com a herança genética “positiva” que se deseja.
A eugenia negativa também é levada a cabo na China: em 1995 foi colocada em prática a Lei de Saúde Materna e Infantil, que obriga que todos casais se submetam a exames médios para detectar doenças genéticas, infecciosas e mesmo doenças mentais. A critério de médicos, e de acordo com a lei, o casal pode ser proibido de ter filhos, podendo ser obrigado à esterilização. O controle eugênico não para aí, enquanto exames pré-natais também podem levar à decisão de terminar a vida de um feto ou bebê que apresente problemas mais sérios. O seguinte texto (em inglês) cita a lei chinesa e a opinião de um diretor de bioética chinês bem como a crítica de um sinologista alemão: Is China’s law eugenic?.
O assunto é complexo, e um breve post não poderia pretender abordar mesmo um sumário das questões mais importantes. Comentamos aqui, ao invés, apenas alguns nexos dispersos, e o principal deles seria a questão moral. Não deve ser coincidência que o único país a promover políticas claramente eugênicas seja um estado totalitário. É historicamente a moral popular corrente que limitou o avanço de políticas eugênicas – e, igualmente, não é tanto coincidência que os maiores extremos destas tenham sido cometidos por outro estado totalitário, durante o regime nazista.
Há no entanto algo um tanto chocante sobre a moral impondo limites à eugenia: ela tendeu a impor mais limites à eugenia positiva. Tanto sob Hitler quanto sob Stálin, eugenistas mais entusiasmados propuseram esquemas mirabolantes através dos quais os homens mais bem-dotados teriam incontáveis filhos com os melhores espécimes de mulheres, mas em ambos os regimes a ideia entrou em conflito com a moral vigente.
Mesmo sob o nazismo, o programa de eugenia positiva Lebensborn concebido pelo chefe da SS consistiu principalmente no apoio a mães “arianas” e seus bebês, evitando medidas como o aborto, e não propriamente incentivando que moças “arianas” engravidassem indiscriminadamente de membros “superiores” da SS, como se chegou a imaginar. O conceito de família era um dos pilares do mesmo nazismo.
Esta moral que não aceitava crianças concebidas unicamente pelo seu alegado potencial genético no entanto não levantou grandes barreiras a medidas de eugenia negativa, como esterilizações compulsórias até os extremos do genocídio. E a moral é, ultimamente, tudo que pode impedir a prática ou não de algo tão terrível.
O editor da ciência da Folha e scibling Reinaldo José Lopes, ao mencionar a possibilidade “alucinada” de clonar um Neandertal resumiu a questão comentando como “a empolgação biotecnológica às vezes borra a fronteira entre o que se pode fazer e o que se deve fazer”. A empolgação biotecnológica que assistimos hoje lembra muito a empolgação eugênica no início do século passado.
No final da fenomenal série “Pandora’s Box” de Adam Curtis, Joseph G. Morone discute o histórico desastroso da energia nuclear:
“Na era de ouro da ciência, em uma época quando a sociedade possuía a visão mais otimista da ciência, possuía-se uma visão basicamente errada a respeito. Acreditavam que esta forma da tecnologia era a forma que ela devia tomar de forma inevitável. E que se esta era a forma que ela tomava, então esta devia ser a forma certa.
Quarenta anos depois, temos uma visão similarmente ingênua, que não é mais tingida por esperança e otimismo, e sim por pessimismo e medo. Mas ainda temos esta visão de que a sociedade não pode moldar a tecnologia. De que a forma que a tecnologia toma é a forma que devemos aceitar. E assim como isto não era verdade em 1950, ela não é verdade hoje.
Esta não é uma história da tecnologia saindo de controle, embora muitos a entendam assim. A história da energia nuclear é uma história de decisões políticas, econômicas e sociais sendo feitas sobre a tecnologia, e as principais decisões não foram tomadas por tecnólogos. Foram tomadas nas salas de negócios.
O que a ciência e tecnologia lhe fornecem é uma gama de possibilidades. E essas possibilidades podem levá-lo a um sem número de direções. É uma força potencialmente liberadora. Mas para chegar lá, a sociedade deve acordar e perceber que não é uma decisão científica, não é uma decisão de engenharia.
É uma decisão moral”.
Destacando a questão moral, relembramos como a moral “tradicional”, promovida por instituições que alegam mesmo serem fontes da moralidade, pode ter impedido que jovens loiros e altos de traços clássicos concebessem bebês indiscriminadamente, valorizando o conceito de família, mas pouco ou nada fez contra o extermínio de famílias inteiras que não possuíam tais traços.
Yao Ming e seus mais de dois metros de altura são um indicador um tanto assustador de que a eugenia, se era e talvez ainda seja largamente uma pseudociência, pode sim produzir resultados concretos. Será esta forma aceitável? Aos chineses, por ora, aparentemente é. A nós, talvez não. Mas como Morone destacou, decisões morais não significam aceitar ou rejeitar completamente uma possibilidade científica, tecnológica, como se a primeira possibilidade fosse um imperativo definitivo em si mesmo.
Decisões morais devem moldar como as possibilidades infinitas da ciência podem ser aplicadas em prol de valores éticos. Um gigantesco desafio.
Restart, Justin Bieber e a Pirâmide Etária
Em 2050, mais de dois bilhões de pessoas terão 60 anos ou mais, e para destacar as tendências que “desafiarão as sociedades no futuro”, a GE produziu uma interessante visualização interativa, “Our Aging World” (Nosso Mundo em Envelhecimento), que você confere clicando na imagem acima.
Ela representa e compara a distribuição etária das populações de oito países industrializados ao longo do tempo, sempre na mesma proporção relativa. Você pode escolher dois países e então arrastar a barra cinza na parte inferior – ou clicar no botão play na parte esquerda – para assistir à evolução da pirâmide populacional de 1950 até 2050.
Em 100 anos, 60 deles de história e 40 deles de projeções, podemos enxergar os efeitos de guerras e epidemias, por exemplo: em 1950, as pirâmides demográficas de França, Alemanha e Itália exibem uma queda súbita na faixa etária de 30-34 anos. Faça as contas, e são as pessoas que nasceram ao redor do fim da Primeira Guerra Mundial e em pleno pico da Gripe Espanhola.
Nas projeções, constatamos como o mundo realmente está envelhecendo, e em todos os países não só as pirâmides demográficas de 1950 (esquerda) se transformam em retângulos populacionais (direita), com uma quantidade aproximadamente igual de diferentes faixas etárias. Alguns países como o Japão e a Coréia do Sul se aproximam de uma nova pirâmide populacional, invertida, com mais idosos do que jovens!
Se o mundo está envelhecendo, por que este texto menciona fenômenos jovens como a banda Restart ou Justin Bieber? Porque um, paradoxalmente, explica o outro.
A justaposição destas duas imagens talvez choque, e é justamente esta a ideia. São crianças, são jovens, com expressões não muito diferentes, mas vindas de condições completamente díspares. Um grupo viveu na época em que as pirâmides etárias eram extremamente acentuadas, o outro, de quase um século depois, onde as pirâmides dão lugar a retângulos, onde aqueles que nascem têm muito mais chances de viver, e aqueles que vivem, passam por muito menos riscos de morrer.
O primeiro impulso que a comparação entre as crianças pobres, trabalhadoras do início do século 20, e uma banda moderna fazendo pose pode causar é de insatisfação e crítica “à juventude hoje”. Mas deveria ser motivo de celebração. Aquelas crianças em preto e branco não possuíam direitos, e suas roupas eram roupas de adultos em miniatura. As taxas de natalidade eram altíssimas, mas as taxas de mortalidade eram igualmente altas. A pirâmide etária refletia a vulnerabilidade da vida humana, e consequentemente, o pouco valor de cada indivíduo, especialmente naquela faixa etária mais abundante: as crianças, os jovens. Apenas aqueles que sobrevivessem até a vida adulta teriam algum valor.
Foi valorizando a vida, através de revoluções culturais, tecnológicas e médicas, permitindo que crianças fossem crianças, que a pirâmide demográfica se transformou em um retângulo. E se antes esta era uma medida de investimento no futuro, hoje o valor que se dá à cultura infantil, jovem, talvez seja simplesmente reflexo do fato de que a relevância de cada indivíduo jovem, de cada criança, é maior do que nunca. Se a juventude colorida de hoje parece “perdida”, é porque esquecemos tão rapidamente os horrores da juventude em preto e branco de ontem.
As consequências sociais de todas estas transformações, inéditas na história humana, ainda estão se desenvolvendo. Restart e Justin Bieber são apenas um pequeno indicador – e, em 2050, serão eles mesmos tão ou mais velhos do que você ou eu somos hoje. [visualização via FlowingData]
Ciência aplicada aos vampiros da saga “Crepúsculo”?
“Eu finalmente li ‘Crepúsculo’”, confessou Kay Holt em “I like a little Science in my Fiction” (“Eu gosto de um pouco de Ciência em minha Ficção”). “E depois de horas de pesquisa na rede, encontrei uma solução a um grande problema que tinha com a história. E sei por que os vampiros brilham!”.
Holt começa com um fato: a maior parte dos “vampiros” na natureza, aqueles que se alimentam de sangue, os hematófagos, são insetos. Sim, insetos. “Vampiros devem ser insetos gigantes altamente evoluídos”, brinca, e leva a comparação bem além.
“Como muitos sugadores de sangue reais, vampiros devem se alimentar antes de se reproduzir. Contudo, ao contrário do mundo natural, vampiros parecem se reproduzir inteiramente por transferência horizontal de genes”. Isto é, não transmitem material genético a um filho, verticalmente, mas diretamente a um indivíduo, mesmo uma espécie diferente com a qual não tem relação de ascendência. E faz referência a uma pesquisa recente indicando que um inseto hematófago, um reles “Barbeiro” (Rhodinus prolixus) seria capaz de transmitir material genético a um mamífero. Longe de ser uma reprodução completa, mas se a forma de reprodução dos vampiros de Stephenie Meyer se dá por algum processo envolvendo material genético, seria uma transferência horizontal de genes. Parecida com a de um bicho barbeiro.
O indivíduo, ou a vítima, passaria então por uma metamorfose. Similar à de uma largarta transformando-se em uma borboleta. “De acordo com Crepúsculo, o processo leva dias e é incrivelmente doloroso, o que é coerente dado que a vítima passa por histólise e histogênese completa sem o estágio de pupa, muito menos sem anestesia geral”, nota Holt, que ainda faz referência a outra pesquisa recente sugerindo que mariposas ou borboletas podem se lembrar do que “aprenderam” quando lagartas.
Para completar a interpretação dos vampiros da saga como insetos, Holt lembra que teriam sangue frio, como insetos; com uma pele pétrea, cristalina, como a carapaça, o exoesqueleto de insetos; e finalmente habilidades sobre-humanas, enquanto insetos são alguns dos animais relativamente mais fortes, rápidos, de visão aguçada ou resistentes a viver no planeta.
E qual tipo de insetos eles seriam?
“Borboletas! Vampiros, como borboletas, estão cobertos de minúsculas escamas iridescentes”, o que explicaria seu brilho ao sol, reluzindo um arco-íris de cores.
Edward Cullen, um inseto hematófago gigante altamente evoluído para parecer um ser humano perfeito, dotado de super-poderes e uma pele cristalina com escamas iridescentes. Uma borboleta.
Há um motivo pelo qual “Crepúsculo” não é ficção científica, mas a brincadeira de Holt – que não é nada além de uma brincadeira, sem a pretensão de ser analisada rigorosamente a fundo – já foi indicada como “possivelmente a melhor viagem de fantasia de todos os tempos” pelo blog BoingBoing.
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[Confira o texto original, em inglês: I know why the vampire sparkles!. Imagem da borboleta do New Forest Observatory. A ideia de insetos gigantes mimetizando traços humanos em verdade já foi tema de uma série de ficção, a série de filmes de terror, “Mimic” (1997), com baratas gigantes aterrorizando o metrô de Nova Iorque e outros cantos do planeta. Provavelmente não Forks.]
Hoje (27/07), às 19h, CeticismoAberto na TV Cultura
Teorias da Conspiração e o Fim do Mundo são o tema do programa Login, na TV Cultura, nesta terça (27) ao vivo das 19h às 20h!
Som e bate-papo com a banda Meia Dúzia de 3 ou 4 sobre o projeto “O fim está próspero”, e Kentaro Mori, criador de CeticismoAberto, discutindo os mistérios da ufologia e das teorias da conspiração.
Participe enviando suas perguntas ao mural!
Atualização: Para quem perdeu ou não pôde conferir, os vídeos do programa (número 87) podem ser conferidos na íntegra no site do Login:
Nos três primeiros blocos: bloco 01, bloco 02 e bloco 03. O quarto e último bloco acompanhou a trupe do Teatro Mágico.
Além do programa que foi ao ar, participamos do Youlog, 15 minutos a mais com os apresentadores e a banda respondendo mais algumas perguntas na rede. O vídeo ainda não está online, mas deve estar disponível aqui.
O Apocalipse Inevitável (fim)
“Não é o fim do mundo, mas você pode vê-lo de lá” – Pierre Trudeau
O Fim está Próximo, sempre esteve, sempre estará, exceto quando finalmente chegar. O lugar-comum de que a única certeza na vida é a morte também se aplica à espécie como um todo. E se mal conseguimos lidar com nossa própria mortalidade, que se dirá do inevitável fim da Humanidade – uma ideia tão perturbadora, tão assustadora, que pode ser mesmo impensável. De fato, a maior parte de nós lida com a questão evitando mesmo concebê-la: acredita-se que o apocalipse em si mesmo seria apenas uma grande revelação, o fim de uma era, enquanto a essência imortal de todos nós sobreviveria, de outra forma, eternamente. Se esta crença pode oferecer algum conforto imediato, permanece entretanto, e desafortunadamente, apenas uma questão de fé, e uma que pode ser perigosa quando motiva decisões em questões muito concretas.
No mundo real e objetivo que todos nós, crentes ou não, partilhamos, postergar o Apocalipse Inevitável é tudo que podemos fazer. Mais de 98% das espécies que já viveram foram extintas, vítimas de fenômenos naturais aos quais estavam completamente sujeitas. Embora nossa espécie tenha sido bem-sucedida em evitar o próprio fim – alcançando o número de 6,5 bilhões de indivíduos espalhados por todos os continentes – ela continua tão e por vezes mais vulnerável quanto outras espécies a uma série fenômenos naturais catastróficos. Mesmo aqueles perigos que conseguimos dominar, através da ciência e tecnologia, acabam por ser substituídos por outros criados pela mesma ciência e tecnologia. E os novos perigos de criação humana, como a Caixa de Pandora, uma vez descobertos não podem ser esquecidos, “desinventados”.
Um dos últimos grandes Apocalipses pelo qual a vida no planeta passou foi a extinção K-T, que varreu os dinossauros. Ela é o nexo final que se liga pelo Inverno Vulcânico, decorrente de erupções naturais e periódicas, ao Inverno Nuclear, consequência de um confronto atômico. Depois de reinar por milhões de anos, os dinos teriam sido extintos não apenas como consequência direta do impacto de um asteróide, mas também da nuvem de poeira que teria lançado na alta atmosfera, provocando efeitos similares, e apocalípticos, como o dos invernos vulcânicos ou nucleares. A descoberta e associação do impacto de um asteróide com a extinção K-T também ocorreu aproximadamente na mesma época que o Inverno Nuclear foi descoberto.
Dos confins do Universo, das profundezas do planeta, ou pela mais sofisticada e poderosa criação humana, a devastação da “Escuridão” vista por Lord Byron seria a mesma.
Ainda que por mágica esquecêssemos o conhecimento, a ciência nuclear, estaríamos tão vulneráveis quanto os dinossauros ao fim inevitável, e dificilmente adiável uma vez que o poderio nuclear é até o momento também o único que poderá um dia, sim, nos salvar de tal ameaça – a energia que podemos extrair de reações químicas é o fator limitador que torna tão difícil conquistar o espaço. Não podemos nem devemos desejar abandonar a ciência, precisamos apenas controlá-la. E para isso, precisamos compreendê-la melhor.
Mais que a conscientização a respeito do fato de que o Fim está Próximo e como o estamos constantemente postergando, salvando o mundo, ou pelo menos, a nós mesmos diariamente, esta série pretendeu chamar atenção aos nexos entre os diversos Apocalipses. Por uma série variada de conexões, o buraco na camada de ozônio, a guerra atômica, o inverno nuclear, o inverno vulcânico e mesmo a extinção dos dinossauros se relacionam. E atualmente, relacionam-se de forma especial com o aquecimento global.
Mais próximo da ameaça à camada de ozônio do que da extinção completa da humanidade vaticinada pelos proponentes do Inverno Nuclear, o aquecimento global provocado pela queima de combustíveis fósseis é o “fim do mundo” da vez. Como todos os Apocalipses anteriores, enfrenta contestação seja ponderada e razoável do processo científico, seja a radical e falaciosa movida por um sem número de motivos. Diferenciar um do outro nem sempre é simples. Havia, e há, céticos e negadores da ameaça ao ozônio, do inverno nuclear, vulcânico e da extinção K-T provocada por um asteróide. É apenas o fato de que tais temas saíram de moda o que os torna menos polêmicos.
É curioso que sejam os contestadores do Aquecimento Global que mais chamem atenção a sua relação com os apocalipses anteriores – embora isso seja mais facilmente compreendido porque a lógica subjacente é a de que, se os apocalipses anteriores foram evitados, talvez porque nem mesmo fossem de fato reais, então este novo “fim do mundo” deve seguramente ser mais um exagero. Um raciocínio temerário: se ter sobrevivido o dia anterior fosse o único parâmetro para prever com confiança a chance de sobreviver ao dia seguinte, seríamos todos imortais.
A verdade é que passamos assustadoramente próximos do Fim incontáveis vezes. Adiar o Apocalipse contou inúmeras vezes com fatores arbitrários e apenas marginalmente dependentes da ciência e da razão. Ronald Reagan, como presidente dos EUA, deveria estar plenamente ciente de relatórios científicos sobre as desastrosas consequências de um confronto nuclear, mas como anotou em seu diário, ficou “profundamente deprimido” após assistir a “The Day After”, e quando se reuniu e assinou tratados de reduções de armas com o premiê soviético Mikhail Gorbachev, três anos depois, teria enviado um telegrama ao diretor do filme reconhecendo seu papel.
Será possível que apenas através de um filme feito para TV o comandante-em-chefe tenha finalmente entendido o que dezenas de think tanks, instituições e toda a comunidade científica expressavam há décadas? Talvez este seja o perigo de ter no comando da maior potência mundial um ator de Hollywood. Este é o perigo de viver sob sistemas políticos claramente inapropriados para lidar adequadamente com os desafios que encaramos – embora, paradoxalmente, o principal desafio do século passado tenha sido consequência justamente da busca por algum outro sistema revolucionariamente mais adequado.
Se críticos da “Farsa do Aquecimento Global” a associam ao Inverno Nuclear e mesmo à Eugenia, é igualmente curioso, e compreensível, que os principais proponentes do “Apocalipse” da vez por seu lado raramente mencionem sua relação com apocalipses anteriores. A estes ativistas interessa pintar o Aquecimento Global como a maior ameaça já enfrentada pela espécie humana em toda a história, e inseri-lo no contexto de perigos anteriores, tão ou mais prementes, não é conveniente.
Apesar de fora de moda, contudo, o Inverno Nuclear continua sendo uma ameaça:
O gráfico à esquerda já foi discutido aqui: em 1986, pouco depois da exibição de “The Day After” e a descoberta do Inverno Nuclear, EUA e a União Soviética entraram em acordo para reduzir drasticamente seus arsenais nucleares, em uma tendência que permanece até hoje. A linha negra total de armas sobre para então descer. Carl Sagan e um filme feito para TV, a seu modo, salvaram o mundo.
O gráfico à direita representa no entanto o Apocalipse Inevitável: apesar do número total de ogivas no mundo ter diminuído além das mais otimistas expectativas, o número de países com poderio atômico vem aumentando desde a primeira explosão em 1945, a uma média de um novo país para o clube nuclear a cada 5 anos. Não há sinal de que a tendência tenha se alterado. Cinco anos – calcule quantos novos países, quantos novos governos, presidentes ou generais, passaram a ter seu dedo sobre o botão vermelho desde que você nasceu. Aí podem se incluir Israel, Índia, Paquistão e Coréia do Norte. E em breve, provavelmente, Irã, como temido por Eli Wiesel em 1983.
Parece inevitável que cedo ou tarde, com tantos dedos, algum deles apertará o botão, provocando em minutos a morte de milhares, milhões. O mesmo estudo de Robock citado no texto anterior simulou o efeito de um conflito regional de pequena escala: não seria o fim, mas ele poderia ser visto de lá. Centenas de milhões seriam afetados em efeitos comparáveis ao do “Ano sem Verão” a inspirar “Frankenstein”. O gráfico da anomalia climática provocada mesmo por um conflito regional é fascinante, porque combina o famoso gráfico “hockey stick” para demonstrar o aquecimento global (em azul), com a previsão computacional que mostra os efeitos do confronto (em vermelho), com consequências climáticas já maiores do que toda a ação humana acumulada ao longo de mais de um século:
Este gráfico talvez resuma o nexo indissolúvel entre as ameaças constantes e diversas que enfrentamos.
Se evitar todos os Apocalipses anteriores não é motivo para muito conforto, deve ser de esperança. Pelo menos um dos Apocalipses que discutimos aqui, a ameaça à camada de ozônio por CFCs, então largamente utilizados industrialmente, foi contida com base em pesquisa científica e protocolos internacionais assinados e ratificados mundialmente com sucesso.
E embora Reagan tenha destacado o papel de um filme feito para a TV, também foi influenciado pela ciência do Inverno Nuclear, que Gorbachev citou como um imperativo moral para que alguma atitude fosse tomada. Tais alertas científicos podem ter um efeito ambíguo e discutível sobre a população em geral, mas seu efeito entre representantes pode ser decisivo, ainda que largamente imprevisível.
Ao encerrar esta série, citamos mais uma vez o filósofo francês Edgar Morin:
“Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva. De um modo trágico, quanto mais nos aproximarmos do perigo, mais teremos chances de sair dele, mas aumentarão também mais os riscos de nele mergulhar”.
O Apocalipse é Inevitável, mas pode ser adiado.
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Releia toda a série:
O Apocalipse Inevitável (parte VII)
Deixe de lado imagens piscantes no Orkut, este talvez seja o pior GIF animado já criado. Criado por Luke Oman, da NASA, a animação deriva dos mais sofisticados modelos do clima terrestres disponíveis em 2007 (ModelE), e uma simples olhada já deve oferecer uma ideia do que retrata: o Inverno Nuclear como consequência da elevação de fumaça em uma guerra nuclear total entre EUA e Rússia, com o uso de quase todo o arsenal ainda disponível. A fumaça negra se dispersa pela alta atmosfera e afeta todo o globo, incluindo o nosso hemisfério sul.
Onde duas décadas antes Sagan, Turco et al modelaram a complexidade da atmosfera em apenas uma dimensão, agora Oman, Alan Robock e Georgiy Stenchikov usaram um modelo tridimensional com resolução de alguns graus de latitude e longitude e 23 camadas verticais na atmosfera estendendo-se até 80 km de altitude. Ele ainda foi combinado com um modelo de circulação oceânica com 13 camadas, o primeiro estudo do Inverno Nuclear a utilizar um modelo de circulação geral envolvendo o mar.
Sim, Michael, o Inverno Nuclear existe. Desde sua descoberta em 1982/83 até o início da década de 1990, cientistas tanto nos EUA quanto na União Soviética – Stenchikov foi co-autor do primeiro modelo tridimensional do Inverno Nuclear já em 1983 – produziram estudos publicados nos principais periódicos científicos indicando o grande risco de que as previsões catastróficas eram mais do que plausíveis. Ainda que em 1991 Sagan, Turco e outros tenham previsto erroneamente que a queima de poços de petróleo no Golfo Pérsico teriam consequências climáticas globais, o que não ocorreu, ainda que negadores do Inverno Nuclear tenham e continuem atacando violentamente suas conclusões, vinte anos depois a ciência da climatologia mais preocupada com o aquecimento global revisitaria – e vindicaria – as piores previsões de escuridão.
Porque o modelo usado por Robock et al é exatamente o mesmo modelo computacional usado para tentar compreender, e então prever, o aquecimento global. Há um enorme emaranhado de nexos, e em se tratando do futuro do planeta, talvez não seja surpresa que todos acabem se encontrando repetidamente. De aviões supersônicos ao buraco na camada de ozônio, do ozônio e as tempestades de areia em Marte ao Inverno Nuclear, do aquecimento global e erupções vulcânicas de volta ao Inverno Nuclear: o Apocalipse é Inevitável.
O modelo computacional para simular o Inverno Nuclear foi testado em seus resultados contra a realidade em casos como as erupções vulcânicas de Laki (1783) e Katmai (1912). Ele fornece uma simulação muito próxima do que foi efetivamente observado, e como vimos em registros históricos, incluindo aqueles especialmente relevantes como a arte do Grito da Natureza de Munch ou Frankenstein de Shelley, partículas chegando à estratosfera podem levar a um cenário tenebroso como a “Escuridão” de Byron. E se o modelo pode prever as consequências observadas de erupções vulcânicas, sua simulação de um confronto nuclear é o melhor que podemos avaliar de suas consequências. O resultado, novamente, é o GIF animado acima, talvez não tão poético ou lúgubre quanto um poema, romance ou pintura, mas que deve ser um alerta tão ou mais urgente.
[Com agradecimentos a José Ildefonso, Alan Robock oferece seus papers e apresentações para download]
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Releia toda a série:
O Apocalipse Inevitável (parte VI)
Pintado em 1893, “O Grito” de Edvard Munch é uma das representações mais icônicas da agonia e desespero, mas quem estaria gritando? Contrariando a interpretação mais óbvia da figura ensandecida com as mãos à cabeça (que inspirou uma famosa máscara usada em uma série de filmes), o título original da obra em alemão era “O Grito da Natureza”. Munch anotou em seu diário qual teria sido sua inspiração:
“Eu estava andando por um caminho com dois amigos, o Sol estava se pondo, e subitamente o céu ficou vermelho como sangue. Eu parei, sentindo-me exausto, e apoiei-me na cerca. Havia sangue e línguas de fogo sobre o fjord azul-escuro e a cidade. Meus amigos continuaram caminhando, e eu fiquei parado lá tremendo de ansiedade, sentindo um grito infinito passando pela natureza”.
“O Grito” retrata a agonia da natureza em um céu de “sangue e línguas de fogo”. O desespero da figura humana é inspirado pelo grito da própria natureza. E o mais surpreendente é que é possível que a agonia que Munch presenciou não fosse simplesmente uma metáfora, já que naquele mesmo ano a natureza rugiu com a erupção do vulcão na ilha de Krakatoa, Indonésia, uma das mais potentes na história humana. Ela quase varreu a ilha do mapa, sendo literalmente ouvida a mais de 5.000 km de distância, com efeitos globais. Com alcance muito maior do que o som, a fumaça lançada pelo vulcão chegou à Ásia, EUA e Europa, tingindo o céu de vermelho especialmente ao pôr-do-Sol. E quem primeiro associou a possibilidade de que “O Grito” possa ter sido inspirado pelos efeitos climáticos de erupções vulcãnicas, em um literal grito da natureza, foi Alan Robock, um dos pesquisadores recentes do Inverno Nuclear. Esta é mais uma peça na série sobre o Apocalipse Inevitável.
Prometemos no texto anterior abordar a ciência do Inverno Nuclear, mas fazemos este desvio pela arte porque ela pode ser um registro histórico fascinante e especialmente relevante. “O Grito” não é o único exemplo emblemático: outra obra-prima e icônica relevante aqui é nada menos que “Frankenstein”, de Mary Shelley, romance publicado originalmente em 1818, mas escrito durante o verão de 1816 quando a jovem escritora tinha apenas 18 anos. O que poderia tê-la inspirado?
Rumores de experimentos fantásticos e tenebrosos na “reanimação” de cadáveres com eletricidade e as pernas de rãs de Galvani foram influências diretas, mas o verão de 1816 também desempenhou sua parte, porque 1816 foi o “Ano Sem Verão”, com mudanças climáticas globais e inesperadas principalmente no hemisfério Norte, provocando fome e doenças que mataram centenas de milhares de vítimas. A narrativa de “Frankenstein” começa e termina em meio à escuridão e o gelo, espelhando algo do clima em que Mary Shelley estava confinada. O clima frio e chuvoso afetou inclusive a vila próxima do Lago Genebra onde Shelley se hospedou, inspirando não só a jovem como também John Polidori, abrigado – e confinado com as chuvas – na mesma cabana. Polidori escreveria “O Vampiro”, primeiro romance moderno com a temática de sugadores de sangue e por sua vez inspiração para o posterior “Drácula” de Bram Stoker. Na mesma vila, e inspirado pelo mesmo clima lúgubre, Lord Byron também escreveria o poema “Escuridão”, que você confere mais abaixo.
O Ano sem Verão foi resultado de uma série de fatores, desde uma menor atividade solar até uma série de grandes erupções vulcânicas que, como o Krakatoa, lançaram poeira na atmosfera. E entre estas grandes erupções, a que deu o golpe derradeiro foi a maior erupção em mais de 1.600 anos, a do Monte Tambora em abril de 1815, um evento super-colossal que lançou grandes quantidades de material na estratosfera.
Um outro grito da natureza, causando agonia e mortes à humanidade, que reagiu produzindo obras de arte que nos assombram até hoje – ainda que pelo visto, tenhamos tragicamente esquecido, e alguns jamais tenham entendido, a inspiração natural desta angústia. Apenas mais de 100 anos depois de Frankenstein de Shelley e exatos 90 depois do Grito da Natureza de Munch, cientistas finalmente associariam as consequências climáticas naturais do mais próximo que a Humanidade pôde chegar do poder de erupções vulcânicas. Tanto erupções colossais quanto ogivas nucleares têm sua potência comparada em megatons de TNT.
O poema “Escuridão” de Lord Byron é uma visão perturbadora de um Inverno Nuclear, mais de um século antes que um Apocalipse desta natureza pudesse ser criado por mãos – ou mesmo um dedo em um botão – humanas.
“Sonhei e não era propriamente um sonho.
O sol se apagara, as estrelas vagavam opacas no espaço eterno.
(Perdidas, não cintilavam mais)A Terra, gélida e cega, oscilava obscura no firmamento sem luar;
Lampejos abriam as trevas, mas o dia não retornava.
Apavorados seres humanos abandonavam suas paixões.Naquela devastação e percorridos por calafrios, desunidos corações,
– em egoística prece – clamavam pela claridade.
Súditos e reis ocupavam o mesmo lugar,
Palácios e choupanas crepitavam em imensa fogueira;
Cidades inteiras foram destruídas.”
[ESCURIDÃO (adaptação do poema Darkness, de George Gordon – Lord – Byron)]
O caminho que Sagan e a equipe TTAPS tomou para descobrir o Inverno Nuclear, como vimos, não foi inspirado na arte, e sim em Marte e na ciência atmosférica, que incluía a camada de ozônio. Foram trabalhos recentes, como o de Robock, que finalmente restabeleceram a ligação, como parte da resposta aos questionamentos da ciência do Inverno Nuclear. No próximo texto. [com agradecimentos a Fabiane Lima, Anderson Fernandes e Beto Santana da lista CA]
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