O díptero traído

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à minha colega, Profa. Celice Silva,

sim, há coisas legais nas plantas também

 

Naquela manhã, no consultório psicanalílico…

 

Já haviam se passado cinco minutos e nada do cliente aparecer. A doutora foi conferir na ante-sala e teve um sobressalto. Sua secretária, rolo de jornal em riste, se preparava para golpear uma mosquinha de asas murchas que havia pousado sobre sua mesa. A doutora deu um ágil pulo e tomou a arma da mão da secretária, salvando assim seu cliente da morte súbita.

-Pode entrar e ir se acomodando, Sr. Megapalpus. Eu vou num segundo. – Disse a analista sem tirar o olhar de repreensão da secretária.

A mosquinha pousou bem no encosto do divã, alheio aos gritos do lado de fora da sala, no máximo percebeu uma leve vermelhidão no rosto da terapeuta e suas carótidas saltadas ao entrar na sala.

-Bom dia. Como tem andado o senhor?

-Estou sofrendo de amor, doutora! Num momento nunca tive tanta sorte com as garotas, no seguinte todas me abandonaram. Não tenho mais motivo para viver. A senhora deveria ter me permitido o alívio eterno debaixo daquele rolo de jornal – E o pequeno díptero pontuou a frase com um muxoxo do labro.

-É mesmo? Que coisa. Quer me falar mais sobre esta maré de azar? – A terapeuta era treinada em ignorar rompantes depressivos.

-Olha, doutora. Nunca fui um rapaz de muito traquejo com as fêmeas. Sabe como é, há tantos outros machos por aí com os tergitos sarados de academia. Quase nunca me dava bem. De uns tempos para cá, em uma floreira perto de casa não paravam de aparecer mosquinhas lindas pousadas sobre as belas pétalas alaranjadas que nos serviam de lençol. Elas eram perfumadas como uma flor. Tão lindas, tão acessíveis e tão… tão… tão pouco seletivas!

– E como era a vida de vocês longe da floreira? – Indagou a psicóloga.

-Relacionamento fora da floreira? Doutora, isso praticamente não existia. Elas eram insaciáveis, sempre dispostas a mais e mais. Me aceitavam como sou, me enchiam de amor e prazer. No mais, elas me escutavam e me compreendiam como ninguém. Se eu começava a falar de mim elas eram excelentes ouvintes, jamais me interromperam. Mas era só um interlúdio entre uma sessão de sexo e outra. Nós nos amando no jardim e uma chuva dourada de pólen jorrando sobre nós com o frenesi dos meus movimentos.

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É o que não pode ser que não é

Fonte: Ellis e Johnson, 2010

 

-Menos detalhes, meu amigo. Menos detalhes. Quantas eram as suas amigas especiais? Quando começaram estes casos?

-Na primavera. Foram dois meses de muita paixão. Tinha no total dezesseis amantes. – Respondeu o díptero quase orgulhoso.

– E quando e por que tudo terminou?

-Me parte o coração só de lembrar. Ontem pela manhã voltei para minhas deusas na floreira e tudo havia mudado. Nossos lençóis de pétalas alaranjadas caídas sobre a terra, assim como os cacos do meu coração. Todas haviam partido juntas, só restava na floreira os frutos compostos das margaridas em início de amadurecimento. Fiquei tão preocupado com elas, perguntei a uma aranha de jardim que passava por ali. Mas, em vez de me responder, a maldita riu de mim. Não sei se minhas amantes foram raptadas, se me usaram e se cansaram de mim.

-Senhor Megapalpus, tenho outra má notícia para o senhor. – Instantaneamente o rosto da mosca se deformou de preocupação e uma lagrima escorreu do ocelo esquerdo. – Acho que o senhor estava sendo enganado desde o início da primavera. Fêmeas meio inertes, sempre acessíveis, cheirosas como uma flor, encontros sobre as pétalas, tudo começou na primavera, chuva de pólen. Elementar, meu caro díptero, estás sendo ludibriado por flores precisando de um polinizador. Em algumas orquídeas as pétalas simulam em odor e forma uma fêmea que atrai machos para copular. Ao tentar isto os machos se cobrem de pólen que é levado a outra planta quando este macho novamente é enganado. Nunca havia ouvido falar de margaridas fazendo isto com moscas, mas é a única explicação que me ocorre.

Na saída do consultório mosca e secretária se defrontaram novamente. Desta vez ambas estavam com cara de humilhadas; esta por ter sido enganada por uma flor, aquela pela bronca que levara. O Sr. Megapalpus capensis nem se deu ao trabalho de marcar outra sessão, aquela questão seria resolvida com sangue, ou melhor, neste caso com seiva bruta.

 

Ellis, A., & Johnson, S. (2010). Floral Mimicry Enhances Pollen Export: The Evolution of Pollination by Sexual Deceit Outside of the Orchidaceae The American Naturalist, 176 (5) DOI: 10.1086/656487