Afrodescendente

Ao Carlos

Para mentes competentes a cota é sempre de 100%

 

O avaliador olhava impaciente pela terceira vez o item da ficha de inscrição no vestibular que dizia respeito às cotas. Alternava seu foco entre o papel em suas mãos e o rapaz sentado à sua frente, seu cérebro quase fervia num misto de raivoso e intrigado. O rapaz diante do avaliador era magro, cerca de um metro e oitenta. Cabelos bem negros de fios grossos espetados em sua cabeça. Tinha um maxilar quadrado e decidido contornado por uma suave tonalidade azul da barba bem aparada, mas espessa. A boca era estreita como que prenunciando que o rapaz tinha mais a mostrar do que a dizer. Os óculos escondiam parcialmente os olhos miudos de oriental que pareciam se espremer para enxergar melhor os detalhes do mundo. Ele vestia uma calça jeans e camiseta com o que parecia um cartoon com uma piada em inglês sobre ciência que o avaliador não conseguiu entender, mas o rosto e o braço deixavam ver a pele bem branca. Na folha diante de si, no entanto, o avaliador via assinalada a opção de cotista e, em seguida a de afrodescendente.

– Foi o senhor que fez sua própria inscrição no vestibular? – Perguntou enfim dando início à entrevista.

– Fui. – Respondeu o rapaz, que também era mais velho do que a média dos candidatos que participavam das entrevistas.

– E identificou-se como cotista, e afrodescendente?

– Sim.

– O senhor é afrodescentente? – Uma dobra na testa do entrevistador traiu seu disfarce de sentimentos.

– Exatamente. – O rapaz apontava com o indicador da mão esquerda a alternativa marcada na folha de inscrição.

O avaliador suspirou ruidosamente. Em seguida folheou um pouco mais a pasta com o nome do rapaz na capa. Eram os resultados das outras avaliações: prova de múltipla escolha, redação, prova de segunda fase.

– O senhor teve excelentes notas nas provas, escreveu uma redação muito boa. Tem uma pontuação suficiente para ser aprovado em qualquer curso desta universidade, independente de ser ou não cotista. Já esperava que fosse tão bem?

– Esperava ir bem. – Disse o rapaz resoluto.

– Então por que se inscreveu como cotista? – O tom de voz do entrevistador era irritado.

– Porque era um direito meu. – Retrucou olhando o entrevistador nos olhos sem alterar o tom de voz, nem irritando-se em retribuição, nem sucumbindo.

– Era seu direito entrar como cotista?

– Sim.

– Era seu direito alegar afrodescendência?

– Sim.

O avaliador afundou na poltrona escondendo as carótidas saltadas no pescoço com a pasta do candidato. O que o impediu de enxergar uma sutil elevação dos cantos da boca do rapaz.

– Muito bem, fale-me sobre sua família. Quando foi que ela saiu da África?

– Bem, os registros não são muito precisos, mas saímos por volta de cem mil anos atrás. – Respondeu o rapaz.

– Cem mil anos! Isso só pode ser uma brincadeira! Seus parentes deixaram a África há cem mil anos e vieram para o Brasil? – O avaliador tinha o olhar vidrado e quase espumava de raiva.

– Não, antes eles passaram pela Ásia por várias gerações. Estima-se que chegaram à China cerca de 70 mil anos atrás e ao Japão 10 mil anos depois. Ao Brasil minha família só chegou bem mais recentemente, há não mais de um século. – Explicou o candidato.

– Então o senhor confirma que sua família é japonesa? – A pergunta tinha ares de vitória.

– Minha ascendência é africana. Meus ancestrais tiveram uma passagem pelo oriente, mas vieram da África. – Retorquiu o rapaz.

– Qual o nome de seus pais?

– Jiyu Shiso e Antônio Koshowaizu.

– E você é afrodescendente?

– Sim. – Afirmou novamente o rapaz sem se deixar cansar.

– Para mim já chega. Vou chamar o superintendente.

Seguiram-se pelo menos vinte minutos de espera na sala vazia. Era possível ouvir a voz do entrevistador explicando o caso ao superintendente, que respondia com uma voz grave, cavernosa. A espera encerrou-se com a entrada de sopetão do superintendente na sala, quase pondo abaixo as paredes de divisórias que delimitavam o cubículo. O superintendente vestia uma calça social e sapatos baratos desses que se compram em lojas de departamento. Era obeso e sua barriga ameaçava arrebentar os botões da camisa listrada que ainda ostentava dois círculos de umidade sob as axilas. Seu rosto redondo era encimado por uma careca margeada pelo que lhe restara de um cabelo preto e ensebado. Ele não estava feliz.

– Olhe aqui, rapaz. Esta é uma instituição séria. Você quer me convencer de que é um afrodescendente e que sua família emigrou da África há 100 mil anos, o que lhe dá o direito de entrar nesta universidade como cotista?

– Exatamente, senhor. – O pronome de tratamento soava mais como uma afronta do que como respeito.

– Inicialmente achei que você fosse um desses analfabetos que precisam se escorar em algo para conseguir as coisas. Achei que queria usar a cota para entrar na universidade por não ter competência para ingressas sem ela. Mas suas notas me apontam algo muito pior. O senhor é um rebelde que só quer esculhambar com o trabalho dos outros. Um desses ratos que se diverte encontrando brechas legais e se enfiando por elas, mesmo podendo fazer as coisas direito, só porque sabe que não podemos refutar se você se considera um afrodescendente. Pois já vou lhe avisando, aqui não é lugar para quem quer brigar contra moinhos de vento, rapaz!- Bradou o homem.

– Lamento por isso, senhor.

– Você não me provoque, garoto. O que quer dizer com “Lamento por isso”?

– Pensei que a universidade deveria ser o último front de batalha contra os moinhos de vento, senhor. Aquele onde não só os enfrentamos, mas os derrotamos. – Os olhos do rapaz faiscavam e ele não controlou um sorriso.

– Você percebe que se te aprovo coloco em cheque todo o sistema de cotas? Percebe o quanto este sistema assegura que mais pessoas tenham acesso igualitário ao ensino superior no Brasil? – Perguntou o superintendente.

– Mas o vestibular é uma ferramenta de seleção dos melhores para ingressar na academia, não uma ferramenta para que todos tenham acesso à universidade. Se a intenção era dar oportunidades paritárias um sorteio seria mais adequado. Ou então que sejam oferecidas vagas a todos criando mais universidades. – Era surpreendente como a clareza de raciocínio do rapaz era tão grande e, ainda assim, seu interlocutor o compreendia tão pouco.

– Pois bem, você tem algo para nos convencer dessa história estapafúrdia que nos contou? – Se a raiva pela petulância do rapaz e o atordoamento pela resposta anterior não cegassem o superintendente, talvez ele percebesse uma ponta de adimiração pelo candidato raiar.

O rapaz abriu sua pasta e espalhou sobre a mesa alguns artigos científicos sobre as primeiras migrações de Homo sapiens, a colonização das ilhas da Indonésia e Oceania, a Migração pelo estreito de Bering para as Américas. Eram periódicos como a Nature, Proceedings, Science, capítulos de livros clássicos de antropologia e evolução humana. Uns traziam dados de DNA mitocondrial das populações, outros datavam esqueletos fósseis escavados, outros ainda seguiam rastros de ferramentas, arte rupestre e fogueiras. O volume de argumentos era gigantesco.

Uma
semana depois o edital divulgado pelo jornal local estampava o nome do rapaz na lista dos aprovados.