A íbis criativa
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
A secretária recém contratada enfiou a cabeça dentro do consultório interrompendo a consulta anterior da doutora, que atendia uma poliqueta fêmea afeita a sexo grupal, numa orgia chamada epitoquia.
-Doutora, o pássaro que vai entrar na próxima consulta está rasgando suas revistas.
-Por favor, não me interrompa. A sessão de terapia é um momento muito íntimo entre profissional e paciente. Deixe-a rasgar o que quiser.
Momentos depois a doutora abre a porta e deixa passar a poliqueta. A íbis que era a próxima cliente tinha ao seu redor um conjunto de dobraduras feitas com diversas páginas de revistas. Os origamis, todos representando outras íbis, desenhavam no chão formações diversas.
-Vamos entrando, Dona Geronticus, a senhora é a próxima. – A doutora acompanhou a ave totalmente sem penas na cabeça vermelha semelhante à de um urubu caminhando com deselegância para dentro de sua sala e se empoleirando no encosto do divã. – O que a traz aqui hoje, minha cara?
– Doutora, será que tenho uma fixação na fase anal? Adoro inventar coisas diferentes na hora de voar, mas ninguém reconhece a genialidade do que eu crio. Tenho uma dependência de reconhecimento.
-Ninguém reconhece sua genialidade. Fale mais sobre isso.
-Bom, as íbis carecas sempre voam em formação de V. Me parece que todas nós nascemos assim e só sabemos fazer isso. Não nos questionamos, não damos asas à nossa imaginação. Só papagaiamos um padrão. Odeio isso. Eu prefiro criar! Prefiro inventar formações novas. Toda vez que chega minha hora de assumir a frente do bando eu dirijo as outras meninas para fazermos os mais lindos padrões nos céus. Passei pela fase das figuras, desenhando corações, trevos, ondas, casas. Passei pela fase dos emoticons, com as mais diferentes carinhas. Passei pela fase das mensagens, voávamos escrevendo “papagaio come milho, periquito leva a fama” ou “de grão em grão a galinha enche o bico”. Adoro inventar formações diferentes. O problema é que minhas companheiras de bando ficam rechaçando minha criatividade, me inibindo. Não aguento mais essa vida burocrática de só voar em V, mas se elas não querem colaborar, não consigo dar vazão à minha arte! Me ajude, doutora. Como posso abrir a mente delas?
-De fato, a senhora é muito inventiva e reconheço o mérito nisso. Mas já considerou que talvez exista uma razão de ser para todas as outras íbis só voarem no tradicional V? Talvez fosse melhor direcionar sua criatividade para outras áreas.
-Mas por que haveria uma vantagem específica em voar em V? Por que não em círculo ou em X?
-Olha, pesquisadores sugerem há décadas que esteja relacionado à economia de energia e ao aproveitamento do vórtex criado na ponta da asa da ave ao lado, mas nunca foi possível medir se as aves conseguem de fato se posicionar e abanar as asas da forma realmente mais econômica. Seria necessário usar sensores de posição nas aves que seriam grandes e pesados demais para não atrapalhar no próprio voo. A menos que uma íbis resolva estudar isso.
-Doutora, que grande ideia. Sempre quis me tornar uma cientista. Elaborar as mais audaciosas hipóteses e os mais belos teoremas matemáticos de excelência em voo. Seria perfeito! – Sorriu a ave com seu bico adunco e um leve arrepio nas coberteiras atrás da cabeça.
-Não tente mudar a forma de voo, a formação em V aparentemente proporciona uma economia energética razoável, por isso outras formações não são feitas em geral. Não é falta de criatividade, é um ótimo alcançado empiricamente. Nosso horário acabou. Posso ajuda-la em algo mais?
-Não, foi ótimo ter vindo. A senhora deu uma excelente ideia. – E lá se foi volitando a íbis, com uma nova perspectiva, ignorando o elevador e saltando janela a fora. Na antessala do consultório.
A secretária correu até a janela. – Passarinho estranho, hein doutora. Todos os seus pacientes são assim?
-Minha cara, de perto ninguém é normal. Nem a senhorita! E ela não é um passarinho, é uma ave. Uma íbis criativa.
Portugal, S., Hubel, T., Fritz, J., Heese, S., Trobe, D., Voelkl, B., Hailes, S., Wilson, A., & Usherwood, J. (2014). Upwash exploitation and downwash avoidance by flap phasing in ibis formation flight Nature, 505 (7483), 399-402 DOI: 10.1038/nature12939
Forma de peixe
Peixes são o grupo mais diversificado de vertebrados, mas isso nem sempre se reflete na diversidade de formas de corpo desses animais. Claro que temos bichos tão diversos em forma quanto um baiacu, uma arraia e uma moreia, mas no geral os peixes são bem “peixeformes”. Basta pensar na diferença de forma entre um elefante, um morcego e uma lontra para ter essa impressão mais clara. E por que essa forma de peixe é tão mais comum? Aliás, por que ela se repete até em espécies de outros grupos de vertebrados nadadores, como golfinhos e pinguins? A forma padrão é uma receita para a economia de energia.
A água é um meio 18 vezes mais viscoso que o ar, isso impõe grandes desafios aos organismos que tentem se deslocar dentro dela. Vencer o arrasto, ou seja, a resistência da água, demanda muita energia. Portanto, um animal que fizesse isso melhor economizaria energia com a locomoção e poderia investi-la em outra área de sua vida, por exemplo, na reprodução. Assim fazendo, ele poderia passar essa forma de locomoção mais eficiente à prole e logo haveria uma convergência de forma nos peixes para aquela mais eficiente.
Qual então é a melhor maneira de se deslocar dentro d’água? De acordo com a terceira lei de Newton, toda ação gera uma reação de igual intensidade, mas direção oposta. Assim, nadar para frente gera uma reação que freia o peixe. A isso damos o nome de arrasto. Existem dois tipos de arrasto, o viscoso e o inercial. O viscoso age de maneira mais ou menos uniforme, independente da velocidade do peixe, o inercial aumenta exponencialmente com a velocidade.
Para vencer o arrasto viscoso o peixe precisa ser o mais liso e curto possível, por isso peixes velozes têm escamas reduzidas ou ausentes e são recobertos por muco. Corpos muito longos têm uma superfície maior, portanto mais arrasto viscoso. Eles também têm menos musculatura para compensar esse arrasto. Já corpos muito espessos têm mais músculo, mas o volume de água que deslocam afeta muito o arrasto inercial (experimente passar o braço na água com a mão de lado ou de frente). À medida que o arrasto viscoso diminui, o inercial aumenta.
Deve haver então um ponto de compensação, no qual os dois tipos de arrasto estejam o mais baixo possível. Esse ponto ocorre em corpos em forma de gota com a largura máxima igual a 0,25 do comprimento. Não foi uma surpresa descobrir que a maioria dos grandes nadadores têm forma de corpo nessa proporção, que hoje chamamos de fusiforme, ou hidrodinâmico.