O nudibrânquio emasculado

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Não devia ter chamado o cliente de lesma. A secretária olhava o rastejando para dentro do consultório com o lábio inferior evertido e as narinas contraídas numa clara expressão de nojo. A doutora não conseguia entender como a secretária podia ver com asco aquilo que ela mesma considerava lind@. Uma lesma marinha com duas protuberâncias alaranjadas na parte da frente e um tufinho de brânquias atrás, tod@ vermelho vinho com pintas brancas. É isso, não devia ter chamado de lesma.

-Entre, senhor@ Chromodoris. – Convidou a analista tentando evitar uma declinação de gênero a esse animal hermafrodita. – O que @ traz aqui hoje?

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

Por um tempo @ nudibrânqui@ tergiversou sobre seu trabalho de arquivista numa repartição burocrática, sobre o conforto que a rotina dava e sobre sua falta de criatividade, que el@ não via como problema, porque era melhor não ousar que ver as coisas dando errado. A psicóloga, que já tinha alguns anos de experiência, sabia quando tentavam evitar problemas reais.

-Como era sua relação com sua pãe e seu mai? – Pãe, como se sabe, é o indivíduo hermafrodita que recebeu os espermatozoides do mai na hora do sexo. Um mesmo animal pode ser pãe de um filho e mai de outro se o sexo for recíproco.

-Nossa, doutora, que mudança radical de assunto. Bom, meu mai foi pouco presente em nossa família, nunca nos deu muito apoio. Em compensação minha pãe tinha um pulso firme. Pulso é maneira de dizer, né. Nós nudibrânquios não temos pulso. Papãe era muito sever@, fazia questão de que tudo andasse nos eixos. Papãe era mai e pãe ao mesmo tempo, e não era só porque era hermafrodita. Acho que é normal ser oprimido, né?

-Não é não. @ senhor@ precisa se impor também. Isso é complexo de castração! – Pronunciada a última frase, ficou instantaneamente lívid@ , os rinóforos murchos completavam o quadro de desolação.

-Co-como a senhora sabe? – Gaguejou baixinho em pânico.  – Como sabe que eu fui castrado? Todos podem perceber?

– Eu quis dizer em sentido figurado. Mas por que você diz isso? Quer me contar algo mais?

Chromodoris passou os minutos seguintes contando sobre seu primeiro e último relacionamento apenas algumas horas antes, mas que pareciam uma eternidade. Como @ namorad@ era charmos@, mas ao mesmo tempo dominador@. Como haviam se amado mutuamente, mas também como a culpa havia surgido avassaladora. Num momento de confusão entre ser macho, fêmea ou hermafrodita, arrancara violentamente o próprio membro. Agora era toda mulher, mas a culpa e a confusão não passavam. Já perdera a concha quando ainda era uma larvinha, agora a perda auto-infringida do pênis era demais para suportar. Por isso marcara a sessão urgente com a analista.

Enquanto narrava @ cliente percebeu aquela sensação intoxicante no osfrádio e lágrimas começaram a escorrer aos borbotões. A psicanalista esperou alguns instantes e preparou um lenço de papel e sua voz mais acolhedora.

-Acalme-se. Você é o que você é. Sua castração é meramente temporária, de fato, se você olhar agora mesmo perceberá que um novo pênis está se formando. Quando encontrar outr@ parceir@ já estará pront@ para copular outra vez.

Despediram-se na porta do consultório. @ nudibrânqui@ rastejando para o elevador do prédio enxugando as lágrimas. Mais conformad@ e menos assustad@, el@ até ensaiou um sorriso amarelo que mal descobria a rádula enquanto a porta do elevador se fechava. A doutora ficou para trás, pensando em como somos todos hermafroditas e temos dificuldade de lidar com isso.

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Sekizawa, A., Seki, S., Tokuzato, M., Shiga, S., & Nakashima, Y. (2013). Disposable penis and its replenishment in a simultaneous hermaphrodite Biology Letters, 9 (2), 20121150-20121150 DOI: 10.1098/rsbl.2012.1150