Evitando virar almoço 2 – Camuflagem

A técnica dessa semana de evitar virar comida talvez seja a mais conhecida delas. Entendo aqui camuflar-se estritamente como ter uma cor que se confunde com o meio. Essa é uma técnica mista, porque envolve a forma passiva, simplesmente ter a cor do ambiente que você ocupa, e uma forma ativa, nas espécies que mudam de cor ou que viram seu lado menos colorido quando se sentem ameaçados (pense numa borboleta que tem um lado da asa azul royal iridescente e o outro acinzentado como uma casca de árvore).

Alguns animais são mestres do disfarce e se camuflam absurdamente bem. Mas pense que uma leve capacidade de se camuflar já pode reverter em sobrevivência e ser valorizada em termos evolutivos. Esses exemplos de camuflagem perfeitos demais me preocupam um pouco porque parecem que foram desenhados por alguém com um propósito. Não foram! Parecer 10% com uma folha seca pode significar 10% mais sobrevida, 10% mais filhotes e, voi là, está fixada a característica.

Num banco de algas esse parente dos cavalos marinhos fica absolutamente oculto. Fonte:  wikicommmons

Num banco de algas esse parente dos cavalos marinhos fica absolutamente oculto. Fonte: wikicommmons

Um problema da camuflagem é que em geral ela limita os ambientes em que um animal pode viver. Imagine um dragão do mar como o da foto acima num costão rochoso, ou uma aranha como essa numa flor vermelha. A solução para isso apareceu em animais que mudam de cor e, com isso, conseguem se esconder em vários ambientes. O exemplo clássico são os camaleões, mas pessoalmente invejo muito mais os linguados e as sibas. Especialmente em vésperas de prova quando todos os alunos estão procurando você para tirar dúvidas e tudo o que queremos é sumir.

Linguados mudam de cor muito mais eficientemente que camaleões. Fonte: webecoist.momtastic.com

Linguados mudam de cor muito mais eficientemente que camaleões. Fonte: webecoist.momtastic.com

A siba mitomaníaca

ResearchBlogging.org

Naquela manhã no consultório psicanalítico…
A recepção estava em silêncio e já passava do horário da próxima cliente. A secretária havia tirado a manhã para ir ao médico, estava com medo de ter sido contaminada por um pai barata d’água que estava em crise com medo de não serem seus os ovinhos que protegera com tanto afinco.
A doutora resolveu procurar do lado de fora e percebeu um vulto esgueirando-se do vaso de plantas em direção ao balcão da atendente. Agora, olhando para o balcão, tudo parecia normal. O pote de caramelos, a agenda, os dois porta-lápis, o retrato da família da secretária. Dois porta-lápis? Ali costumava haver um só!
– Bom dia, Srta. Sepia, pode sair do seu esconderijo. Já a vi. – Ao perceber que tinha sido descoberta a siba se dismilinguiu sobre o balcão, os bracinhos, antes perfeitamente parecidos com lápis e canetas coloridas, murchos sobre a mesa e todo seu corpo num tom pálido e decepcionado.

à esquerda o porta-lápis, à direita a siba camuflada de porta-lápis. Repare como os braços imitam bem os lápis.

Fonte: www.submarino.com.br

-Vamos entrando. – Disse a doutora enquanto fechava a porta e a cliente se deitava no divã. Ao virar-se o consultório parecia novamente vazio. – Minha cara, você se importa de NÃO imitar o padrão de cor do estofado. Não me sinto muito à vontade conversando com minha mobília.
-Desculpe doutora. É tão difícil me controlar!
-Controlar… – Ecoou a analista nem em tom de afirmação nem de pergunta, só para instigar a cliente a falar mais.
-É. Não paro de me camuflar.
-Se camuflar? Você gosta de parecer aquilo que não é? – Continuou a terapeuta.
-Não, quer dizer, sim. Não é por mal, doutora. Eu só não consigo evitar. Sabe, doutora, já nem sei como sou de verdade, quero dizer, sem me camuflar em nada. – Foi dizendo o bichinho e passando com leveza para cima da mesa de centro.
-Esse comportamento é típico de quem tem vergonha do seu self. Você tem medo de mostrar ao mundo o seu eu-interior?
-Não, doutora. Eu tenho medo é de mostrar o meu eu-exterior para o eu-exterior dos meus predadores e terminar no eu-interior deles! O recife está coalhado de garoupas com infinitos dentes na boca e elas adoram uma siba como petisco.
-Compreendo. Mas e no momento, o que você tem a temer? – interrogou a psicóloga.
-Aqui no consultório? Nada, oras.
-E por que você continua se camuflando?

Agora de verdade, A siba usa não só cores, mas a posição dos braços para se camuflar.

Fonte: Barbosa et al., 2011 (citação completa abaixo)

-Mas eu não estou… Ah!! – Gritou a siba ao ver que estava com o manto preto, a cabeça e o início dos tentáculos erguidos e  verdes e as pontinhas rosadas como o vaso de violeta ao seu lado. – Doutora, o que está acontecendo comigo?
-Acontecendo contigo? Você está se transformando no Karl von Frisch. – Respondeu a analista sem querer apavorar o molusco.
-Em quem? Ah!! – Outra vez a siba assustou-se ao ver refletida no vidro de uma fotografia emoldurada a mesma imagem de um senhor de cabelos espetados, queixo pronunciado e óculos que estava no retrato.
-Acalme-se! Vamos precisar de mais consultas e vou te recomendar um remédio. Mas você precisa voltar ao consultório duas vezes por semana, Srta. Sepia. – A cefalópode agora estava acuada num canto do consultório, seus oito braços e dois tentáculos envoltos no próprio corpo encolhido e uma lágrima de tinta preta lhe escorria pelo sifão.
-Até logo, doutora. Por favor, não desista de mim. – E a siba saiu pela porta, branca e salpicada de pintinhas pretas como o papel de parede.

Barbosa, A., Allen, J., Mathger, L., & Hanlon, R. (2011). Cuttlefish use visual cues to determine arm postures for camouflage Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences DOI: 10.1098/rspb.2011.0196

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