Não temam, não há crise nenhuma! Um diálogo dialético com Boaventura de Souza Santos
“De certa maneira, o sujeito dialético é interpolado em uma narrativa construtiva que inclui a cultura em sua totalidade. Abundantes teorias existem enfocando o paradigma textual da narrativa, mas o modernismo sugere que o consenso é, apenas e tão somente, um produto da comunicação, desde que o ensaio de Lyotard sobre a narrativa construtiva seja considerado válido. Assim, diversas construções acerca do paradigma materialista do gênero podem ser desveladas.”
Sabe do que se trata o texto acima? Nem eu. Ele foi produzido por sorteio de palavras no divertido site Pos-modernism generator e traduzido livremente por mim. Comecei o texto com esta citação falsa para dar uma ideia de a que sobrevivi.
Semana passada superei um desafio: Li de capa a capa um livro cujo conteúdo eu discordava escrito em uma linguagem que entendo pouco e que, mais importante, me seduz menos ainda. Em um grupo de discussão do qual participo sobre o conceito de ciência nos foi sugerida a leitura e discussão do livro “ Um discurso sobre a ciência”, do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Em síntese o autor sugere que a ciência como a conhecemos está em crise e se encaminhando para ser substituída por uma nova forma de fazer ciência. O livro foi o texto curto mais longo que já li. Apesar de serem apenas 51 páginas, tudo é escrito em termos tão empolados e circulares, como bem cabe a um pós-modernista, que poderia muito bem ter sido gerado no programa do site referido acima.
Santos sugere pesquisas emblemáticas da física como a relatividade de Einstein e a Física quântica como evidências de que a ciência vai mal das pernas. Aliás, relatividade e princípio da incerteza de Heisemberg são dois dos conceitos preferidos de quem quer dobrar a compreensão do que é ciência. Isso porque, a princípio, estes campos subvertem algumas de nossas certezas. É de fato desconcertante pensar que um objeto está e não está em um dado lugar ao mesmo tempo, mas todos que se apropriam destes conceitos o tiram de contexto de forma a ajudar a denegrir o próprio empreendimento que os gerou, a ciência. Para entender melhor o que estes conceitos da física falam e como eles foram distorcidos no raciocínio do Boaventura veja o post do Kentaro.
Boaventura segue argumentando que, a seu ver, tudo o que a ciência faz é subjetivo, já que nem suas medidas nem suas ferramentas de análise (a matemática) são precisas. Este é outro exercício corriqueiro dos pós-modernistas. Relativizar tudo (talvez daí o gosto pela teoria da relatividade em mais um mal-entendido) é dizer que nada é bem assim como pensamos que seja. Entes primitivos da matemática como ponto e zero demandam uma definição, mas daí a dizer que nada que use matemática é preciso é um exagero. Assim o autor escreve: “Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade, […] em vez da ordem, a desordem.” O que ele descreve como sintomas de uma ciência convalescente, quase moribunda, pode ser apreciado por outros como as ideias que permitiram algumas das maiores revoluções tecnológicas para sedimentar a forma atual de fazer ciência. Não existe uma crise na forma com que fazemos ciência.
De fato, a ciência desenvolveu tamanho status que formas de produção de conhecimento, que mereceriam atenção e respeito simplesmente por serem produtoras de conhecimento, disputam para serem aceitas como ciência, muito embora não apliquem o próprio método que define o que é ciência. As limitações e percalços da ciência parecem perder importância, tornando-se a proverbial grama do vizinho.
Boaventura continua discutindo que a ciência está em crise porque não é bela. Em suas próprias palavras: “o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste, que transforma a natureza num autômato.” Ora, como bom relativista o autor deveria saber que a beleza está nos olhos de quem vê. Parafraseando o livro de Richard Dawkins, um arco-iris é mais bonito se não soubermos que ele é o resultado da difração da luz por gotículas de água dispersas na atmosfera? Acredito que não. Ao contrário, aos interessados, a compreensão só irá aumentar a beleza ou o interesse de determinado assunto.
Boaventura de Souza Santos encerra seu livro apresentando como será o novo modelo de produção científica. Bem, ele tentou ao menos. Seus presságios foram escritos perto de 1985 e até o momento nenhuma de suas profecias passou nem perto de concretizar-se. Ele começa propondo que as ciências duras e humanas se fundirão, convergindo para o modo de ser das ciências humanas. A ciência dura busca isentar-se de interferir em seus resultados, já as ciências sociais acreditam que a interação é inevitável. Buscar alterar o mínimo possível seus resultados precisa ser um objetivo do cientista, abdicar disto é jogar para cima todo o procedimento que fez a ciência atingir seu status atual. Se esta previsão do autor se concretizasse a ciência perderia seu caráter, felizmente ele tem se demonstrado muito ruim de chute.
Em mais um exemplo de malabarismo literário o autor afirma que, em sua ciência pós-moderna, não haverá mais separação do conhecimento em áreas. Novamente transcrevendo-o: “Todo conhecimento é local e total […] Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser disciplinado, ou seja, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor.” Mais uma vez o autor não conhece nada de como se faz ciência de ponta hoje, numa edição recente da Nature a matéria de capa estudava a relação entre formas de governo polinésias usando sistemática filogenética, uma ferramenta tradicionalmente da biologia. Atravessar barreiras é uma das formas mais culturalmente ricas e cientificamente elegantes de gerar novos conhecimentos. Talvez aí o autor acerte caso suas premonições se concretizem. Particionar o conhecimento em disciplinas acontece porque o volume de informação é tão grande que é impossível dominar muitas áreas. Já que a ciência pós-moderna que ele propõe parece inviabilizar a produção de um grande volume de conhecimento, é possível que com o tempo voltemos a dominar muitas áreas como na época da história natural.
As duas últimas propostas do autor são: a ciência do futuro será uma forma do cientista se auto-conhecer e que todo conhecimento científico quer ser conhecimento popular. O primeiro é mais uma investida relativista, cientista que quer se conhecer não vai estudar as ligações atômicas possíveis entre elementos químicos, vai fazer terapia! A ideia é que as pesquisas, as hipóteses e as conclusões que um pesquisador elabora falam mais sobre o pesquisador do que sobre a pergunta. Não é que não falem sobre o pesquisador, mas o foco delas não é este. Quem quer auto-conhecimento não vira pesquisador, vira sujeito experimental. Quanto ao senso-comum, até poderia aceitar que seria interessante que o conhecimento científico fosse tão bem divulgado que fizesse parte do repertório de conhecimento do cidadão comum, mas não tornando-se saber popular. Ele pode ser dominado pelo público sem perder seu caráter de ciência.
Se valeu o sofrimento da leitura? Como disse o Karl, pelo menos o livro ainda gera discussões e posts. Mas nas próximas reuniões vou pressionar para ser algo mais digesto. E chega que eu acho que este é o post mais longo da história do Ciência à Bessa…