Feminismo Negro

Halina Leal

Universidade Regional de Blumenau (FURB). São Luiz, Colégio e Faculdade – Lattes

Feminismo Negro é o termo utilizado para designar o movimento teórico, político, social e prático protagonizado por mulheres negras e que busca dar visibilidade às pautas deste grupo. Este movimento vai ao encontro das experiências das mulheres negras na diáspora africana. Experiências estas que variam, mas que mantêm um eixo comum que se traduz em ações e reações às condições de vulnerabilidade de grande parte destas mulheres.  

As feministas negras apontam para o fato de que os Movimentos Feministas e os Movimentos Negros falharam e ainda falham ao negligenciar as peculiaridades das necessidades das mulheres negras. O histórico dos Movimentos Feministas indica desinteresse no tratamento de questões de raça. Como aponta Angela Davis em sua obra Mulheres, Raça e Classe, as sufragistas brancas expressaram total descontentamento quando, depois da Guerra Civil dos Estados Unidos, os homens negros obtiveram o direito ao voto e elas não, proferindo, naquele momento, reclamações explicitamente racistas (2016, Capítulo 4). Posteriormente, mesmo quando não eram explicitamente racistas, ao definirem indistintamente as questões de gênero, as feministas brancas universalizaram as suas experiências e reduziram estas experiências às necessidades de um grupo de mulheres: das mulheres brancas de classe média e alta. Neste sentido, os Movimentos Feministas expressaram, e alguns ainda expressam, um pensamento hegemônico reducionista, e, sobretudo, indiferente às situações de dominação e opressão sofridas pelas mulheres negras, revelando, em diferentes nuances, sua face racista. Os Movimentos Negros, por sua vez, ao banirem debates e análises de gênero, vêm demonstrando desinteresse em combater o sexismo. Nestes movimentos, as questões raciais estão historicamente ocupando um lugar hierárquico superior às questões de gênero. Em geral, argumenta-se que, se as questões raciais fossem resolvidas, automaticamente as dificuldades pelas quais as mulheres negras passam desapareceriam. Assim, negligencia-se o fato de que sobre as mulheres negras não recai somente a opressão racial. Por serem mulheres, recai também sobre elas a opressão de gênero e, de modos mais violentos do que sobre as mulheres brancas, já que as mulheres brancas não estão sujeitas ao racismo. 

Sojourner Truth, no seu célebre discurso Não sou uma mulher?, proferido em 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, já apontava para estas questões quando interrogava, em primeira pessoa, se a mulher negra não é mulher. Isto porque, enquanto força de trabalho, as mulheres negras sempre foram vistas como tão resistentes quanto qualquer homem. Num dos trechos de seu discurso, Truth afirma: “(…) eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! Não sou uma mulher? (…)”. O que se observa, e Sojourner Truth foi pioneira em apontar isto, é que as mulheres negras nunca foram vistas como frágeis, como quem requer algum tipo de cuidado. Muito pelo contrário, suas imagens sempre estiveram associadas à disponibilidade para trabalhar, cuidar e servir, inclusive sexualmente.  

O Feminismo Negro ressalta, assim, que, neste contexto, as questões de raça e suas dificuldades associam-se unicamente ao ser homem negro, e as questões de gênero unicamente ao ser mulher branca. As experiências das mulheres negras não se inserem nem no ser mulher nem no ser negro. Seja nas discussões teóricas, seja nas vivências do dia a dia, a mulher negra experiencia o não lugar. Em Memórias da Plantação, ao se referir a este ponto, Grada Kilomba afirma que as mulheres negras têm sido incluídas em diversos discursos que não interpretam as suas realidades. Segundo Kilomba, o sujeito do discurso de gênero é a mulher branca e o sujeito do discurso sobre o racismo é o homem negro. Deste não lugar ou – como afirma Kilomba, a partir de Heidi Safia Mirza (Black British Feminism, 1997) – deste espaço vazio que se sobrepõe às margens da raça e do gênero, denominado de “terceiro espaço”, as mulheres negras habitam uma espécie de vácuo de apagamento e de contradição, que se sustenta pela polarização entre mulheres de um lado e negros de outro, com as mulheres negras no meio. Kilomba ressalta ainda que as narrativas separadas mantêm a invisibilidade das mulheres negras nos debates acadêmicos e políticos. (Kilomba, 2019, pp. 97-98) Portanto, não é possível, no caso das mulheres negras, compreender gênero e opressão racial de forma separada, pois a separação aumenta a invisibilidade das diferentes necessidades das mulheres negras comparadas aos homens negros e às mulheres brancas.  

É neste sentido que o Feminismo Negro tem como base a noção de interseccionalidade. As opressões sofridas pelas mulheres negras são resultantes da intersecção de opressões de gênero e de raça e colocam a maioria das mulheres negras à margem do poder e da representação, invisibilizando-as em diferentes contextos. A interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica utilizada pelas feministas negras para refletir acerca da inseparabilidade estrutural entre patriarcado, sexismo, e racismo em suas articulações, que implicam em múltiplas situações de opressão sofridas pelas mulheres negras. A intersecção de estruturas racistas e machistas sobre estas mulheres as coloca mais expostas a condições de vulnerabilidade política e social. Conceitualmente, o termo foi cunhado por Kimberlé Crenshaw, jurista estadunidense defensora dos direitos civis e professora de teoria crítica de raça, num contexto de crítica às leis antidiscriminação dos Estados Unidos. Segundo Carla Akotirene, em O que é interseccionalidade?, este conceito “é uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras” (Akotirene, 2019, p.13). Em outras palavras, este é um conceito criado por mulheres negras e para as demandas das mulheres negras manifestadas pelo Feminismo Negro.  

Mesmo sem ser expresso conceitualmente, já com Sojourner Truth, no início do movimento, há uma primeira referência à interseccionalidade, como uma provocação a se pensar acerca das condições de opressão peculiares às mulheres negras. Mas foi somente a partir da década de 1960, em resposta ao sexismo do Movimento dos Direitos Civis dos negros nos EUA e ao racismo do Movimento Feminista, que o movimento de mulheres negras se tornou popular. Entre 1970 e 1980, formaram-se vários grupos que instigaram debates sobre o papel das mulheres negras nestes movimentos e em outros movimentos sociais, assumindo como base a noção de interseccionalidade de opressões. Destacam-se, nestas reflexões, as cruciais contribuições de Angela Davis (1944 – ), com a obra Mulheres, Raça e Classe  (1981/ 2016), a de Audre Lorde (1934-1992), com Irmã Outsider (1984/2019), e de June Jordan (1936-2002), com a obra Civil Wars (1981). A partir do século XXI, com a expansão das mídias sociais, as ideias das feministas negras aumentam seu alcance e, desde então, a produção teórica e o ativismo do movimento crescem a cada dia, e figuras como bell hooks, autora de textos como E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo (1981/2019), Teoria Feminista: da margem ao centro (1984/2019), Erguer a Voz: pensar como feminista, pensar como negra (1989/2019), Olhares Negros: raça e representação (1992/2019), Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade (1994/2017) e O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (2000/2019); e Patrícia Hill Collins, autora do célebre Pensamento Feminista Negro (1990/2019), também se popularizam.  

No Brasil, o Feminismo Negro ganha força e visibilidade a partir da década de 1970, com o Movimento de Mulheres Negras (MMN). Neste momento, pensadoras e ativistas negras problematizam a falta de uma abordagem interseccional nas pautas de gênero e de raça pelos movimentos sociais. De forma similar ao caminho analítico trilhado pelas feministas negras estadunidenses, as feministas negras brasileiras apontaram para a falta de abordagem racial no Movimento Feminista brasileiro, o qual não pautava a dupla discriminação sofrida pelas mulheres negras; assim como apontaram para a falta de interesse, no Movimento Negro liderado por homens, de atuar nas lutas contra o machismo e o sexismo.  

A partir de 1980, com o II Encontro Feminista Latino-Americano (1985), ocorrido em Bertioga, São Paulo, e com o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988), que aconteceu em Valença, Rio de Janeiro, o Feminismo Negro no Brasil começa a se fortalecer. Com estes encontros e mobilizações busca-se dar visibilidade às pautas das mulheres negras no ambiente feminista brasileiro. Pensadoras e ativistas como Lélia Gonzalez (1935 – 1994), Maria Beatriz Nascimento (1942 – 1995) e Sueli Carneiro (1950 – ) despontam como importantes representantes do Feminismo Negro brasileiro. Beatriz Nascimento, historiadora e ativista pelos direitos humanos de mulheres e negros, desenvolveu os temas de territorialidade, corporeidade e identidade, ressaltando a importância de mulheres e negros serem sujeitos de suas próprias histórias e discursos. Em outras palavras, ela enfatizou a importância da inclusão das reflexões e experiências das próprias mulheres nas discussões de questões de gênero, bem como das questões de raça serem pensadas sob a ótica de negras e negros. Lélia Gonzalez, antropóloga, filósofa e historiadora, tentou articular as questões dos negros e das mulheres, sempre denunciando o racismo do ambiente acadêmico brasileiro. Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista antirracismo do Movimento Social Negro do Brasil, levou, de forma ostensiva, as demandas raciais ao Movimento Feminista brasileiro, apontando para o fato de o ativismo das mulheres brancas não dialogar com as questões raciais. A partir do ano 2000, com a maior circulação de informação por meio das redes sociais, o Feminismo Negro brasileiro ganha novos contornos e busca um maior protagonismo, seja no contexto intelectual, seja no ativismo e em debates sobre problemas estruturais relacionados ao racismo e ao sexismo. É neste ambiente que surgem nomes como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Joice Berth, Juliana Borges e outras pensadoras/ativistas que contribuem com a disseminação dos discursos críticos do Feminismo Negro brasileiro.  

As feministas negras articulam o Feminismo Negro como um movimento não essencialista que questiona a ideia de uma epistemologia universalista. A noção de um conhecimento universal, além de expressar interesses específicos de um grupo social dominante, impede o conhecimento de diferentes perspectivas, desconsiderando saberes de outras e outros sujeitos colocados à margem do conhecimento estabelecido. A partir de um aporte teórico e de posturas específicas, busca-se desenvolver variadas narrativas, validando conhecimentos e discursos para além dos discursos hegemônicos eurocêntricos.  

A epistemologia do movimento feminista negro envolve a valorização das experiências de vida e de visões de mundo das mulheres afrodescendentes. No livro Pensamento Feminista Negro (1990/2019), Patrícia Hill Collins compreende que mesmo se focada no contexto estadunidense, sua perspectiva abarca outras experiências de mulheres negras na diáspora, apontando para quatro dimensões da epistemologia feminista negra. A primeira dimensão é a da valorização da sabedoria, envolvendo a perspectiva vivencial; a segunda é a do diálogo com outros membros da comunidade, para além do âmbito acadêmico, vistos como importantes para a construção de novos conhecimentos. A terceira dimensão é a da ética do cuidado, na qual fatores como a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são considerados como fundamentais no processo de validação do conhecimento; finalmente, a ética da responsabilidade pessoal, a partir da qual espera-se que o indivíduo tenha relação direta com suas próprias ideias e se responsabilize pelo seu discurso (Collins, 2019, capítulo 11). Neste sentido, a epistemologia do Feminismo Negro ressalta a interação entre teoria e vivência, a centralidade analítica das experiências e ideias das mulheres negras, a criatividade intelectual e a exigência de que o pensamento implique ações, assim como ações impliquem pensamentos. Tudo isto considerando uma linguagem que abarque não somente a objetividade, mas a subjetividade em discursos considerados válidos. Este último ponto ressalta a necessidade de, no contexto epistemológico, não se desvincular a narrativa da pessoa que narra. Esta deve ter consciência do seu lugar no discurso, revelando, para si e para os outros, o lugar social do qual fala. É nesta direção que o conceito de “lugar de fala” se apresenta também como constituinte do Feminismo Negro.  

Djamila Ribeiro, em O que é lugar de fala? (2017), explica que o conceito de “lugar de fala” reivindica diferentes pontos de análises e diferentes afirmações, buscando refutar a historiografia tradicional e a hierarquização dos saberes. O conceito serve para auxiliar na compreensão de como as falas marcam relações de poder e eventualmente reproduzem preconceitos e estereótipos. “Lugar de fala” não é somente o poder falar. O conceito não pretende apenas legitimar a expressão de amontoado qualquer de palavras, mas revelar uma hierarquia violenta que subjaz as autorizações, as decisões sobre quem pode e quem não pode falar. Essa hierarquia, por sua vez, é fruto da classificação racial, de gênero e de classe de grupos de pessoas. “Lugar de fala” surge para problematizar e refutar alguns pressupostos da epistemologia dominante, na medida em que possibilita trazer à consciência a existência de estruturas única e essencialmente relacionadas à branquitude no discurso dominante, sob um olhar branco, masculino e europeu. A partir da tomada de consciência que o uso do conceito possibilita, ele se configura como possibilidade eficaz de enfrentamento do discurso dominante, por meio da promoção da multiplicidade de vozes. Estas vozes apresentam-se como potencialmente capazes de quebrar o discurso autorizado e que se pretende universal.  

Assim, o objetivo do Feminismo Negro é o desenvolvimento do empoderamento das mulheres negras, tendo em vista o que Collins denomina de justiça social ou o que Davis salienta como modificação das estruturas sociais. Este empoderamento não é direcionado pura e simplesmente para conquistas individuais, mas às coletividades de mulheres negras que desenvolvem um entendimento de sua condição social e política, de sua história e de suas variadas habilidades, autoafirmando-se e trilhando caminhos de superação das condições impostas pela dominação. Nesse sentido, a superação não envolve somente a libertação das mulheres negras individualmente ou enquanto grupo, mas envolve também a libertação de homens negros, mulheres não negras, comunidade lgbtq+ e todas e todos em situações de desigualdade e opressão. Em última análise, ao refletir sobre as bases dos sistemas opressivos, o Feminismo Negro amplia e diversifica não somente o debate, mas seu campo de atuação enquanto um movimento social e político.  

Referências 

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