Karoline von Günderrode

(1780-1806)

Por Fabiano Lemos, professor adjunto do Departamento de Filosofia da UERJ, pesquisador do CNPq. Lattes.

Litografia de Valentin Schertle, sem data

PDF – Karoline von Günderrode

Vida

Como ocorre com boa parte dos autores e autoras do Romantismo alemão, grupo ao qual Karoline von Günderrode é comumente associada, a biografia dessa escritora é atravessada de mitificações que, em grande medida, eclipsam uma discussão mais cuidadosa de seus escritos. Nascida em Karlsruhe, no sudoeste da Alemanha, em 11 de fevereiro de 1780, Günderrode ficou conhecida logo após seu suicídio, aos 26 anos, à beira do Reno, em Winkel, um pouco ao norte de sua cidade natal. Uma representação bastante difundida de sua figura, recorrente mesmo em trabalhos mais consistentes de história e historiografia da literatura alemã até hoje, é a da poetisa incompreendida, entregue aos braços da morte por si mesma em função de um amor infeliz. Ao vincular o significado histórico de Günderrode a uma figura masculina que está longe de ter esgotado sua atividade intelectual, tal representação mobiliza uma imagem da escrita feminina tutelada, que está em ampla contradição com os propósitos da obra da autora.

Filha mais velha do casal Hector Wilhelm e Louise von Günderrode, Karoline von Günderrode cresceu, com outros cinco irmãos, em uma família típica da nobreza financeiramente decadente do final do século XVIII alemão. Seu estatuto social, ainda que em defasagem em relação à sua situação econômica, a vinculava a um modelo de cultura que a aproximava de certa herança literária. Seu pai, conselheiro real, que herdara o título de barão de um antigo patriarcado de Frankfurt, havia chegado mesmo a escrever algumas obras de economia política, e publicado, anonimamente, uma história do rei Adolfo de Nassau. Sua mãe, que se interessava pela filosofia de Fichte, publicara poesias e artigos, também de modo anônimo, em diversas revistas, dos quais não se possuem mais registros. A morte do pai, quando Günderrode tinha apenas seis anos, impactou de modo irreversível a situação financeira da família, que passou a depender de uma pensão destinada aos membros associados à linhagem dos Alten-Limpurg, com a qual a viúva e seus filhos puderam se estabelecer, ainda que modestamente, na cidade de Hanau. Desde 1797, a filha mais velha da família é integrada à Fundação Cronstetten-Hynsperg, em Frankfurt, um pequeno internato evangélico destinado a mulheres, no qual pôde estudar filosofia (Kant, Schelling e Schleiermacher, sobretudo), literatura e mitologia — alcançando a mais alta distinção dentre as estudantes da instituição. Não é claro em que medida sua internação se deveu à sua condição econômica ou a alguns conflitos com sua mãe, que, inclusive, fizeram com que, ao menos em uma ocasião, Karoline von Günderrode tenha fugido de casa (ST, 1983, p. 12).

A situação no internato pareceu produzir sobre Günderrode uma impressão notavelmente ambígua. De um lado, o rigor simbólico da instituição interferia indelevelmente no modo como ela aparecia em público: Günderrode se incomodava continuamente com o fato de ter de vestir o hábito negro da ordem, sempre adornado por uma enorme cruz ao peito (ST, 1983, pp. 12-13). Por outro lado, as regras da Fundação lhe permitiram participar de vários eventos sociais da cidade e seus arredores, passando a frequentar as casas de muitas famílias nobres da região, e a ter, assim, contato com um pequeno grupo de jovens com pretensões literárias e filosóficas. É nesse contexto que ela conhece, em 1799, Friedrich Carl von Savigny, que se tornaria um reconhecido jurista nas décadas seguintes, bem como Bettina von Arnim, sua futura biógrafa, e seu irmão Clemens, que viria a ser um importante poeta romântico. A paixão entre Savigny e Günderrode parece ter sido mútua, e, da parte dela — se considerarmos suas cartas da época —, emocionalmente desgastante, ainda que tenha durado apenas alguns meses, já que, em agosto daquele ano, Savigny partiria para uma longa viagem de estudos. A correspondência trocada posteriormente entre os dois é, assim, marcada de uma melancolia indexada pela referência explícita aos sofrimentos de Werther, o herói suicida do romance epistolar de Goethe (Bianquis, 1910, p. 23), e Günderrode confessa constantemente aos amigos von Arnim a amplitude de tais conflitos emocionais. Somente após 1803, as relações com Savigny, a essa altura já noivo de Kunigunde Brentano, assumem um tom novamente cordial, e um breve período de tranquilidade se instaura.

Não se tem notícia precisa sobre as etapas de redação e preparação para a publicação do livro Gedichte und Phantasie [Poemas e fantasias], que aparece em abril de 1804 sob o pseudônimo Tian, e que, em suas quase cento e quarenta páginas in-octavo, é composto por vinte textos, incluindo poemas de inspiração mitológica, pequenas narrativas em prosa, excertos dramáticos e fragmentos filosóficos. Embora Günderrode já houvesse manifestado anteriormente o desejo de se dedicar à literatura, que lhe parecia o meio mais adequado de expressão para sua perspectiva de vida (Hoff, 2000, pp. 182-183), o aparecimento do livro parece ter sido recebido com alguma surpresa, mesmo por seus amigos próximos: é assim que Bettina von Arnim e seu irmão Clemens lhe escrevem, no começo de maio, para saber se o livro é mesmo de sua autoria, como os boatos supõem, ao que ela responde, um tanto laconicamente, confirmando a suspeita, mas, ao mesmo tempo, lamentando que tenha sido descoberta (GSW* III, pp. 60-61). Essa contradição insolúvel entre a necessidade de se expressar e um relativo desejo de anonimato configura não apenas a posição de Günderrode, mas uma situação mais ampla, observável como traço recorrente da escrita feminina da época.

Ainda naquele ano, em julho ou agosto, Karoline von Günderrode, de passagem por Heidelberg, conhece Friedrich Creuzer, professor de filologia da Universidade daquela cidade, por quem se apaixona. Creuzer, que mais tarde se tornaria famoso pelo seu livro Symbolik und Mythologie der alten Völker, besonders der Griechen [Simbologia e mitologia dos povos antigos, em especial dos gregos] (1812) — admirado, entre outros, por Nietzsche, que o utilizou como referência na composição de seu O nascimento da tragédia — é dez anos mais velho que ela, casado então há cinco anos, e, apesar de sua proverbial feiura e de sua figura extravagante — fala-se de sua peruca antiquada e de seu comportamento um tanto empertigado (Bianquis, 1910, pp. 56-57) — é considerado por muitos uma personalidade carismática. O sentimento que liga Günderrode a Creuzer é mútuo e ele chega mesmo a planejar manter seu casamento apenas socialmente, mas renuncia a essa decisão pouco tempo depois, por temor de que isso pudesse afetar sua carreira, ou, segundo informa a Günderrode em carta, por pena de sua esposa. Outras tentativas de concretizar essa relação serão arquitetadas, sempre de modo vago e sem solução de continuidade: Creuzer negocia um cargo em uma universidade russa, pensando em fugir com sua amada; Günderrode tem planos mais ousados: mudar-se para Heidelberg, viver disfarçada de homem entre os estudantes de filologia da Universidade (Bianquis, 1910, p. 63). O tom assumido na irrealização dessa união é manifesto, sobretudo, nas passagens mais desesperançosas das cartas de Günderrode, que denunciam, assim, ao mesmo tempo, sua tensão emocional e sua elaboração poética: 

Tive recentemente um momento terrível. Parecia-me como se tivesse ficado louca por muitos anos e tivesse acabado de tomar juízo e perguntado por ti e descobrisse que estavas morto há muito tempo. Esse pensamento era loucura e teria dilacerado meu cérebro se tivesse durado mais do que um momento. Portanto, não fale de nenhuma outra felicidade de amor por mim” (ST, 1983, p. 235).

A conturbada relação também significou uma troca intensa de percepções filosóficas e literárias. Günderrode enviava a seu amante muitos de seus escritos, que ele comentava, sugerindo alterações ou pedindo esclarecimentos. Esse intercâmbio, contudo, esteve longe de se qualificar exclusivamente como uma colaboração, como se demonstra nas muitas ocasiões em que Creuzer impôs restrições nitidamente misóginas ao trabalho de Günderrode. Em uma dessas ocorrências, ele lhe sugere que o estudo aprofundado do latim, que ela havia começado por sugestão sua — para que trocassem bilhetes que não poderiam ser imediatamente lidos por qualquer um —, não era adequado às mulheres (ST, 1983, p. 43; Bianquis, 1910, p. 69). A marca da influência de Creuzer é, certamente, perceptível no segundo livro de Günderrode, publicado em 1805, ainda sob o pseudônimo Tian, com o título Poetische Fragmente [Fragmentos poéticos]. O livro é constituído por três poemas — Piedro, Die Pilger [Os peregrinos] e Der Kuss im Traume [O beijo no sonho] — e dois dramas curtos — Hildgund e Mahomed, der Prophet von Mekka [Maomé, o profeta de Meca]. Não chegaríamos, no entanto, a dizer, como Herbert Levin o fez em seu estudo de 1922 sobre o Romantismo de Heidelberg, que o que haveria de melhor em Günderrode se deveria às intuições de Creuzer (Becker-Cantarino, 2008, p. 281). Uma revisão menos misógina do cânone filosófico-literário poderia demonstrar, antes, que os interesses desse último em sua obra posterior Symbolik estão próximos do sincretismo apresentado por aquela primeira nas referências, poetizantes, é claro, às mitologias oriental e nórdica do livro de 1805. Estabelecer a direção em que essa influência se deu está longe de ser uma decisão fácil.

Ainda naquele ano, Creuzer traria a público dois outros textos de Günderrode, os dramas Udohla e Magie und Schicksal [Magia e destino], que apareceriam conjuntamente na seção Poesien [Poesias], no jornal Studien, por ele editado. Um terceiro fragmento dramático, intitulado Nikanor, é editado pouco depois no almanaque Taschenbuch für das Jahr 1806, e, um pouco depois, o texto em prosa Geschichte eines Braminen [História de um brâmane] aparece em um série de livros de divulgação religiosa editados por Sophie von La Roche. Todos são assinados sob o mesmo pseudônimo, Tian.

Enquanto o projeto literário de Günderrode parece avançar, a situação é bem mais complicada no que se refere à sua relação com Creuzer. Após a decisão desse último de não se separar de sua esposa, que havia recentemente se dedicado a fazer com que ele se recuperasse de uma longa enfermidade, Karoline von Günderrode dá sinais de que não resistiria por muito tempo às tensões emocionais decorrentes daí. Retrospectivamente, alguns de seus amigos afirmam ter pressentido o prenúncio das ideias suicidas, mas o fato é que o tema da morte esteve sempre muito presente na obra de Günderrode, mesmo antes de Creuzer, bem como em toda sua produção epistolar, de tal modo que essa indicação deve ser colocada sob suspeita. O interesse de suas leituras de Schelling e Schleiermacher, por exemplo, está marcado pela busca de uma abordagem filosófica da questão, como se pode notar em seu fragmento de 1805-1806, Idee der Erde [Ideia da Terra]. Também é incerta a informação de que Günderrode havia comprado há muito tempo um punhal, e que, após se consultar com um cirurgião sobre o modo de manipulá-lo fatalmente, passaria a andar sempre com ele. Seja como for, no crepúsculo do dia 26 de julho de 1806, Günderrode se mata com uma punhalada no coração, à margem do rio Reno. Seu corpo foi encontrado, na manhã seguinte, por um barqueiro. Creuzer só recebeu a notícia semanas depois. 

Não demorou muito para que uma certa mitologia se construísse em torno da figura da poetisa suicida. É verdade que a publicação, poucos meses depois de seu suicídio, da coletânea Melete, que não havia sido completamente revisada por sua autora, mas, ainda assim, veio a público através, ironicamente, do trabalho de edição de Creuzer, pode ter colaborado para isso. Mas a peça fundamental na construção do mito Günderrode, contudo, é a biografia epistolar Die Günderode [A Günderode, grafado equivocadamente sem o duplo r], escrita por Bettina von Arnim. Publicado em 1840, o livro alcançou um grande sucesso — bem como algumas críticas não isentas de misoginia —–, mas uma comparação das cartas reproduzidas por von Arnim indica o grande número de interferências e transformações do material original (Hock, 2001, p. 54). Seja como for, o romance não apenas consolidou a imagem da trágica heroína romântica, despertando um relativo interesse por sua obra, mas, na direção oposta, promoveu uma interpretação, muitas vezes politicamente conservadora, dadas as convicções religiosas e ideológicas de Bettina, de textos que, sob muitos aspectos, expressam tendências revolucionárias próprias do Frühromatik, do primeiro Romantismo. Pode-se afirmar, nesse sentido, que a imagem da biografia de Karoline von Günderrode muitas vezes apagou traços significativos de sua escrita — uma situação que só seria revertida, em parte, a partir das leituras feministas da história da literatura feminina alemã, empreendida, desde a década de 1960, por exemplo, por Christa Wolf, Sigrid Weigel ou Helga Dormann, que mostraram em que sentido a vida de Günderrode deveria permitir a promoção de um interesse mais amplo, e um estudo mais aprofundado, de seus textos.

Obras e temas

A dificuldade de se articular a escrita de Karoline von Günderrode ao debate filosófico moderno deriva ao menos de duas razões que se amplificam mutuamente: de um lado, a misoginia da historiografia que constitui e estrutura o cânone, e, de outro, a recusa, da parte de muitos historiadores, de pensar a escrita literária como veículo conceitual autônomo. Enquanto o primeiro aspecto resulta em um apagamento sistemático de autoras que pensaram de modo original os problemas filosóficos, pode-se responsabilizar o segundo pela virtual ausência de escritores românticos nas historiografias canônicas da filosofia, uma vez que o projeto conceitual desses consistia, em alguma medida, em mostrar que a forma do conceito não está necessariamente ligada a um modelo dedutivo, promovendo, conscientemente, a experimentação do contexto narrativo da filosofia na direção da poesia. Se admitirmos, portanto, que essa experimentação é legítima, e que aquele silenciamento deve ser também sistematicamente enfrentado, a obra de Günderrode se revela como de grande interesse.

Os poemas de Günderrode apresentam grande variação temática, consistindo ora em baladas líricas (Wunsch [Desejo] ou Die Bande der Liebe [Os elos do amor]), ora em retratos épicos (Darthula nach Ossian [Dártula segundo Ossian], Don Juan), ora em poemas históricos (Mahomets Traum in der Wüste [O sonho de Maomé no deserto]). Do ponto de vista formal, eles não anunciam nenhuma grande divergência em relação ao modelo vigente à época, assemelhando-se, frequentemente, a certas passagens de Goethe, com uma ou outra exceção — como é o caso com Die Bande der Liebe [Os elos do amor], que foge da estrutura do quarteto. O mesmo se pode dizer dos fragmentos dramáticos, que, em geral, se alinham ao tipo de exercício literário que interessou toda uma geração na virada para o século XIX. É no nível temático, contudo, que esses textos expressam as ideias particulares de Günderrode.

Uma primeira leitura poderia nos levar a incluir a poética de seus livros inteiramente no projeto geral do Romantismo: ao lado da premeditada instabilidade formal dos textos, que parece replicar o princípio editorial da revisa Athenäum, dos irmãos Schlegel. Além disso, tomados em conjunto, esses textos corroboram a imagem do amor como princípio de síntese transpessoal — que o avizinha da eliminação da concretude da singularidade, ou seja, entre outras coisas, do suicídio como questão ética e cosmológica —, que se deixa pressentir como uma tendência geral do movimento. Assim, alguns de seus poemas de 1799, recolhidos em Gedichte und Phantasien [Poemas e fantasias], podem mesmo ser interpretados a partir dos paradoxos éticos instanciados na imagem do amor irrealizável, como é o caso com os primeiros versos de Liebe [Amor], escritos, provavelmente, na segunda metade de 1799: “O reiche Armut! Gebend, seliges Empfangen!/ In Zagheit Mut! in Freiheit doch gefangen./ In Stummheit Sprache, / Schüchtern bei Tage, / Siegend mit zaghaftem Bangen” [“Ó rica pobreza! Sagrado receber, doador! / Coragem na timidez! na liberdade ainda aprisionada. / Em linguagem de mutismo, / Oculto em pleno dia, / Vencendo com tremores hesitantes”] (GSW I, p. 79). Que essa disposição não se esgota em uma representação meramente subjetiva do amor — como frequentemente se critica nos textos românticos em geral, e das mulheres, em particular — é algo que se demonstra em vários fragmentos do espólio de Günderrode que se esforçam para indicar a dimensão ética da questão. É o caso de uma passagem, de data incerta, onde lemos: “não existe nenhum Amor Pessoal, apenas amor à excelência” (GSW I, p. 463). 

No entanto, a temática do amor em Günderrode sugere subversões que não se encontram facilmente entre outros autores. A maneira como a inexorabilidade do destino, orientada pelo impulso amoroso transpessoal, resulta, em seus escritos, em uma reavaliação dos papéis de gênero é algo excepcional, mesmo se levarmos em conta as experimentações que, nesse sentido, foram feitas em um romance como Lucinde (1800), de Friedrich Schlegel. Nesse último, embora haja um esforço para se pensar a relatividade das identidades de gênero e para se promover o elogio do feminino, as personagens acabam, fatalmente, marcadas pelo destino familiar, doméstico, auxiliar (Lemos, 2022b, pp. 75-82). Em Günderrode, ao contrário, o amor força as personagens a romper com essa estrutura da familiaridade, e, por extensão, com os espaços identitários do masculino e do feminino. Um poema incluído em Poetische Fragmente [Fragmentos poéticos], intitulado Piedro, já foi definido como uma “balada homoerótica” (Ezekiel, 2016, p. 8), pois narra a história do personagem-título, um marinheiro que, ao matar o sequestrador de sua noiva, vendo-o “tão graciosamente na morte” (GSW I, p. 104) acaba por se apaixonar por ele, “e de seus pálidos lábios / com remorso bebe beijos quentes” [“Und von seinen blassen Lippen / Reuig heiße Küsse trinkt”] (Idem). Um ultrapassamento análogo se dá no fragmento dramático Hildgung, no qual a guerreira que dá nome à peça se vê presa a uma difícil decisão: ela deve casar-se com Átila, o Huno, de quem havia acabado de fugir, a fim de poupar a Borgonha de uma invasão. Nos últimos versos da peça, que termina em suspenso, ela acaba por ceder, pressionada por seu pai, mas está decidida a matar seu futuro marido e a cometer suicídio. Assim, ela lhe diz: “Curvo-me até a poeira do chão diante de meu senhor” [“Ich beuge mich zum Staub vor meinem Herrscher nhi”] (GSW I, p. 101), enquanto para si mesma, anuncia: “Ah, tirano, celebra, / as horas que rápido passam de seu último dia” [“Ha feire nur, Tirann, / Des letzten Tages schnell entflohne Stunden”] (GSW I, p. 102).

Os escritos de Günderrode são, assim, pródigos em referências ao sistema de opressão de gênero, bem como de propostas de subversão, ainda que através dos instrumentos conceituais e narrativos próprios do oitocentos. As resenhas que seus livros publicados receberam confirmam o quanto estas percepções eram tangíveis em seu espaço histórico-cultural. Em uma reação típica das resenhas escritas por homens por ocasião do aparecimento de obras escritas por mulheres, Gedichte und Phantasien [Poemas e fantasias] é criticado, em uma recensão publicada no Der Freimüthige, em maio de 1805, onde se indica o nome da autora e se sugere que ela, no futuro, não recaia nas “profundezas de uma mística sinistra” (GSW III, p. 62). Em julho, uma outra resenha, no Jenaische Allgemeine Literatur-Zeitung, é ainda mais dura, apontando o que entende como as inconsistências formais do livro, sem unidade com seu conteúdo (GSW III, p. 68). No ano seguinte, a publicação de seu livro Poetische Fragmente [Fragmentos poéticos] é recebida com igual disposição: sua obra é apresentada como “sem começo e sem fim — e sem conteúdo”, sem as competências necessárias para a articulação do todo, sugerindo, enfim, os benefícios que o autor (não se sabe até que ponto o resenhista sabia da identidade por trás do pseudônimo Tian, anteriormente já revelada) poderia retirar de algum tempo de estudo (GSW III, pp. 110-111). E, apesar de algumas breves menções elogiosas na imprensa especializada (Idem, p. 112), em junho de 1807 — um ano, portanto, após o suicídio de Karoline von Günderrode —, o mesmo jornal Jeanaische Allgemeine Literatur-Zeitung ainda insistia na imagem típica da deficiência da escrita feminina: o que a autora parece ter desejado fazer em seu segundo livro é aí entendido como “poetizar enquanto mulher no espírito masculino [dichten als Weib im männlichen Geiste] (…) mas a natureza feminina nela fez com que a este fim faltasse aquele — a consciência de sua intenção” (Idem, p. 113).

O triângulo formado, assim, pelos problemas da opressão de gênero, da universalidade categórica e sacrificial do amor e da disponibilidade poética da morte como alternativa a uma vida despotencializada se prolonga dos poemas e peças aos fragmentos de caráter mais imediatamente reconhecíveis como filosóficos. Desde seus primeiros anos de estudo, Günderrode havia enxergado no idealismo pós-kantiano, bem como na mitologia, especialmente a nórdica e a de povos orientais, a imagem de mundo capaz de responder aos seus anseios em torno da ideia de unidade cosmológica. Os textos que constituíram o material de sua formação indicam a constante retomada dessa preocupação fundamental com o Todo especulativo. De seus cadernos, podemos reconstruir, de um lado, o amplo interesse pelas ciências: confirmam-no seus estudos de métrica grega clássica e alemã, de língua latina, química, e, especialmente, fisionomia — uma área à qual dedicava grande interesse, a se contar pelos muitos desenhos que fez, anexados aos seus estudos (GSW III, pp. 419-483). Mas, por outro lado, são suas leituras filosóficas que configuram o horizonte heurístico de suas reflexões. Também nesses cadernos estão transcritos muitos dos fragmentos da revista Athenäum, especialmente os de Novalis e Friedrich Schlegel (GSW III, pp. 273-281), passagens do Über die Religion [Sobre a religião], publicado por Friedrich Schleiermacher em 1799, da série de conferências de Fichte, Die Bestimmung des Menschen [A destinação dos homens], do mesmo ano, e de Simon ou des facultés de l’âme, escrito por Franz Hemsterhuis, um filósofo importante para autores como Novalis e Jean Paul, e publicado postumamente em 1792. Uma parte considerável desses cadernos, por fim, é preenchida pelas anotações do estudo detalhado feito por Günderrode a partir da obra Grundriß einer reinen allgemeinen Logik nach Kantischen Grundsätzen [Esboço fundamental de uma lógica universal pura segundo princípios kantianos], publicado por Johann Gottfried Kiesewetter, professor de filosofia em Berlim, em 1793.

O que se desenha a partir dessas referências é o problema já mapeado na crítica feita pelos autores do Sturm und Drang e do Romantismo às cisões operadas por Kant entre subjetividade e mundo, que, no caso de Günderrode, se reveste de uma melancolia profunda. Se reconstruirmos suas posições a partir desse quadro geral, pode-se dizer que sua questão mais insistente é a da possibilidade de se alcançar a verdadeira unidade entre a natureza e a liberdade através de uma transformação ética do estado de incompletude da vida cotidiana, que corresponderia a viver poética e misticamente no mundo, como se não se pertencesse a ele: 

Há duas vidas[,] a comum (a pior é como a nossa) e a mais elevada; muitos seres humanos alternam entre as duas, o verdadeiro artista permanece inteiramente na última[,] ela é a verdadeira benção, e quem alguma vez a adentrou, para este o mundo está perdido, sem salvação” (GSW I, p. 437). 

Essa conversão que, não por acaso, é denominada celestial, faz com que o modelo perceptivo dos sujeitos reunificados com o mundo seja, não o da lógica ou o do utilitarismo, mas o da contemplação onírica e da disposição para o sinestésico. A atenção dispensada por Günderrode ao mundo dos sonhos, como chave de interpretação da eternidade (cf. os fragmentos Der Traum [O sonho] em GSW I, p. 435, ein Traum [um sonho], em GSW I, p. 439, ou Träume em GSW I, pp. 444-445) não está muito distante do interesse que, alguns anos depois, Friedrich Schlegel desenvolveria a respeito dos estados magnéticos e sonambúlicos, algo com o que também Hegel se ocupou nos §§ 404-407 da Enciclopédia

O que define, portanto, a estrutura ontológica do mundo enquanto unidade entre sujeito e objeto, é uma totalidade vital que só pode ser categorizada analiticamente em um momento posterior da história do Espírito. Em consonância com muitas das ideias românticas, Günderrode assume como paradigma da reflexão filosófico-poética o movimento de retorno às origens de uma síntese total, mas a característica fundamental desse ponto originário é, ao mesmo tempo, a possibilidade do hibridismo. É o que afirma um fragmento de 1802-1803, apropriando-se poeticamente do conceito fichtiano de Anstoss, obstáculo

Em todas as matérias habita uma vida secreta, mas ela está presa nelas com os apertados laços de um tecido do qual ela não pode se livrar sozinha. Quando, contudo, um obstáculo [Anstoss] externo toca a matéria, então os nós se desfazem, os sons saem de seus calabouços, abraçam, trêmulos, o ar, e, em harmônicas vibrações, voam uns sobre os outros. Assim, há muito tempo, quando todas as coisas ainda estavam misturadas em uma massa crua, o espírito vivo flutuou sobre todas as matérias, e, quando ele a abraçou, nasceu de sua mistura uma série de formas harmônicas[.]” (GSW I, p. 441). 

Sob esse aspecto, o conceito implícito de origem dos textos de Günderrode está mais próximo daquilo que Novalis chamou, no fragmento 54 do Pólen, de confusão, do que da estabilidade unificadora de uma síntese idêntica a si mesma. A crítica que, contra o Romantismo, pretendeu enxergar nele o totalitarismo de uma regressão, não compreende que esse movimento de retorno ao Todo é, ao mesmo tempo, uma afirmação paradoxal da potência radical que esse Todo guarda de se tornar tudo, de dispersar-se, configurando essa potencialidade como critério de unificação. Os fragmentos de Günderrode, lidos com atenção, podem ajudar a esclarecer esse ponto.

Por fim, talvez, nesse sentido, o texto mais emblemático da confluência de suas questões éticas, poéticas e cosmológicas seja o fragmento Idee der Erde [Ideia da Terra], escrito pouco antes de seu suicídio, entre novembro de 1805 e fevereiro de 1806. Trata-se de um fragmento de quatro parágrafos, que pretende discutir a tese apresentada logo no início do texto: 

A Terra é uma ideia realizada [Die Erde ist eine realisrte Idee], ao mesmo tempo uma (força) eficiente e uma (aparição) efetivada, portanto, uma unidade entre alma e corpo [Leib], das quais um dos polos da atividade que eles desenvolvem exteriormente nós chamamos extensão, forma, corpo [Körper], e, quanto ao que se volta ao interior, intensidade, essência, força [Kraft], alma” (GSW I, p. 446).

Reconhecemos, nessa proposição de abertura, reverberações do horizonte da filosofia de Schelling, que Günderrode havia estudado há alguns anos, e que discutia há algum tempo com Creuzer. Esse texto, que merece uma análise cuidadosa — e sobre o qual há pouca coisa escrita — propõe, contudo, uma inversão: trata-se de pensar a ideia não a partir de uma tópica exclusivamente ascensional, mas, antes, de reconduzi-la à Terra, ou seja, radicalizá-la, no sentido em que pensamos na direção da raiz do Ser. Além disso, o processo através do qual o Espírito se move não se reduz à unidirecionalidade da dialética que, em Hegel, por exemplo, se manifesta como Aufhebung, como suprassunção. Em Idee der Erde, a “vida é imortal e ondula para cima e para baixo nos elementos, pois eles são a própria vida” (GSW I, p. 446). O que se estabelece, assim, é uma identificação, tensionada, sem dúvida, entre a profundidade ontológica e a sublimidade epistemológica, ou seja, entre a concretude do Ser e a contemplação do Infinito. Diferentemente do que o idealismo especulativo de tipo hegeliano propõe, Günderrode pretende que essa identificação deva se dar não na direção de uma síntese superior, mas na vertigem de uma queda. Eis porque a morte e a individualidade só conduzem à realização através de um aterramento, sendo mantidas como figura, mas não exatamente superadas

Mas quando, então, a morte do ser humano retorna sua mistura para a substância terrena, o que nela era o que designamos como força, ação, ou várias outras [coisas] desse teor, nas quais o polo ativo predominou, se revolve de novo naquilo que, na Terra, as modifica; os elementos mais grosseiros procuram pelos semelhantes segundo leis da afinidade (…)” (GSW I, p. 447). 

Eis porque a ética celestial de Günderrode é, concomitantemente, uma ontologia lapsária, uma cosmologia da queda que, em si mesma, promove a ascensão. 

Assim, todo moribundo devolve à Terra uma vida elementar aumentada, mais desenvolvida, que ela plasma em formas cada vez mais ascendentes, e o organismo em que, desse modo, incorpora em si elementos, sempre mais desenvolvidos, deve, com isso, se tornar cada vez mais completo e universal. Assim, a Totalidade se torna viva através da queda da individualidade, e a individualidade continua a viver, imortal, na totalidade, cuja vida ela vivamente desenvolveu, e, mesmo após a morte, elevou e ampliou; e, desse modo, através do viver e do morrer, ajuda a realizar a ideia da Terra” (GSW I, p. 447).

Ainda que relativamente pouca atenção tenha sido dada às contribuições originais de Günderrode ao debate da filosofia pós-kantiana, um esforço de interpretação nesse sentido, especialmente concentrado no fragmento Idee der Erde, tem sido empreendido desde a publicação, em 1990, da edição crítica das obras da autora, organizada por Walter Morgenthaler. Não podemos deixar de indicar a pesquisa pioneira de Christa Wolf, que, no início dos anos 1980, havia apresentado, na Alemanha, uma seleção dos poemas, da prosa e da correspondência de Günderrode, ainda que seu intuito não tenha sido o de estabelecer uma edição crítica. Os esforços operados por uma revisão do cânone literário de uma perspectiva feminista, instanciados exemplarmente nos artigos de Sigrid Weigel, desde a década de 1970, consistem em uma primeira formulação mais geral das questões de método que reivindicariam um novo espaço de leitura, mas não tratam direta e extensamente da obra de Günderrode. Os trabalhos de Wolfgang Westphal (1993), Markus Hille (1999) ou Helga Dormann (2004), em alemão, e de Gabriele Dillmann (2008), Dalia Nassar (2014) ou Anna Ezekiel (2016), em inglês, representam um avanço importante e mais recente na reconsideração do problema. Essa última estudiosa ainda propôs, também em 2016, uma tradução dos Poetische Fragmente para o inglês. Em português, apenas referências indiretas à vida, e ainda mais indiretas, à obra de Günderrode estavam disponíveis até 2022, quando foi publicado o livro As outras constelações, no qual proponho a tradução, a partir da edição crítica alemã, de uma seleção de textos escritos por mulheres, sobre filosofia, no período romântico alemão. Entre esses textos, encontraremos os seguintes fragmentos: O sonho (1801-1802), [A excelência é um todo…] (1802), um sonho (1802-1804), O rouxinol (1802-1803), O reino dos sons (1802-1803), A música (1803), A música para mim (1802-1803), Sonhos (1804), Um fragmento apocalíptico (1804), Os manes. Um fragmento (1804), Ideia da Terra (1806) e Cartas de dois amigos (1806).

Referências Bibliográficas

*A edição crítica das obras de Günderrode, editada por Walter Morganthaler, são referidas ao longo do verbete através da abreviatura GSW, seguida do número do volume em algarismo romano e da página em arábico. A abreviatura ST refere-se ao livro organizado por Christa Wolf, Der Schatten eines Traumes [A sombra de um sonho].

Becker-Cantarino, B. (2008) “Mythos und Symbolik bei Karoline von Günderrode und Friedrich Creuzer” In: STRACK, F. (Hrsg.), 200 Jahre Heidelberger Romantik. Berlin/ Heidelberg: Heidelberger Jahrbücher.

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