Aborto redentor


A gravidez indesejada é uma causa muito mais importante dos crimes violentos no Estado de São Paulo do que a desigualdade ou outros indicadores econômicos. Esta é a conclusão de um trabalho do economista Gabriel Hartung, em etapa final de elaboração”, informa a nota da agência Estado. A matéria da revista Época — O aborto pode reduzir o crime? — dá muito mais detalhes sobre a pesquisa de Hartung, que é em verdade sua tese de mestrado na FGV-Rio, aprovada em outubro do ano passado. Nela, Hartung “sugere que a legalização do aborto seria uma alternativa para reduzir os altos índices de criminalidade no Brasil”. Isso mesmo.
A relação entre a legalização aborto e a redução da criminalidade é a principal tese das inusitadas análises econômicas publicadas em um best-seller no ano de 2005, Freakonomics. Analisando dados brutos de forma inovadora, o economista americano Steven Levitt fez descobertas curiosas indo de torneios de sumô a corretores imobiliários, mas da série extremamente diversa de temas de seu livro, o principal sem dúvida é o que lida com a diminuição súbita da criminalidade nos EUA ao longo da década de 1990. Aqui no Brasil, os ecos de tal milagre se fizeram conhecidos em idéias como a “tolerância zero”, a política policial instituída em Nova Iorque, tida como um gigantesco sucesso. Como foi, mas o detalhe pouco conhecido é que a criminalidade caiu não apenas em Nova Iorque, e já estava caindo mesmo em Nova Iorque anos antes de sua implantação. Políticas inovadoras de combate ao crime não devem ter sido o agente divino que diminuiu a criminalidade americana para os níveis mais baixos em 35 anos.
Levitt analisou outros fatores que poderiam explicar a queda súbita e consistente da marginalidade, e descobriu que a principal causa, uma mudança radical e intimamente correlacionada com o milagre da queda da criminalidade estava em andamento há mais de uma década. Mas era o pesadelo de grupos religiosos conservadores: a legalização do aborto em 1973. Dezessete anos antes da década de 1990, uma decisão da Suprema Corte americana legalizando o ato fez com que milhares e milhares de filhos indesejados simplesmente deixassem de nascer. Filhos indesejados possuem maior risco de envolvimento com o crime, e nos anos em que alcançariam a maturidade e substituiriam gerações anteriores de crimininosos, eles haviam simplesmente sumido. E a tese é apoiada por números: em estados que legalizaram o aborto anos antes da decisão federal, o crime também começou a cair anos antes.
A questão é extremamente complexa, e não é possível abordá-la mesmo com o mínimo de profundidade e rigor necessário por aqui. O leitor interessado pode ler os trabalhos de Levitt, desde seus papers (a revista Época hospeda os principais) até seu livro, ou se entender inglês, visitar o sítio de Levitt. O economista tem completa noção da gravidade de suas idéias, e as discute com bom senso em Freakonomics, notando por exemplo que ainda que esteja correto em sua tese, a decisão sobre a legalização do aborto obviamente não é tão simples como uma mera medida de segurança pública. Quantos fetos você estaria disposto a trocar pela vida de um adulto? Como o próprio Levitt nota, a menos que seja um número considerável, ser favorável ao aborto baseado apenas na aritmética de um menor número de homicídios anos depois pode não ser muito válido.
Mas se a decisão sobre a legalidade do aborto não deve ser feita baseada apenas em sua correlação com a criminalidade, a questão formulada há pouco vai diretamente ao seu cerne. Que é o fato de que a decisão sobre a vida de um feto é uma escolha cabível a sua mãe. Como notou Carlos Cardoso sobre as discussões a respeito, “o interessante é que os lados são desiguais nessa briga. Um quer simpesmente proibir, completamente, sem apelação. O outro quer dar à mulher o direito de ESCOLHER. No momento em que eu digo que VOCÊ tem o direito de escolher se quer fazer algo ou não, eu não estou impondo minha moralidade e meus valores. Mas seu digo que você não pode porque EU acho errado,a coisa muda de figura”.
Mulheres que praticaram o aborto poderão, e comumente terão filhos mais tarde, quando os desejarem. A leva de criminosos ausente em 1990 não é uma geração exterminada de filhos de classes mais baixas. Tais filhos nasceram, quando foram desejados. A “eugenia”, termo brandido por críticos sobre as idéias defendidas por Levitt, nunca foi adotada com grande sucesso através de abortos voluntários, e sim de esterilizações compulsórias. Ironicamente, proibir abortos e obrigar mulheres a terem filhos é uma prática que os nazistas também promoveram.

Discussão - 1 comentário

  1. cardoso disse:

    Clap clap clap clap.
    Excelente texto.

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