A “Misteriosa” Arca Mágica e o Magnetismo Terrestre

É uma peça sólida com o formato do casco de um navio, lembrando a bíblica Arca de Noé. Também conhecida como “pedra celta”, devido a artefatos antigos similares, apresenta um comportamento enigmático. Gire-a no sentido anti-horário, e ela se movimentará livremente até parar, como toda pedra comum. Mas movimente-a no sentido inverso, e ela logo oscila até parar e passa a girar então ao contrário. Ou dê um toque em uma de suas extremidades, e ela logo passará a girar espontaneamente, produzindo um momento angular aparentemente do nada.

É como se o objeto possuísse uma tendência mágica a girar, e apenas em uma direção, sem qualquer mecanismo elaborado em seu interior para tal. Em efeito, é exatamente para exibir este aspecto que a peça costuma ser vendida hoje em dia como uma “arca” transparente, feita de um material uniforme. É como um mágico mostrando não ter cartas na manga. Não há gremlins dentro da arca, não há molas, pesos ou baterias. Ela parece violar leis fundamentais da física como a conservação de momento. Como explicar o fenômeno?

A mágica aparente motiva todo tipo de idéias e teorias enganosas indo desde fluxos energéticos invisíveis, passando por dimensões superiores, motos perpétuos, adivinhação, campos magnéticos ou uma explicação pseudo-racional que pode soar até convincente. A pedra Celta seria uma demonstração fabulosa do efeito Coriolis, aquele que faz com que a água desça pelo ralo sempre no sentido anti-horário no hemisfério norte (e no sentido inverso no hemisfério sul).

O detalhe é que o efeito Coriolis não determina o sentido com que a água desce pelo ralo, muito menos tem qualquer papel relevante na peça aqui. A Arca, pedra celta ou, “rattleback”, em inglês, é um exemplo fascinante de como efeitos não-intuitivos podem levar ao engano. Ela é um “truque”.

A olho nu, o “casco” parece simétrico, o que nos leva a intuir que não deve haver nenhuma propensão para girar em qualquer sentido. Em verdade, o segredo do objeto está no fato de que seu centro de gravidade, assim como seus eixos de inércia, estão sutilmente deslocados em relação à superfície inferior. Este é o truque. A pedra celta é torta, e as características da assimetria irão determinar para qual direção o objeto gira de maneira estável ou não. Complicado?

Em verdade é um tanto mesmo. A primeira publicação científica sobre o fenômeno ocorreu em 1896, mas levou quase um século para uma descrição físico-matemática exata ser divulgada. Isso mesmo: foi só por volta de 1986 que cientistas chegaram às equações e explicações exatas sobre este efeito milenar.

Em meio à complicação, contudo, o vídeo abaixo pode dirimir qualquer dúvida a respeito de “radiônica”, espíritos ou Coriolis terem qualquer efeito aqui. É o fenômeno reproduzido entortando um chiclete.

Também se pode reproduzir o fenômeno entortando uma colher. Atentando sempre para, seja com chiclete ou colher, deslocar o centro de gravidade. Alguns telefones ou mesmo controles remotos também podem exibir o efeito “de fábrica”, simplesmente por terem centros de gravidade deslocados. Eles podem ser mesmo simétricos de fato, não tortos, bastando terem centros de gravidade deslocados. Saia girando coisas à sua frente e o “mistério” poderá se repetir.

O efeito pode parecer mera curiosidade inútil – ou útil apenas para contestar charlatães que vendam o efeito como misterioso – mas em ciência não há “conhecimento inútil”.

No vídeo abaixo, da New Scientist em inglês apresentando demonstrações curiosas incluindo a arca com tartarugas móveis, o doutor Tadashi Tokieda da Universidade de Cambridge explica como o comportamento da pedra celta é extremamente análogo a um outro efeito envolvendo objetos que revertem “misteriosamente” seu sentido de rotação.

São os fluidos e núcleos ferrosos no interior de nosso planeta, que giram um em relação aos outros e induzem o campo magnético terrestre. A idéia é a de que a distribuição assimétrica da massa em rotação, como nas pedras celtas, pode eventualmente fazer com que haja oscilações e uma eventual reversão do movimento, o que poderia explicar as famosas reversões de pólos magnéticos da Terra.

Quando comecei a escrever esta nota pretendia apenas divulgar o brinquedo curioso e sua explicação, e foi uma surpresa descobrir a sua relação com um tema tão importante. Ver as pedras celtas reverterem seu giro “espontaneamente” pode ser um análogo às reversões magnéticas do planeta.

O modelo preciso para o efeito da pedra celta só foi produzido em 1986, depois de 90 anos. Ainda se está muito longe de produzir uma explicação para a reversão dos pólos magnéticos, mas é fabuloso descobrir ainda outra vez como a ciência de verdade pode ser infinitamente mais rica e fascinante que a pseudociência.

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Há um ótimo arquivo em português, produzido por Bruno Bueno da Unicamp que menciona e explica em mais detalhe o efeito da pedra celta: “Instrumentação para o Ensino” (PDF 207Kb)

Discussão - 7 comentários

  1. glenn disse:

    não sei se tem a ver, mas pensei num bumerangue. não sou físico, mas suponho que o centro de gravidade deve estar fora do próprio bumerangue, e talvez permita que ele volte.
    ...é, foi só uma idéia que veio em mente, nem consegui desenvolver além disso.

  2. João Carlos disse:

    Pois eu fiquei frustradíssimo quando descobri que as bolas de boliche modernas têm um "truque" semelhante que facilita os "efeitos" (e, conseqüentemente, o número de strikes).
    Mas sobre o assunto específico: meras "curiosidades" que têm enormes repercussões, basta ver o "Movimento Browniano" e o "Efeito Edison"... (e eu continuo esperando alguma coisa do "Efeito Mpemba" 😉 )

  3. Atila disse:

    clap, clap, clap, clap, clap

  4. Maximus disse:

    Muito bom!
    A ciência é realmente fascinante! Alguém perder seu tempo propagando bobagens criadas pela falta de reflexão e método só se explica pela eficiência do sistema de ensino em convencer os jovens de que ciência é muito chata.

  5. Carlos Magno disse:

    “O efeito pode parecer mera curiosidade inútil – ou útil apenas para contestar charlatães que vendam o efeito como misterioso – mas em ciência não há “conhecimento inútil “
    “poderia explicar as famosas reversões de pólos magnéticos da Terra.”
    “Ver as pedras celtas reverterem seu giro “espontaneamente” pode ser um análogo às reversões magnéticas do planeta.”
    Desculpe Mori. Sinceramente? Acho um brinquedo para diletantes. Está somente no terreno hipotético dos “podes” e “poderia” que você mesmo aventou.
    Acho muita fumaça para quase nenhum fogo e tem tudo para se tornar mais um item da parafernália de descobertas inúteis ou de nenhuma utilidade prática.

  6. Patola disse:

    Acho muita fumaça para quase nenhum fogo e tem tudo para se tornar mais um item da parafernália de descobertas inúteis ou de nenhuma utilidade prática.
    Claro. Assim como todas as "descobertas inúteis ou de nenhuma utilidade prática" acabaram por desembocar na tecnologia dos computadores. Afinal, que utilidade teria a mecânica quântica? E a relatividade?
    Me espanta como místicos & charlatões afirmam ter uma visão tão "abrangente e holística" mas sempre caem na visão completamente estreita de classificar certos conhecimentos de "descobertas inúteis" ou de "pouca utilidade prática". Claro, "prático" seria um motorzinho que fizesse suas bolas de cristal girar...
    De qualquer modo, isso reforça minha convicção (e de outros) que pessoas que não apóiam a ciência e a tecnologia não deveriam poder se beneficiar da ciência e da tecnologia.

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