Os Gritos do Calor e os Espíritos do Tubo de Rijke

Com vocês, o alto e agonizante som de uma grade de metal aquecida dentro de um tubo. É uma demonstração do incrível mas pouco conhecido tubo de Rijke.

Descoberto em 1859 pelo físico holandês PL Rijke, dificilmente poderia ser mais fácil de reproduzir. Basta dispor de um tubo de certo comprimento, aberto em ambas as extremidades, inserir uma grade de metal na sua metade inferior e aquecê-la até que fique incandescente. E pronto. No vídeo acima foi usado um tubo de vidro para facilitar a visualização, mas qualquer tubo que resista ao calor serve.

Ao retirar a fonte de calor, um som muito alto e com um comprimento de onda igual ao dobro do tamanho do tubo será emitido enquanto a grade estiver suficientemente quente. Parece mágica – ou magia negra! – mas é apenas um efeito termoacústico, explicado alguns anos depois, em 1879, pelo Lorde Rayleigh.

A grade aquece o ar que tende a subir por convecção, mas enquanto ele o faz há uma interação entre a pressão cambiante no interior do tubo e a freqüência de ressonância do mesmo. Forma-se uma onda estacionária que reforça a si mesma a cada ciclo, enquanto ar quente e ar frio entra e sai por ambas as extremidades. O resultado é o grito do tubo de Rijke. Saber disso permite que se produza um som contínuo se usarmos uma resistência elétrica para aquecer a grade. Também leva a aplicações práticas em combustores que aproveitam as ondas estacionárias em seu interior para queimas mais eficientes e que poluam menos.

Interessante, não? Pois há mais. Muito mais, de espíritos e fantasmas à religião.

Segundo a nota de onde fiquei conhecendo este curioso efeito, tal demonstração termoacústica seria praticada há muito tempo em um templo da cidade de Okayama, Japão, no ritual do Narukama Shinji. Claro que os sacerdotes não pensavam muito em fenômenos físicos termoacústicos, e atribuíram o som a espíritos e deuses.

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kamai.jpgNeste ritual, até onde se sabe de fato muito antigo, o sacerdote aquece uma panela de arroz e de acordo com o “misterioso” som produzido, o visitante tem seus fortúnios indicados pelos deuses! Um som forte e longo seria um bom sinal (a Wikipedia descreve o ritual, em japonês).

Se você olhar para como a panela de arroz dos deuses é feita, verá que é um tubo de Rijke, incluindo o detalhe de que o elemento aquecendo o ar deve estar na metade inferior do tubo. E é assim que mais um “espírito misterioso” é explicado pelo Lorde Rayleigh. Elementar, meus caros compatriotas japoneses. Mas há mais.

Um de nossos primeiros posts aqui em 100nexos foi sobre o Tubo de Rubens e a refrigeração termoacústica. Assim como é possível converter calor em som no tubo de Rijke, é possível utilizar som para criar uma geladeira sem motores, compressores, sem quaisquer partes móveis. O próprio ar desempenha tal papel. Mas há mais.

Entrando já em terreno especulativo, e já que falamos de efeitos acústicos curiosos e rituais antigos, falemos então da arqueoacústica. Circula há certo tempo a curiosa idéia de que sons da antigüidade poderiam ter sido codificados, inadvertidamente, em artefatos antigos como um vaso de barro sendo moldado. Os vasos de barro funcionariam grosso modo como discos de vinil, e bastaria a “agulha” apropriada para ouvir sons de milhares de anos atrás.

Fascinante como posso soar, os Mythbusters abordaram o tema, e sem surpresa, descobriram que é pouco plausível. Mais um mito destruído.

Um outro aspecto de arqueoacústica é todavia um tanto mais plausível, e de fato, demonstrado. Construções antigas podem ter levado em conta sofisticadas propriedades acústicas. Seus construtores muito provavelmente não devem ter entendido precisamente os fenômenos físicos por trás de suas obras, mas assim como a panela de arroz japonesa, isso pode não ter impedido que se valessem dos mesmos.

Construções megalíticas, com enormes paredes de pedra sólida, são ideais para lidar com sons. Isso pode incluir desde construções maias até cavernas da pré-história. Intencionalmente ou não, diversos desses locais e construções possuem configurações acústicas peculiares.

Sabemos que construções de teatros gregos antigos sim levavam em conta propriedades acústicas. Embora não entendessem por que seus teatros funcionavam, fato é que eles funcionavam bem a ponto de que todo um público de milhares de pessoas pudesse ouvir os atores de uma peça antes da invenção dos alto-falantes.

Detalhes da acústica notável de teatros como o de Epidauro, com capacidade para até 14 mil espectadores, só foram desvendados há pouco. Confira o vídeo abaixo, Rickrolling o teatro de Epidauro graças à sua acústica. Note a distância entre a câmera e os Rickrollers:

E… há mais. Especulando um pouco além, sabemos que ondas sonoras podem afetar nossa percepção, e há algum tempo sugeriu-se que lugares mal-assombrados podem em verdade ter uma configuração acústica que crie ondas estacionárias de som. Seriam os fantasmas acústicos.

Não é surpresa, assim, que alguns sugiram que construções antigas poderiam explorar essas propriedades acústicas para influenciar também os sentidos dos que a visitassem, estimulando visões e sensações especiais. Um proponente destacado desta idéia é o inglês Paul Devereux. Por enquanto, esta área da acústica sugerindo a ligação neolítica entre experiências religiosas e a acústica é em sua maior parte especulação, mas deve parecer muito mais plausível do que soaria a princípio.

De tubos cantantes a rituais divinatórios, passando por vasos LPs e teatros gregos, completando o círculo com fantasmas acústicos e experiências religiosas auditivas, inauguramos a nova fase de 100nexos no ScienceBlogs Brasil!

Para mais sobre o tubo de Rijke: este sujeito parece ter descoberto que o efeito surge ao lavar uma peneira de metal aquecida (você consegue reproduzi-lo?), e estes outros sugerem, em bom japonês, como fazer um tubo de Rijke com três latas e um punhado de arroz. Um som longo pode ser um sinal de que você conseguiu reproduzir um curioso efeito físico, e compreendê-lo é prenúncio de futuro promissor no entendimento do mundo repleto de surpresas que nos cercam.

Discussão - 4 comentários

  1. Luis Brudna disse:

    Esse seu texto me fez lembrar a excelente série Connections com o James Burke. 🙂

  2. Mauricio Barros disse:

    No início da leitura achei pouco interessante... mas a "coisa" foi esquentando e até me empolguei 😛
    Muito bacana em saber que pequenos efeitos insignificantes podem participar na ajuda da preservação do nosso meio ambiente. No caso da queima de combustível.

  3. Mori disse:

    Essa é a idéia, Brudna... se puder, dê uma lida no novo "Sobre" do 100nexos. A idéia sempre foi fazer referência ao Connections... 🙂

  4. Luís Brudna disse:

    Perfeito. Não tinha percebido o ´Sobre´ do 100nexos.
    Adivinhei. 🙂

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