Cheirando estrelas nos confins do Universo

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As estrelas só estão acessíveis a nós por exploração visual à distância. … Nunca poderemos por qualquer meio estudar sua composição química … Considero qualquer noção a respeito da verdadeira temperatura média de várias estrelas como para sempre negadas a nós”. – Augusto Comte, Curso de Filosofia Positiva, 1835.

Para o famoso filósofo francês, certos conhecimentos seriam eternamente inacessíveis. Entre eles estava a composição química ou mesmo física das estrelas, tão imensamente distantes. Mesmo nosso Sol se situa a em torno de 150 milhões de quilômetros de distância, à velocidade luz são oito minutos de viagem. Se o Sol explodisse neste exato momento, ainda teríamos oito minutos da mais completa normalidade até que a catástrofe fosse finalmente notada.

Praticamente todas as outras estrelas no céu estão a distâncias medidas em muitos e muitos anos-luz, tão distantes que mesmo com os mais potentes telescópios continuam sendo pouco mais que minúsculos pontos de luz. Como poderíamos pretender descobrir algo sobre a composição química ou mesmo a estrutura física de pontos de luz que jamais visitamos? As estrelas poderiam ser mesmo pontiagudas, de formas excêntricas ou terem grandes propagandas de marcas intergalácticas em sua superfície, e nós provavelmente nunca saberíamos porque à distância em que se encontram, são meramente pontos de luz. Poderiam ser mesmo pequenos furos em uma grande abóbada celeste.

Pois bem, ainda não cheiramos estrelas. Nem mesmo nosso Sol. Nunca enviamos sondas para coletar amostras da superfície solar, e é pouco provável que o façamos tão cedo. Ainda temos as estrelas acessíveis apenas por “exploração visual à distância”. E ainda assim sabemos, ou pelo menos os astrônomos nos dizem muito, a respeito do Sol e até mesmo estrelas e objetos celestes a bilhões de anos-luz.

Com o perdão do terrível trocadilho, o que os astrofísicos andam cheirando?

Cheirando Luz

O que Comte subestimou foi a luz. Isaac Newton, em seu ano miraculoso de descobertas de 1666, já havia mostrado que a luz solar branca era composta de um espectro de todas as cores, que podia ser espalhado por um prisma. Foram contudo necessários dois séculos até que esse espectro fosse decifrado, porque era muito mais que um espetáculo de cores.

Mais de um século se passou até que percebessem que havia algo a ser decifrado. Em 1814, o físico alemão Joseph von Fraunhofer (o Instituto Fraunhofer, que desenvolveu o MP3, é nomeado em sua homenagem), trabalhando com os prismas de qualidade que ele mesmo fabricava, notou que o espectro da luz do Sol não era uma variação contínua de todas as cores, mas possuía uma série de falhas, centenas de linhas escuras, semelhantes a um código de barras. Claro que os códigos de barras ainda não haviam sido inventados, e elas foram chamadas de linhas espectrais. Fraunhofer as registrou, ainda que não soubesse explicá-las.

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O próximo avanço viria logo depois de um químico, também alemão, de nome familiar no laboratório: Robert Bunsen, que desenvolveu o famoso bico. Com ele (o bico de Bunsen) os químicos brincaram de queimar os mais diversos elementos com extrema eficiência, e como o bico produzia uma chama quase incolor, descobriram que vapores de elementos químicos diferentes, quando bem aquecidos, brilhavam com cores diferentes. Vapor de sódio, por exemplo, emite uma luz amarelada, que você vê bem em lâmpadas pelas ruas.

Um outro alemão amigo de Bunsen, e de nome também familiar aos que aprendem sobre eletricidade, Gustav Kirchoff, finalmente juntou as peças quando analisou o espectro dessa luz emitida por diferentes elementos químicos aquecidos.

Kirchoff notou não só que cada elemento emitia luz apenas em pequenas faixas determinadas do espectro, em linhas de emissão, como que absorviam exatamente as mesmas frequências do espectro, em linhas de absorção. Cada elemento químico possuía suas próprias linhas características em que ou emitiam ou absorviam luz. Cada elemento químico possui uma assinatura luminosa. Não é à toa que todas as lâmpadas de sódio têm a mesma cor, de fato têm o mesmo espectro.

E enquanto todas estas descobertas científicas desconexas finalmente se reuniam, se Comte vivesse apenas mais dois anos veria como a ciência ultrapassaria o impossível, com a publicação dos trabalhos de Kirchoff, que ainda publicaria exatamente sobre a composição química da superfície do Sol.

E muitas outras estrelas.

Quando um cientista velho e renomado diz que algo é impossível…

Em um triunfo científico espetacular que só serve para enfatizar como cientistas, e principalmente filósofos, devem ser cautelosos antes de subestimar o alcance do estudo sistemático da natureza, vulgo ciência, em poucos anos o elemento hélio ainda seria descoberto primeiro no Sol, e apenas quase trinta anos depois na Terra!

Apenas para enfatizar. Aquilo que enche bexigas de crianças é um elemento químico descoberto primeiro em nossa estrela, a 150 milhões de quilômetros de distância. Com uma “assinatura” de luz até então desconhecida, batizaram-no de hélio em honra ao deus grego do Sol… e apenas décadas depois conseguiu-se confirmar tal elemento aqui em nosso planeta. O hélio, aliás, é inodoro.

Ironia das ironias, se de alguma forma conseguíssemos colher material diretamente do Sol e trazê-lo até a Terra para investigação, o que deve ser possível algum dia, uma das formas de análise química seria justamente… através da espectroscopia. Isto é, faríamos com o material exatamente o que se faz a milhões de quilômetros de distância. Analisar seu espectro.

O espectro da luz ainda desempenharia papel importantíssimo no desenvolvimento de uma outra enorme revolução científica, a física quântica. O conceito de quantum foi desenvolvido por Max Planck (outro germânico) para explicar a radiação de corpo negro.

Não fosse o bastante, o espectro luminoso é também essencial em nosso conhecimento cosmológico. Foi utilizando a assinatura espectral de corpos celestes que medimos as verdadeiras escalas do Universo, muito maior e muito mais repleto de objetos do que nossas vãs filosofias jamais haviam sonhado, e foi descobrindo o desvio para o vermelho que constatamos que o Universo está em expansão, e então, que deve ter tido um início.

Não, não cheiramos estrelas, e é pouco provável que cheiremos. O cheiro da luz, contudo, sentido através da ciência a partir de tênues e minúsculos pontos a bilhões de anos-luz de distância nos eleva muito além de nossos sentidos, ultrapassando mesmo os limites de nossa imaginação.

Ou pelo menos, da imaginação de Augusto Comte.

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Fonte:

Measuring the universe, de Stephen Webb

Esta nota é uma entrada atrasada para Blogagem Coletiva sobre a Luz

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Que já teve até segunda chamada.

Discussão - 6 comentários

  1. Karl disse:

    Parabéns, Kentaro. Queria saber Quem te ilumina assim...
    K.

  2. Kentaro Mori disse:

    Obrigado, Karl! Uma honra que tenha lido e gostado!
    Sobre inspiração, eu busco dEle. Do Carl Sagan mesmo... 😀
    Não chega nem aos pés, mas que eu tento, eu tento!

  3. Danilo disse:

    Daquele tipo, se eu aprendi isso no colegial, ja esqueci a muito tempo. Parabens pelo texto.

  4. Olá,
    Muito bom o post. Gostei bastante da parte das Leis de Kirchoff. Realmente, Comte estava tão errado, mas tão errado, que hoje os astrônomos observam até urânio em estrelas! E, de fato, no espectro do Sol é possível detectar assinaturas de quase todos os elementos da tabela periódica. A questão é saber onde exatamente esses elementos se formaram! Bom, se conseguiremos cheirar estrelas algum dia eu não sei, mas acho que acreditar nisso ainda vai nos levar muito além de onde estamos hoje!

  5. Marcelo disse:

    Parabéns pelas palavras

  6. Carlos disse:

    Ótimo texto, parabéns!

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