Roombas sonham com ovelhas elétricas? As Tartarugas de Walter

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Solte um Roomba – um aspirador de pó robótico – pelo quarto durante meia hora, desligue as luzes e deixe a câmera em longa exposição. O resultado é a bela imagem de SignalTheorist.com registrando o trajeto do pequeno robô percorrendo todo o chão, desde sua espiral inicial passando pela obsessão pelas extremidades do recinto, até passar literalmente por todo o chão.

A inteligência artificial por trás da navegação do pequeno aspirador é certo segredo, mas HowStuffWorks delineia em termos gerais como funciona:

Além de ser uma bela imagem por si só, ela é espetacularmente fabulosa porque remete aos primórdios da robótica e inteligência artificial, em particular, às “tartarugas eletrônicas” criadas por William Grey Walter em 1948. Há mais de seis décadas. Eram as “Machina Speculatrix” Elmer (ELectroMEchanical Robot) e Elsie (Electromechanical Light-Sensitive robot with Internal and External stability), esta última na foto abaixo com Walter e família:

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As tartarugas artificiais de Walter estão entre os primeiros robôs eletrônicos autônomos da história, e como tal, eram extremamente simples, mesmo primitivos. O que parece uma cabeça à sua frente era um sensor fotoelétrico, mas diferente de cabeças de tartarugas, girava constantemente 360 graus. Algo como ‘O Exorcista’. Continue lendo para conhecer mais sobre estas adoráveis tartarugas exorcistas e os nexos que as unem ao seu, ao meu, ao nosso livre-arbítrio, consciência e inteligência.

“Sensciência e livre-arbítrio”

O sensor de luz giratório estava conectado aos motores, em um circuito que fazia com que assim que ele estivesse apontando para uma fonte de luz, os motores levassem a tartaruga para frente. Desta forma a tartaruga tendia a se movimentar em direção de fontes de luz. Isso ocorria, contudo, apenas até certo ponto porque quando a luminosidade era muito intensa o circuito passava a funcionar de forma reversa, de forma que as tartarugas não ficavam simplesmente paradas em frente a lâmpadas, mas as circulavam.

Além do sensor fotoelétrico as tartarugas possuíam um sensor mecânico ligado à carapaça, que permitia que detectassem quando colidiam com algum obstáculo. Neste caso, elas ignoravam os comandos fotoelétricos e passavam a um movimento oscilante, que eventualmente fazia com que se desvencilhassem de barreiras.

Estes circuitos eram extremamente simples, tanto mais quando vistos nos dias de hoje. Abaixo você confere uma versão do circuito das tartarugas de Walter:

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Pode parecer grego a um leigo, mas esteja certo, é muito, muito simples. São menos de dez componentes eletrônicos, em torno de 20 caso se contem mesmo os resistores! Com certeza qualquer dispositivo eletrônico que você tenha à mão, de controles remotos a um telefone, possuem dezenas, centenas de vezes tal número de componentes. Seu computador possui muitos milhões de vezes a complexidade do “cérebro” de Elsie ou Elmer.

E, no entanto, o comportamento das tartarugas eletrônicas era surpreendentemente complexo, mesmo imprevisível. E é aqui que retornamos brevemente aos Roombas modernos, porque Grey Walter registrou o movimento de suas tartarugas com imagens de longa exposição:

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Parece familiar? O zigue-zague luminoso registra o trajeto da tartaruga, começando à esquerda. Note que ela não podia “ver” a vela diretamente no começo, dirigindo-se até o obstáculo à sua frente, aonde passou algum tempo. Depois de se desviar dele, a tartaruga finalmente descobre a vela, anda em direção a ela e a circula, evitando aproximar-se demais.

Walter empolgou-se tanto com suas criações que enxergou características extremamente complexas nas tartarugas artificiais.

Colocadas em frente a um espelho, por exemplo, e com a pequena lâmpada piloto sobre seu corpo ativada apenas quando o motor de direção funcionava, as tartarugas passam a tremer enquanto detectam sua própria luz. “Tremem e se balançam como um desajeitado Narciso”, Walter notou, indicando que elas se identificavam ao espelho. Se tal comportamento fosse visto em um animal, “poderia ser aceito como evidência de algum grau de sensciência“.

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Duas tartarugas também apresentavam um comportamento social, à medida que seu movimento, sensores e lâmpadas piloto interagiam. Abaixo vemos como Elmer e Elsie rumam direto uma para a outra, em uma espécie de dança na parte superior. No meio tempo, uma “cabana” abaixo foi aberta, contendo a preciosa fonte de alimentação, e as tartarugas correm então em direção a ela. Elsie chega antes.

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A cabana de realimentação era outro dos comportamentos introduzidos nas criaturas. Embora comumente funcionassem com fototropismo negativo, afastando-se quando a fonte de luz era muito intensa, uma vez que as baterias se descarregavam esta limitação era removida e elas se dirigiam diretamente para a fonte de luz, aonde convenientemente estava o soquete para recarga. Abastecidas, o fototropismo negativo voltava à ação e elas se distanciavam da cabana.

Todos estes comportamentos complexos e imprevisíveis levaram Walter a sugerir mesmo que as tartarugas possuíam certo grau de livre-arbítrio. Sensciência, livre-arbítrio, logo se vê que o neurofisiologista tinha grandes esperanças para o futuro de suas tartarugas.

Rise of the Roombas

Felizmente ou não, sessenta anos depois sabemos que os Roombas, veneráveis sucessores das tartarugas eletrônicas de William Grey Walter, não ameaçam dominar o mundo. De fato, apesar de possuírem milhões de vezes mais componentes, contando com sensores infravermelhos muito mais sofisticados, os aspiradores robóticos modernos não são tanto mais complexos em seu comportamento que Elsie ou Elmer. Nos primórdios da robótica e inteligência artificial se acreditava que “cérebros eletrônicos” tão ou mais inteligentes que os nossos estavam logo ali na esquina, algo que o Windows Vista mostra estar bem distante da realidade.

Ainda assim, perguntar se Roombas sonham não é apenas um título apelativo em referência ao romance original de Philip K. Dick. Sistemas relativamente simples podem exibir igualmente sinais surpreendentes de “inteligência”. Um dos exemplos recentes mais curiosos é o Akinator, “adivinho virtual”. O sistema é simplesmente um banco de dados que relaciona perguntas e respostas dadas pelos visitantes. Quanto mais respostas acumula, mais se torna capaz de acertar corretamente em quem você pensou. Com mais de 20 milhões de conjuntos de perguntas e respostas, sua precisão se torna impressionante a ponto de provocar as mais variadas reações. Confira comentários sobre o Akinator aqui.

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As tartarugas eletrônicas possuíam “livre-arbítrio”? O Akinator é “inteligente”? A questão é literalmente filosófica, e a pergunta sobre se o Akinator, ou mesmo o Google ou o WolframAlpha são inteligentes encontra seu paralelo filosófico no argumento da sala chinesa, formulado em 1980 por John Searle. Para Searle, uma pessoa trancada dentro de uma sala poderia receber uma frase em chinês e, seguindo um enorme manual, descobriria que caracteres deveria escrever e fornecer como resposta correta, sem em nenhum momento entender nada sobre o idioma chinês. Computadores, e tartarugas, podem aparentar inteligência e livre-arbítrio, mas tais nunca passarão na melhor das hipóteses de simulações. Nossa inteligência teria algo que tais máquinas jamais reproduzirão. Espiritualistas simpatizam com a idéia.

Mas voltemos a Grey Walter. Além de pioneiro da robótica e cibernética, ele era neurofisiologista e como tal explorou o livre-arbítrio humano. Em 1963 Walter efetivamente conduziu experimentos que só se tornariam mais conhecidos décadas depois, como as experiências sobre livre-arbítrio de Benjamin Libet, que mostram que bem antes de “decidirmos” algo, sinais elétricos de tal decisão já se manifestam pelo cérebro. Nosso livre-arbítrio não é tão livre ou arbitrário, emergindo a partir de um inconsciente por sua vez determinado por um sem número de fatores. Haveria uma pessoa que não entende chinês dentro de nossos cérebros?

Enquanto os pioneiros da inteligência artificial subestimaram a complexidade da inteligência, e o fracasso dos Roombas em dominar a espécie humana seja um bom exemplo de tal, as incursões de Walter sobre o livre-arbítrio sugerem que não devemos superestimar a complexidade da inteligência, ou em particular, da consciência.

Walter enxergou livre-arbítrio em suas tartarugas, assim como qualquer geek que se preze fica maravilhado ao ver Roombas navegando por uma sala. Em uma coluna anterior argumentei como o efeito ideomotor, responsável por trás da infame “brincadeira do copo”, é uma demonstração de como fenômenos inconscientes podem ter toda a aparência de consciência própria. Em “Quebrando o copo”, a tese é a de que o “espírito” dentro do copo é apenas manifestação de parte inconsciente de um ou mais participantes do jogo.

O autor que escreve aqui, que é também um leigo, arrisca acreditar que enquanto a inteligência artificial indistinguível da nossa deve demorar um tanto mais do que Walter imaginou, ela ainda deve estar… na próxima esquina.

– – –

Fontes e referências:

Machina Speculatrix (1) – em português!

Machina Speculatrix (2) – em português!

The Grey Walter Picture Archive

Quebrando o copo

Discussão - 6 comentários

  1. Tem um episódio de "Os Simpsons" em que aparecem as Roombas.
    http://www.tv.com/the-simpsons/double-double-boy-in-trouble/episode/1146134/summary.html
    ---------
    []s,
    Roberto Takata

  2. Patola disse:

    "e passavam a um movimento oscilante, que eventualmente fazia com que se desvencilhassem de barreiras"
    Só pra esclarecer, o seu "eventualmente" foi o do português ("de vez em quando") ou o "eventually" do inglês (que seria algo como "no final ele acabaria se desvencilhando de barreiras")? Me pareceu o segundo, que seria um uso incorreto da palavra.

  3. Kentaro Mori disse:

    Foi eventualmente porque imagino que, como os Roombas, nem sempre se desvencilhassem de barreiras. Vendo agora acho que "geralmente" caberia melhor, mas fico com preguiça de arrumar. A pegadinha do "eventually" eu conheço! 🙂

  4. Rafael [RNAm] disse:

    Simplesmente fantástico o post Kentaro.
    Mais uma garimpada histórica de um gadget atual. E com implicações filosóficas!
    Parabéns

  5. Kentaro Mori disse:

    Bacana que gostou, muito obrigado Rafael! 🙂

  6. Valdenilson disse:

    Eu gostei dessa invençao de Walter.!! Gostaria mesmo de fazer uma tendo o esquema eletronico. Mas os cinetistas hoje nao sabem fazer inteligencia artificial

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