El Silbo, agora o mundo acaba

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Com vocês, o esquema para o fim do mundo, a gênese do juízo final, a espada do Armageddon. Ou alguma coisa assim. Em tese. Explico.

É apenas o circuito criado por Michael J. Rainey para “El Silbo”, um adorável rádio-transmissor movido unicamente pela energia da voz do operador. Nada de baterias, nem mesmo manivelas, basta falar e a energia das ondas sonoras é convertida em pequenos sinais elétricos que por sua vez se transformam em sinais de rádio, com potência variando de 5 a picos de 15 mW.

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Pode ser muito pouco, mas Rainey diz ter conseguido usar seu “El Silbo” para falar com outros rádio-amadores a uma distância de até 160 km! É a energia de uma voz humana, cruzando distâncias literalmente muito além do horizonte, graças à engenhosidade do cérebro humano.

O próprio nome “El Silbo” é uma referência à Silbo Gomero, uma linguagem assobiada – !!! – falada por habitantes de La Gomera nas Ilhas Canárias – acredite se quiser, ou leia na BBC e em trabalhos acadêmicos. Aproveitando-se do relevo montanhoso, e com seus altos assobios, a linguagem Silbo aparentemente permtiria conversas com interlocutores a pouco mais de três quilômetros de distância. Fascinante como possa ser, o “El Silbo” eletrônico multiplicou em dezenas de vezes o melhor que a biologia pôde nos oferecer. Nenhum assobio humano deve chegar a 160 km de distância.

A parte rápida e curiosa do post acaba aqui… caso queira adentrar uma longa divagação sobre como isso se relaciona com o Apocalipse, continue lendo. Explico.

A evolução nunca deixa de surpreender, e se o “El Silbo” de Rainey parece algo sofisticado, um biólogo poderia triunfantemente lembrar como elefantes conseguem se comunicar a distâncias de quase 10 km. Ao contrário de nós, humanos, que recorremos ao estridente assobio para que sejamos ouvidos o mais longe possível, elefantes se valem de ruídos de baixa frequência, e extrema potência – de até 112 dB, comparáveis a uma turbina de avião – que podem chegar ainda mais longe durante a inversão de temperatura nas savanas. Um elefante pode assim incomodar muitos outros elefantes, em uma área de centenas de quilômetros quadrados. Não estão sozinhos, diversos outros animais podem se comunicar além do horizonte.

Os campeões em ligações de longa distância do mundo natural são contudo as baleias, no que curiosamente é um caso de aparente convergência evolutiva da biologia natural com a nossa tecnologia. Os sons que estes cetáceos podem produzir são os mais potentes de todo o mundo animal, propagando-se sob a água por dezenas e mesmo centenas de quilômetros. Em teoria, aproveitando-se de um canal nas profundezas do oceano não tão diferente daqueles formados pela inversão de temperatura nas savanas da África, baleias no mesmo canal submarino poderiam ouvir sons produzidos por outras baleias a milhares de quilômetros de distância. Estas criaturas vivem em uma aldeia global muito antes de nós.

E nós, recentemente, reproduzimos esta forma de comunicação subaquática em submarinos nucleares, capazes de receber e mesmo transmitir mensagens através de sons nas profundezas do oceano. Ainda que sua principal forma de comunicação ainda seja via rádio.

Estamos chegando ao Apocalipse. Explico.

Por que elefantes e baleias não utilizam rádio? No caso das baleias, temos uma resposta. Anda que a evolução pudesse de alguma forma dotar estes animais de componentes para gerar e, talvez mais complexo, captar sinais de rádio, de ondas portadoras a quem sabe transistores dentro de suas cabeças, o rádio não é uma forma de comunicação simples abaixo d’água. Mesmo nossos submarinos nucleares têm problemas em receber sinais a grandes profundidades, ainda outro motivo para recorrer à comunicação sonora como as baleias quando necessário.

Mas e quanto aos elefantes? Vimos que esses paquidermes podem ter com seu rugido um alcance similar ao humilde “El Silbo” eletrônico, e que baleias podem ultrapassá-lo em muito. Ponto para a biologia? Nem tanto, porque há alguns dias Rainey substituiu o microfone original por um novo capaz de gerar picos de até 100mW, aumentando o alcance e clareza de seu sinal, ainda movido pela energia de sua voz.

Se um elefante, com seu rugido de 112 dB tivesse um “El Silbo”, presumivelmente o sinal de rádio transmitido poderia ser detectado a distâncias na ordem de milhares de quilômetros, indo além mesmo do que a baleia azul pode chegar com seus impressionantes 188 dB – lembrando que é uma escala logarítmica!

Não há, no entanto, elefantes com antenas transmissoras em suas cabeças. De fato, não se conhece nenhum animal que utilize ondas de rádio. Boa parte se vale da luz e desenvolveu independentemente até órgãos especiais, conhecidos como olhos, para captar esta parte do espectro eletromagnético. Mas as ondas de rádio… nada. Talvez Marcianos sejam mais avançados que nós e por isso tenham antenas, no entanto ainda não conseguimos dissecar um espécime para averiguar se as antenas servem mesmo para comunicação via rádio.

Utilizando as metáforas de Dawkins, talvez a complexidade necessária para um mecanismo de transmissão e recepção de sinais de rádio seja mesmo um Monte Improvável que não pôde ser transposto. Talvez o rádio e seus diversos componentes sejam, estes sim, exemplos de “complexidade irredutível”.

Fato é que nós inventamos o rádio, e mais, um sujeito chamado Michael J. Rainey criou o “El Silbo”, capaz de realizar aquilo que a evolução natural não conseguiu. Rainey nem mesmo foi pioneiro, em verdade, como ele mesmo nota a idéia de transmissores de rádio movidos pela energia instantânea da voz captada por um microfone já havia sido explorada no pós-guerra, sendo abordada em uma matéria da revista TIME em 1955.

O Apocalipse? Ah sim, o Apocalipse.

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Em 1959, o genial e inspirador Richard Feynman proferiu uma palestra com um convite para “penetrar em um novo campo da física”: manipular e controlar coisas em escala atômica. Mas foi apenas quase trinta anos depois que as visões de Feynman tornaram-se mais tangíveis através de “Engines of Creation” de Eric Drexler. Entre as diversas idéias e conceitos que se tornariam fundamentos da área, Drexler apresentou dois particularmente interessantes.

O primeiro seria o “montador molecular”, um “dispositivo proposto capaz de guiar reações químicas ao posicionar moléculas reagentes com precisão atômica”. Um montador molecular poderia assim fabricar qualquer coisa. Qualquer coisa, incluindo outro montador molecular, o que poderia levar ao problema apelidado por Drexler de “grey goo”, ou massa cinzenta: a auto-replicação descontrolada de montadores moleculares. O planeta inteiro poderia ser transformado em uma massa de montadores dedicados a criar mais montadores a partir de qualquer matéria que encontrassem.

Uma objeção à idéia, não só do terrível cenário “grey goo” como ao próprio “montador molecular” veio de Richard Smalley, ganhador do Nobel justamente por suas contribuições à nanotecnologia. Smalley lembrou que já existem montadores moleculares na natureza, como ribossomos, e que a idéia de que um montador molecular poderia montar “qualquer coisa” com facilidade não é plausível.

“Em uma reação química comum, de cinco a 15 átomos próximos do local de reação interagem em uma intrincada valsa tridimensional realizada em uma pequena região medindo não mais do que um nanômetro em cada lado. Simplesmente não há espaço suficiente para que a reação na escala de nanômetros acomode todos os dedos de todos os manipuladores necessários para ter controle completo da química”. É o que Smalley chamou de problema dos “dedos gordos”.

Também haveria o problema dos “dedos grudentos”. “Os átomos das mãos do manipulador irão aderir ao átomo sendo movido. Será assim comumente impossível soltar este minúsculo bloco de construção precisamente no local apropriado”. Estes seriam problemas fundamentais que tornariam o montador molecular universal algo impossível.

Drexler respondeu a cada uma dessas objeções argumentando como não seriam de fato problemas fundamentais. Smalley veio a falecer em 2005, mas o debate só será encerrado quando um montador molecular for demonstrado – ou quando nunca o for.

Sempre pensei que o argumento mais simples e poderoso de Smalley era o de que a biologia já trabalha em escala molecular, mesmo atômica. Ribossomos já são montad
ores moleculares extremamente sofisticados. Ainda que montadores moleculares não sejam impossíveis, o cenário de “grey goo” ainda seria muito pouco provável porque qualquer montador molecular artificial teria que competir com os naturais, que dominam o planeta. Podemos encontrar seres vivos, cada um com sua própria maquinaria molecular, da alta atmosfera às grandes profundidades da crosta terrestre. Eles já utilizam os recursos disponíveis ao seu redor da melhor forma que conseguem, e a menos que organismos artificiais sejam mais eficientes, serão rapidamente extintos.

O fato de que não existem animais com rádios, no entanto, me preocupa. Bilhões de anos de evolução não foram suficientes para que todos os caminhos disponíveis fossem traçados, e nada garante que os mecanismos biológicos que conhecemos sejam os melhores e mais eficientes. Em verdade, dificilmente devem sê-lo.

Talvez sejamos sim capazes de algum dia criar um montador molecular mais eficiente que qualquer um natural. Nossa inteligência representa uma forma fundamentalmente diferente para o surgimento de complexidade no mundo. E extremamente eficiente. O fim do mundo como uma grande massa cinzenta não deve ser tomado como impossível.

Que o progresso científico pode causar problemas não é uma conclusão nova. E como dizia Asimov, se o conhecimento pode causar problemas, não é através da ignorância que iremos solucioná-los. Mas se você pôde enxergar no inocente esquema do “El Silbo” uma lembrança dos poderes, perigos e responsabilidades de nossa inteligência, esta viagem terá valido a pena.

Só não nos vangloriemos tanto. Qualquer asteróide poderá fazer praticamente o mesmo que o mais sofisticado dos cenários de apocalipse tecnológico, consistindo basicamente apenas de dois pedaços de rocha colidindo no espaço. A pequena parcela de matéria orgânica sobre a superfície de uma das rochas pode ser vaporizada, algumas órbitas devem se alterar, mas à distância nada parecerá muito diferente.

A menos que algum outro ser vivo esteja ouvindo os sinais de rádio, claro. [El Silbo via MAKE]

Discussão - 5 comentários

  1. Patola disse:

    Genial. Filosófico e científico... E divulgador de idéias profundas.
    Só pra continuar meu rastro de chatice, no entanto: "Ao contrário de nós humanos, que recorremos ao estridente assobio..." -- O certo é "nós, humanos" (com vírgula no meio), não "nós humanos". A não ser, claro, que você esteja falando de um contorcionista extremamente flexível (Mas nesse caso a silepse - concordância ideológica - em "recorremos" não funcionaria).

  2. Kentaro Mori disse:

    hahahaha obrigado, Patola, corrigido!

  3. sustho disse:

    Ménha nosssa,(com três "s" mesmo). Surreal, isso aí merece uma moldura, é a primeira coisa desse nível que vejo em semanas, tu és doido, meus parabéns ganhou um leitor diário.

  4. fernandoca disse:

    O.o viagem total ae =D

  5. Reinaldo disse:

    Cara, eu me considero criativo, e a ligação que você faz de assuntos tão diversos é notável.
    Meus parabéns pelo artigo.

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