O Apocalipse Inevitável (parte IV)

“Imagine uma sala encharcada de gasolina, onde há dois inimigos implacáveis. Um deles tem 9.000 fósforos. O outro tem 7.000 fósforos. Cada um deles está preocupado sobre quem está à frente, quem é mais forte. Bem, esse é o tipo de situação em que realmente estamos”, alertou Carl Sagan.

Era o ano de 1983, e o notório cientista participava de um debate televisivo transmitido logo após a exibição de “The Day After”, retratando os horrores de um confronto nuclear e acompanhado por milhões de norte-americanos. No painel de discussão ao vivo estavam figuras como os antigos secretário de estado americano Henry Kissinger e secretário de defesa Robert McNamara, o sobrevivente do holocausto judeu Elie Wiesel e o ultra-conservador William Buckley.

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O debate completo, em oito partes, pode ser conferido no Museum of Classic Chicago Television*: partes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8. O vídeo que inicia esta quarta parte da série sobre o “Apocalipse Inevitável” é porém um curta-metragem de animação, criado pelo soviético Garri Bardin no mesmo ano. “Conflito” (1983) explora a mesma metáfora dos fósforos e as consequências desastrosas de um confronto. Dos dois lados da Guerra Fria vozes se levantavam a respeito da situação crítica e absurda.

Afinal, a metáfora dos fósforos e a gasolina não era apenas um conto de terror. Logo na primeira oportunidade Sagan expôs como a visão tenebrosa dramatizada no filme era em verdade uma versão amenizada das consequências reais ainda mais terríveis de uma guerra nuclear. Em uma das primeiras grandes discussões públicas do conceito, Carl Sagan explicou o que seria o “Inverno Nuclear”. Você confere o doutor Sagan expondo a situação na segunda parte dos vídeos, abaixo (a partir de 1:40s):

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Consequência climática global da queima conjunta de dezenas de megalópoles, “como quase certamente ocorrerá”, as dimensões das chamas formariam uma coluna de poeira e fuligem que chegaria até a alta atmosfera. Uma vez chegando lá, circulariam por todo o planeta e levariam vários meses para se dissipar. Todo o planeta passaria à penumbra de um inverno prolongado, mergulhando a temperaturas congelantes de uma Era Glacial instantânea.

Além de “um ou dois bilhões de vítimas diretas” das explosões, os sobreviventes simplesmente não teriam o que comer enquanto a agricultura colapsaria. “Há uma possibilidade real de extinção da espécie humana”. Se o Apocalipse Nuclear era terrível, o Inverno Nuclear mostrava que seria realmente o apocalipse, o fim de nossa espécie.

Neste ponto, o moderador Ted Koppel interrompe Sagan e mostra-se surpreendido com os vaticínios terríveis anunciados. “Se nossos espectadores já não estavam deprimidos o suficiente depois de ver o filme, suspeito que você os deixou ainda piores”, comenta. Recebe a palavra Kissinger, e este é um momento importantíssimo, porque Kissinger, secretário de estado para duas administrações e uma das figuras a moldar os rumos da história no século 20, também se mostra surpreso.

“Eu escrevi um livro sobre este assunto há 30 anos, quando a noção de Guerra Nuclear generalizada surgiu. … E agora temos o senhor Sagan dizendo que é ainda pior do que isto”. O conselheiro de presidentes não sabia bem o que era o Inverno Nuclear, porque este era um efeito descoberto há pouco. A rigor, ainda não havia sido descoberto.

Dias depois do debate Sagan publicaria na Science o primeiro trabalho científico modelando, confirmando, e de fato cunhando o termo Inverno Nuclear. Conhecido como o estudo TTAPS, devido às iniciais de seus autores (Turco, Toon, Ackerman, Pollack, Sagan), o trabalho derivava de estudos realizados pouco antes por John Birks e Paul Crutzen sugerindo a possibilidade de um “crepúsculo ao meio-dia” após um confronto nuclear. Você pode se lembrar de Crutzen: é o mesmo cientista que também havia alertado sobre o perigo à camada de ozônio devido a poluentes, de que falamos na segunda parte desta série. De fato o Inverno Nuclear também afetaria o ozônio na alta atmosfera, que poderia ser reduzido a níveis baixíssimos também com enorme rapidez. Anos após a penumbra nuclear se dissipar, seria então a radiação ultravioleta direta do Sol a dizimar formas de vida sensíveis, de olhos humanos a plânctons nos oceanos na base da cadeia alimentar.

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O Inverno Nuclear era uma descoberta científica de gigantescas implicações, e é assustador constatar como a Humanidade passou tão perto do fim sem nem mesmo imaginar de antemão o que poderia lhe acontecer. Kissinger faz referência a considerações de inúmeros think tanks que aplicavam ciência e tecnologia à análise da guerra, utilizando a matemática da teoria de jogos criada exatamente para este fim, buscando estabilidade, o que levou ao insano conceito da Destruição Mútua Assegurada (MAD, em inglês). E em todos os cálculos sobre o número de ogivas, mortes, cidades e modelos psicológicos do Politburo, ignorava-se que em termos simples a fumaça de dezenas de cidades em chamas poderia cobrir o planeta assegurando, por fim, a destruição de toda a espécie humana. Por três décadas governantes assessorados por inúmeros tecnocratas consideraram a guerra nuclear sem ter ideia de suas consequências.

“Isto é uma boa notícia”, saudou o conservador Buckley ao ouvir a notícia de Sagan. Esta reação surpreendente reflete o fato de que o Inverno Nuclear seria paradoxalmente usado tanto por aqueles que defendiam um aumento no número de armas atômicas quanto por aqueles que promoviam sua redução. Desnecessário explicar os partidários da redução, mas aqueles que apoiavam o Inverno Nuclear como justificativa para que se continuasse aumentando o número de fósforos na sala encharcada de gasolina se baseavam justamente na Destruição Mútua Assegurada, que já contava com a ideia de que a impossibilidade de vencer um conflito nuclear supostamente levaria a uma maior estabilidade e segurança, uma vez que ninguém se atreveria a apertar o botão vermelho. Nesta interpretação da Teoria de Jogos, a ciência provaria o absurdo Orwelliano de que Guerra é Paz.

Mas a loucura, ao final, deu lugar à razão. “Modelos realizados por cientistas russos e americanos mostraram que uma guerra nuclear resultaria em um inverno nuclear que seria extremamente destrutivo a toda a vida na Terra”, disse o premiê soviético Mikhail Gorbachev. “Este conhecimento foi um enorme estímulo a nós, a pessoas de honra e moralidade, agir nessa situação”. E eles agiram.

Influenciados seja pelo filme, seja pela ciência do inverno nuclear, seja por inúmeros outros fatores, Reagan e Gorbachev estabeleceram um diálogo e a partir de 1986 EUA e URSS passaram a reduzir seus arsenais nucleares, em uma diminuição que se estende até hoje. O gráfico abaixo traçando a evolução no número de ogivas nucleares no mundo fala por si mesmo.

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Há enorme esperança aqui: no debate em 1983, McNamara, Kissinger e quase todos parecem concordar que uma redução dos arsenais a mesmo metade das dezenas de milhares de armas disponíveis em um prazo de uma ou duas décadas seria muito pouco provável. Mas foi o que aconteceu. O pouco provável aconteceu. O fim da própria União Soviética é provavelmente o fator determinante para essa redução, mas há enorme esperança no fato de que a redução se iniciou mesmo antes disto, e é possível que tivesse continuado fundamentada simplesmente na tomada de decisões políticas e morais baseadas em conhecimento científico a respeito de nosso futuro. Isso é possível.

De sua participação no trabalho científico sobre o Inverno Nuclear a seu ativismo transmitindo diretamente à população estes resultados, com a ajuda de um filme feito para a TV, Carl Sagan salvou o mundo.

A história, no entanto, não parou aí, enquanto o próprio Inverno Nuclear seria questionado como uma pseudociência. Na continuação.

– – –

* Os vídeos do debate realizado após “Day After” foram disponibilizados pelo Museum of Classic Chicago Television, e estavam originalmente bloqueados aos internautas brasileiros. Solicitei ao administrador, que gentilmente liberou o acesso. Caso aprecie assistir na conveniência de seu computador esta peça relevante da história, um momento raro no cruzamento de ciência e política, faça uma doação ao museu sem fins lucrativos.

Releia toda a série:

Discussão - 9 comentários

  1. Kentaro, então existiam os céticos do Inverno Nuclear? Interessante, eu nao me lembrava disso. Aguardo com ansiedade o próximo post.
    Escrevi um Manifesto do Ateísmo Científico (que serve também para o Ceticismo Científico). Vc gostaria de dar uma olhada, sugerir mudanças e adições?
    Está aqui:
    http://comciencias.blogspot.com/2010/07/ateismo-cientifico-um-manifesto.html

  2. Kentaro Mori disse:

    Exatamente, Osame! Há um paralelo desde o ozônio até o inverno nuclear com o aquecimento global antropogênico hoje, é onde quero chegar ao final.
    Vou dar uma olhada no manifesto sim, hehe.

  3. Alan disse:

    Kentaro, existe esse debate com legendas? Meu ingles é fraco, só entendo partes.

  4. Kentaro Mori disse:

    Alan, infelizmente acredito que não. Já é difícil que esteja disponível no original em inglês na rede...
    Se servir de consolo, a participação de Sagan é relativamente pequena, com tantos participantes, ele fala apenas três ou quatro vezes, sempre brevemente. E as declarações de quase todos os outros se mostram datadas, são mais de interesse histórico ao mostrar como figuras tão relevantes estavam tão perdidas. Apenas Sagan e Wiesel fizeram comentários consistentemente visionários.
    Ao final da série comentarei mais um pouco sobre o debate.

  5. Acid disse:

    Excelente, cara, excelente... só lembrei de Watchmen, aquela piração e eu lendo isso em 1986, por aí, pegando o restinho da guerra fria.

  6. gustavo disse:

    Olá Kentaro, sou estudante de ciências sociais e há muito tempo leio seu blog mas ainda não havia te parabenizado em um comentário, seus posts são excelentes! muito bom mesmo!
    abraços

  7. liscraudjo disse:

    Muito bom esse video. Acabei de ver uma parte onde o Elie Wiesel fala "Eu estou preocupado é com as nações menores. Se não agora, talvez daqui a dez, vinte, até cinquenta anos, o Khomeini tiver armas nucleares. Ele não vai hesitar, ele nem mesmo terá uma discussão como essa que estamos tendo agora".

  8. Kentaro Mori disse:

    Obrigado pela leitura, Gustavo! Incentivo a continuar escrevendo por aqui.

  9. raph disse:

    Esqueci de agradecer pelo vídeo: então, obrigado!

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