O Apocalipse Inevitável (parte VI)

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Pintado em 1893, “O Grito” de Edvard Munch é uma das representações mais icônicas da agonia e desespero, mas quem estaria gritando? Contrariando a interpretação mais óbvia da figura ensandecida com as mãos à cabeça (que inspirou uma famosa máscara usada em uma série de filmes), o título original da obra em alemão era “O Grito da Natureza”. Munch anotou em seu diário qual teria sido sua inspiração:

“Eu estava andando por um caminho com dois amigos, o Sol estava se pondo, e subitamente o céu ficou vermelho como sangue. Eu parei, sentindo-me exausto, e apoiei-me na cerca. Havia sangue e línguas de fogo sobre o fjord azul-escuro e a cidade. Meus amigos continuaram caminhando, e eu fiquei parado lá tremendo de ansiedade, sentindo um grito infinito passando pela natureza”.

“O Grito” retrata a agonia da natureza em um céu de “sangue e línguas de fogo”. O desespero da figura humana é inspirado pelo grito da própria natureza. E o mais surpreendente é que é possível que a agonia que Munch presenciou não fosse simplesmente uma metáfora, já que naquele mesmo ano a natureza rugiu com a erupção do vulcão na ilha de Krakatoa, Indonésia, uma das mais potentes na história humana. Ela quase varreu a ilha do mapa, sendo literalmente ouvida a mais de 5.000 km de distância, com efeitos globais. Com alcance muito maior do que o som, a fumaça lançada pelo vulcão chegou à Ásia, EUA e Europa, tingindo o céu de vermelho especialmente ao pôr-do-Sol. E quem primeiro associou a possibilidade de que “O Grito” possa ter sido inspirado pelos efeitos climáticos de erupções vulcãnicas, em um literal grito da natureza, foi Alan Robock, um dos pesquisadores recentes do Inverno Nuclear. Esta é mais uma peça na série sobre o Apocalipse Inevitável.

Prometemos no texto anterior abordar a ciência do Inverno Nuclear, mas fazemos este desvio pela arte porque ela pode ser um registro histórico fascinante e especialmente relevante. “O Grito” não é o único exemplo emblemático: outra obra-prima e icônica relevante aqui é nada menos que “Frankenstein”, de Mary Shelley, romance publicado originalmente em 1818, mas escrito durante o verão de 1816 quando a jovem escritora tinha apenas 18 anos. O que poderia tê-la inspirado?

Rumores de experimentos fantásticos e tenebrosos na “reanimação” de cadáveres com eletricidade e as pernas de rãs de Galvani foram influências diretas, mas o verão de 1816 também desempenhou sua parte, porque 1816 foi o “Ano Sem Verão”, com mudanças climáticas globais e inesperadas principalmente no hemisfério Norte, provocando fome e doenças que mataram centenas de milhares de vítimas. A narrativa de “Frankenstein” começa e termina em meio à escuridão e o gelo, espelhando algo do clima em que Mary Shelley estava confinada. O clima frio e chuvoso afetou inclusive a vila próxima do Lago Genebra onde Shelley se hospedou, inspirando não só a jovem como também John Polidori, abrigado – e confinado com as chuvas – na mesma cabana. Polidori escreveria “O Vampiro”, primeiro romance moderno com a temática de sugadores de sangue e por sua vez inspiração para o posterior “Drácula” de Bram Stoker. Na mesma vila, e inspirado pelo mesmo clima lúgubre, Lord Byron também escreveria o poema “Escuridão”, que você confere mais abaixo.

O Ano sem Verão foi resultado de uma série de fatores, desde uma menor atividade solar até uma série de grandes erupções vulcânicas que, como o Krakatoa, lançaram poeira na atmosfera. E entre estas grandes erupções, a que deu o golpe derradeiro foi a maior erupção em mais de 1.600 anos, a do Monte Tambora em abril de 1815, um evento super-colossal que lançou grandes quantidades de material na estratosfera.

Um outro grito da natureza, causando agonia e mortes à humanidade, que reagiu produzindo obras de arte que nos assombram até hoje – ainda que pelo visto, tenhamos tragicamente esquecido, e alguns jamais tenham entendido, a inspiração natural desta angústia. Apenas mais de 100 anos depois de Frankenstein de Shelley e exatos 90 depois do Grito da Natureza de Munch, cientistas finalmente associariam as consequências climáticas naturais do mais próximo que a Humanidade pôde chegar do poder de erupções vulcânicas. Tanto erupções colossais quanto ogivas nucleares têm sua potência comparada em megatons de TNT.

O poema “Escuridão” de Lord Byron é uma visão perturbadora de um Inverno Nuclear, mais de um século antes que um Apocalipse desta natureza pudesse ser criado por mãos – ou mesmo um dedo em um botão – humanas.

“Sonhei e não era propriamente um sonho.
O sol se apagara, as estrelas vagavam opacas no espaço eterno.
(Perdidas, não cintilavam mais)

A Terra, gélida e cega, oscilava obscura no firmamento sem luar;
Lampejos abriam as trevas, mas o dia não retornava.
Apavorados seres humanos abandonavam suas paixões.

Naquela devastação e percorridos por calafrios, desunidos corações,
– em egoística prece – clamavam pela claridade.
Súditos e reis ocupavam o mesmo lugar,
Palácios e choupanas crepitavam em imensa fogueira;
Cidades inteiras foram destruídas.”
[ESCURIDÃO (adaptação do poema Darkness, de George Gordon – Lord – Byron)]

O caminho que Sagan e a equipe TTAPS tomou para descobrir o Inverno Nuclear, como vimos, não foi inspirado na arte, e sim em Marte e na ciência atmosférica, que incluía a camada de ozônio. Foram trabalhos recentes, como o de Robock, que finalmente restabeleceram a ligação, como parte da resposta aos questionamentos da ciência do Inverno Nuclear. No próximo texto. [com agradecimentos a Fabiane Lima, Anderson Fernandes e Beto Santana da lista CA]

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Releia toda a série:

Discussão - 3 comentários

  1. "o mais próximo que a Humanidade pôde chegar do poder de erupções vulcânica"
    Alguns cientistas sugerem que na aurora da humanidade uma erupção vulcânica tb pôs a espécie humana em risco: a erupção de Toba.
    []s,
    Roberto Takata

  2. Dani disse:

    Sou leitora de todos os blogs do Scienceblogs e sempre que venho visitar vocês aprendo algo novo. Adoro os seus textos e estou adorando a série "O Apocalipse Inevitável". Aguardando ansiosa o próximo texto...

  3. Kentaro Mori disse:

    Muito obrigado, Dani!

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