A Teia de Indra
“Na distante morada celestial do grande deus Indra, há uma rede maravilhosa que foi pendurada por um habilidoso artífice de tal maneira que ela se estende infinitamente em todas as direções. De acordo com o gosto extravagante das deidades, o artífice pendurou uma jóia brilhante em cada intersecção da rede, e uma vez que a rede é infinita em tamanho, as jóias são infinitas em número. Lá estão as jóias, brilhando como estrelas de primeira magnitude, uma visão maravilhosa de testemunhar. Se agora olharmos de perto cada uma das jóias, iremos descobrir que em sua superfície polida estão refletidas todas as outras jóias da rede, infinitas em número.
Não apenas isso, mas cada uma das jóias refletida nessa única jóia também está refletindo todas as outras jóias, de modo que há um processo de reflexão infinito acontecendo”.
A metáfora da rede de Indra, desenvolvida na filosofia budista há quase dois milênios, é mesmerizante. E ela pode ser atualizada com o conhecimento que adquirimos do mundo natural, pois há vários limites à construção de uma teia de Indra que só viemos a descobrir em gerações recentes.
O primeiro, a velocidade da luz, impediria que cada jóia represente o reflexo instantâneo de todas as outras, isto é, quanto mais distantes, mais o reflexo observado estará no passado. Este limite se relaciona com as estrelas no céu noturno, à medida que observamos estrelas como eram no passado, por vezes há muitos milhões de anos. Cada jóia da teia de Indra reflete não o presente, mas o passado das jóias ao seu redor.
Ainda que a velocidade da luz fosse instantânea e uma olhada em uma jóia permitisse vislumbrar o reflexo instantâneo de todas as outras, encontraríamos outro limite do mundo natural: a mecânica quântica. A luz não pode ser decomposta em pedaços infinitamente pequenos para compor reflexos de complexidade sem fim. Sua menor unidade é um pacote discreto, um fóton, e o princípio da incerteza impede que um reflexo contenha informação ilimitada. Cada jóia da teia de Indra contém em seu reflexo informação limitada sobre as jóias ao seu redor.
Todas as jóias da rede ainda se inter-relacionam, mas o espaço e o tempo bem a quantidade de informação em cada jóia são limitados. A teia não se altera instantaneamente, qualquer mudança se propaga pelos nós ainda que eles sejam apenas jóias refletindo umas às outras. E o vislumbre do reflexo de uma jóia será apenas parte da complexidade de toda a teia, em um instante determinado do tempo.
A teia de Indra se torna mais orgânica e natural.
[Fotografia de christophandre, via galeria de fotos de Kuriositas. Excerto de Francis Cook via Wikipedia]
A Beleza da Catedral de Luz, Fritas Acompanham
Uma das obras arquitetônicas mais fabulosas do século 20 desafiou o próprio conceito de arquitetura: a Catedral de Luz de Albert Speer, composta de 130 holofotes a intervalos de 12 metros entre si, apontando ao céu e circundando a parada de Nuremberg.
Em conjunto, os fachos criavam a impressão de uma gigantesca abóbada de luz – ainda que todos os fachos fossem retilíneos, aqueles dentro da “catedral” percebiam as luzes se curvando sobre suas cabeças, pela mesma ilusão perceptual que cria a impressão da própria abóbada celeste.
A abóbada era imaterial e efêmera, mas talvez tenha sido até hoje a maior já criada por mãos humanas. Tragicamente, apesar do fascínio verdadeiro que despertavam, o recurso de catedrais de luzes tem sido desde sua criação alvo de polêmica devido ao seu uso original para promoção do nazismo. É uma ideia genial, mas que sofre de algo como um pecado original. Nuremberg foi palco dos julgamentos históricos de criminosos nazistas, mas não sem razão lançar fachos de luz ao céu como arquitetura para emocionar multidões tem sido algo delicado desde a Segunda Guerra Mundial.
Isso tem mudado muito lentamente, e o Tributo em Luz em memória aos ataques de 11/09 foi uma exceção, composto de 88 holofotes:
Solene e belo, como a catedral de luz original, embora mesmo esta variação não aproveite a ilusão perceptual da abóbada de Speer para deslumbrar pessoas dentro dos fachos de luz. Este recurso dificilmente será repetido em grande escala tão cedo, por se aproximar demais das paradas nazistas, embora curiosamente versões menores tenham sido recriadas em shows de rock – boa parte das técnicas fascistas de manipulação de multidões são utilizadas hoje em concertos de rock e pop.
O que nos leva a uma campanha promovida em Chicago no mês passado para uma certa cadeia de fast food:
Batatas fritas de luz, estendendo-se ao infinito. Talvez seja a prova de que a beleza da Catedral de Luz não é nazista, hoje ao menos não mais do que é uma batata frita de fótons.
[via pfsk]
“Obrigado por apontar o meu erro”
A aritmética é uma das representações mais puras de uma realidade objetiva. Na distopia de George Orwell, 1984, o protagonista finalmente sucumbe à loucura do regime opressor quando passa a aceitar que “2+2=5”. A partir daí, sua sanidade já não é mais nem uma memória distante – é um conceito completamente abandonado. Sem aritmética, absolutamente tudo é possível e onde absolutamente tudo é possível nada deve ser real.
Pois que o anúncio do professor de matemática, Ed Nelson, de que a aritmética é inconsistente seria uma das maiores revoluções na história da ciência. Como brinca Steven Landsburg, “seria uma notícia muito mais impressionante que neutrinos mais rápidos que a luz, que o Sul ganhou a Guerra Civil Americana ou que toda a vida na terra foi projetada por um ser inteligente”. Seria muito mais impressionante que o que alguns chamam de Deus.
Professor da Universidade de Princeton, Nelson é um ultrafinitista que vem há muitos anos questionando a consistência dos axiomas de Peano, que formalizam aquilo que chamamos de aritmética. Se tais axiomas forem de fato inconsistentes, realmente existiria algo contraditório como “2+2=5” que não seria fruto de uma mente insana, mas da matemática em si mesma.
Foi no dia 26 de setembro de 2011 que o professor Nelson divulgou o que seria a prova desta inconsistência, em duas versões, prometendo uma outra mais extensa a ser publicada com mais detalhes. Seria o marco de sua carreira e sua entrada para a História.
Em alguns dias blogs científicos especializados em matemática borbulharam de discussão sobre a prova, e em n-Category Cafe Terence Tao, ganhador da medalha Fields, expôs uma falha na prova. Nelson não concordou com a contestação, publicando uma réplica nos comentários, mas ao mesmo tempo Daniel Tausk, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP também discutiu a falha de forma privada com Nelson.
Em 1 de outubro, menos de uma semana depois de seu anúncio, o professor Ed Nelson publicou o comentário em resposta a Tao:
“Você está certo mesmo, e minha réplica original estava errada.
Obrigado por apontar o meu erro.
Eu retiro o meu anúncio [de ter encontrado uma prova de que os axioma de Peano são inconsistentes]”.
Pense bem nisto. A beleza ética e a estatura moral que fazem um professor respeitado reconhecer em alguns dias que o trabalho em que investiu anos estava simplesmente errado, e a agradecer àqueles que apontaram seu erro, é o lado humano e moral da filosofia de Popper de que só sabemos que algo é científico quando pode ser provado falso.
Se a aritmética representa a pureza de uma realidade objetiva, poucas palavras podem representar tão bem a busca sincera por se aproximar desta realidade quanto “obrigado por apontar o meu erro”.
No caso aqui, especialmente belo porque o erro era justamente sobre a inconsistência da aritmética. Na frieza da objetividade está o lugar comum que fundamenta o que de melhor podemos fazer com tudo aquilo que nos é subjetivo. [via Albener Pessoa, thx!]
O Terrorismo Culto à Carga
Às 8:46 da manhã daquele dia 11 de setembro de 2001, o vôo American Airlines 11 atingiu a torre norte do World Trade Center. Menos de vinte minutos depois, com todas as câmeras do mundo voltadas ao local, o vôo United Airlines 175 atingiu a torre sul.
Não foi mero acidente, e naquele momento todos perceberam isso. Havia sido planejado. Mil e uma câmeras registraram de todos os ângulos a segunda colisão. Naquela manhã, apenas 19 terroristas, patrocinados pela pequena fortuna de um dos herdeiros de uma família saudita, mataram quase 3.000 pessoas, ferindo mais de 6.000. E mudaram o mundo, para muito pior.
Embora os terroristas sejam mais comumente associados a pilotos Kamikazes da Segunda Guerra Mundial, há uma certa diferença. Kamikazes voavam em aviões de guerra. Os terroristas do 11/9 raptaram aviões de passageiros e os transformaram em armas de guerra.
Neste uso inusitado dos aviões comerciais eles podem ser comparados às tribos que praticavam o Culto à Carga.
Sem entender por que os visitantes longínquos recebiam dos pássaros de metal todo tipo de iguarias, a Carga, os nativos passaram a imitar algo do que viam como invocação mágica. O Culto à Carga.
As origens do Culto à Carga são em verdade um tanto mais complicadas (aqui, um bom texto), assim como os terroristas do 11/9 não eram selvagens que desconheciam os aviões que pilotavam ou mesmo o mundo em que viviam.
Mas no uso selvagem da tecnologia para fins diversos dos quais foi criada, os terroristas praticaram a mais abominável forma de Culto à Carga. Em suas versões mais brandas, este é o culto daqueles que usam computadores para criticar os avanços da ciência, que comem tomates indignados com os progressos da biotecnologia, que não se lembram de ter visto alguém vítima de paralisia infantil mas não vacinam seus filhos.
São aqueles a quem a ciência e tecnologia não são compreendidas nem apreciadas, são apenas rituais, como pressionar um botão vermelho, que devem ser realizados para obter os mágicos resultados.
São os “novos selvagens”.