Os camundongos inconformados
Naquela manhã, no consultório psicanalítico…
A doutora aguardava dois clientes camundongos, mas estava preocupada mesmo era com a reação da secretária. Sua última ajudante ficou apavorada quando um cliente antigo, um ratão do banhado que tinha medo de água, entrou na sala de espera. Ela sempre achara simpática a cara daquele animal, mas concordava que o rabo era repugnante.
A primeira cliente já aguardava na antessala. Uma mãe de oito camundonguinhos de olhos fundos e mamas inchadas de devoção pelos seus filhotes se queixava do parceiro que não a ajudava.
-Para mim, doutora, a demonstração maior da inutilidade dos machos são aqueles mamilos. Usaram tão pouco que perderam a função! Por mim eles todos podiam cair em desuso e desaparecer que não fariam falta.
-Não seja tão lamarckista. – Interpelou a doutora.
-Extremista?
-Lamarckista. Deixa para lá. Você já pediu a ajuda dele para cuidar das crianças?
-É claro que sim.
-Mostre para mim como você falou com ele. Finja que sou seu marido e me peça ajuda. – Sugeriu a terapeuta usando a técnica do espelho.
-Ora, doutora. Eu pedi. Ah, não sei. Falei mais ou menos assim… Bom, ele nãos está vendo como estou sobrecarregada? Não acho que eu precisasse falar. O que é? Ele queria participar só na hora de fazer a ninhada? Não é justo! Ele fica lá só metido nas coisas de macho dele e não olha para mim. Não colabora. Esquece as minhas necessidades e as dos filhos dele. Nem parece que moramos na mesma cuba do mesmo biotério.
– Você tem razão, mas se não contar para ele que precisa de ajuda não pode exigir que ele adivinhe. Machos são menos inclinados a cuidar da prole mesmo, especialmente em mamíferos como você. Você tem que pedir ajuda do jeito certo.
-Que jeito é esse? – Perguntou a roedora arregalando os olhinhos escuros, mexendo de leve as orelhinhas arredondadas e eriçando as vibrissas.
-Bom, primeiro você precisa liberar feromônio e então emitir vocalizações ultrassônicas. Uns 38 kHz são suficientes.
-ASSIM?!?-Gritou estridentemente a Sra. Mus fazendo tremer os vidros do consultório e levando a analista a tampar os ouvidos, mas num tom que você e eu não escutaríamos.
-Isso, mas não precisa ser tão alto, só agudo. Agora vá para casa e semana que vem você me conta no que deu. – A doutora encerrou a seção encaminhando a primeira cliente até a porta e já chamando o segundo, um camundongo macho de outra espécie. Ao se cruzarem na sala de espera a cliente anterior lançou-lhe um olhar cheio de ressentimento que a ela pareceu cabido contra camundongos machos, mas deixou-o sem entender nada.
-Doutora, toda minha vida imaginei a casa dos meus sonhos. A mais linda da ravina. Localização e tamanho de cada cômodo, portas, janelas e corredores amplos. Sonhava em deixar aquelas tocas tradicionais para trás, viver numa casa aconchegante e cheia de personalidade, a minha personalidade. Desde que me lembro vivo em tocas exatamente iguais, um longo corredor de entrada, uma câmara central e um corredor de fuga quase até a superfície para o caso da invasão de um predador. Meus pais vivam assim, meus avós paternos e maternos viviam assim. Queria sair desse ciclo. – Queixava-se o camundongo deitado no divã. – O problema é que, agora que chegou a minha hora de realizar o sonho, fazer minha própria toca, não consigo abandonar o paradigma. Estou construindo os mesmos túneis estreitos e longos, câmaras e saídas de emergência de meus ancestrais.
-É comum reencenarmos coisas do passado, Sr. Peromyscus…
-Eu sei, doutora. É aquela história freudiana de recordar, repetir e elaborar os traumas. Né? – interrompeu o roedor.
-Não exatamente. Aí o que está acontecendo é que suas tocas são influenciadas pelos genes. Você herdou essa conformação de toca de ambos os seus pais, portanto tende a repeti-la.
-Mas, doutora, os genes controlam até isso? Não é determinismo demais? – Perguntou o cliente franzindo as sobrancelhas e apertando a boca até quase fazer sumir os longos incisivos.
-Compreendemos ainda muito pouco sobre o papel dos genes no comportamento e sua modulação, mas parece que no caso da sua toca você está geneticamente condenado a repetir a morada dos seus pais. Até as três sequências genéticas que indicam o comprimento do túnel de entrada e a sequência que indica a presença da saída de emergência são conhecidas para a sua espécie. – Sentenciou a psicóloga.
Despediram-se na porta do elevador, o camundongo se esgueirando ligeiro pelo canto do corredor, resignado e mudo. Enquanto isso a doutora pensava como todos nós temos dificuldade de lidar com a realidade. Dois camundongos tão diferentes, mas tão semelhantes. Um quer mudar o parceiro, o outro o lar. Somos todos inconformados. O que não é de todo mau, já que esse inconformismo nos move.
Liu, H., Lopatina, O., Higashida, C., Fujimoto, H., Akther, S., Inzhutova, A., Liang, M., Zhong, J., Tsuji, T., Yoshihara, T., Sumi, K., Ishiyama, M., Ma, W., Ozaki, M., Yagitani, S., Yokoyama, S., Mukaida, N., Sakurai, T., Hori, O., Yoshioka, K., Hirao, A., Kato, Y., Ishihara, K., Kato, I., Okamoto, H., Cherepanov, S., Salmina, A., Hirai, H., Asano, M., Brown, D., Nagano, I., & Higashida, H. (2013). Displays of paternal mouse pup retrieval following communicative interaction with maternal mates Nature Communications, 4 DOI: 10.1038/ncomms2336
e
Weber, J., Peterson, B., & Hoekstra, H. (2013). Discrete genetic modules are responsible for complex burrow evolution in Peromyscus mice Nature, 493 (7432), 402-405 DOI: 10.1038/nature11816
Raphael Dias – O Futuro do Doutorado
Raphael Igor Dias é recém-doutor em ecologia pela Universidade de Brasília. Durante o doutorado trabalhou com uma espécie de pica-pau (Colaptes campestres) para tentar responder algumas perguntas associadas à evolução da socialidade e seleção sexual. O trabalho de campo foi inteiramente desenvolvido na Fazenda Água Limpa. Raphael foi financiado por instituições como CAPES, CNPq, DPP-UnB e Francois Vuilleumier Fund da Neotropical Ornithology.
1) O que levou você a procurar a carreira científica? Como isto resultou no ingresso num programa de doutorado?
Ainda durante a graduação em biologia acabei me envolvendo em alguns projetos de pesquisa que despertaram meu interesse em seguir uma carreira acadêmica. No começo do último semestre da graduação, entrei em contato com a Profa. Regina Macedo (UnB) para conhecer a sua linha de pesquisa e discutir possibilidades de mestrado. Essa conversa inicial deu frutos e acabou resultando em seis anos de uma excelente orientação e uma ótima relação pessoal que se mantêm até hoje.
2) Quais os seus planos para sua carreira depois da titulação? Até o momento essa expectativa tem se cumprido?
Meus planos futuros envolvem o ingresso em uma instituição pública para que eu possa manter minhas linhas de pesquisa, continuar publicando e orientar alunos. No momento venho trabalhando com docência em uma instituição particular de nível superior. Nesse sentido, considero que tive muita sorte, pois apesar do mercado estar saturado em algumas regiões do país, consegui ingressar em uma boa instituição logo após o término do meu doutorado.
3) Em linhas gerais, como foi sua rotina de trabalho no doutorado?
A rotina de trabalho durante o doutorado foi bem variável, mas foi composta basicamente de atividades diárias de campo envolvendo busca, captura e marcação de indivíduos, monitoramento de grupos, identificação de ninhos, entre outras. Adicionalmente, eu realizava levantamento de referências bibliográficas, analisava parte dos dados já coletados, participava das aulas da pós-graduação e eventualmente trabalhava em algum projeto paralelo. Durante o período em que eu realizei o doutorado-sanduíche na Universidade de Cornell, a rotina de trabalho foi completamente diferente. Durante seis meses eu trabalhei com análises moleculares com o objetivo de determinar o grau de parentesco entre os indivíduos dos grupos de pica-pau-do-campo, assim como, entender o sistema social e de acasalamento.
4) Quais os problemas que a pós-graduação no Brasil tem encarado?
Acredito que o principal problema que a pós-graduação no Brasil tem enfrentado diz respeito à falta de investimento nas próprias instituições responsáveis pelos programas de pós-graduação. Observamos varias instituições que estão sucateadas e muitas vezes apesar de apresentarem um bom programa de pós-graduação com um renomado corpo docente, não conseguem manter determinadas linhas de pesquisa por falta de recurso. É notável uma melhora nos últimos anos em relação à área de ciência e tecnologia, com aumento de bolsas, novas universidades, mas apesar desse cenário, penso que o Brasil ainda necessita passar por uma mudança de mentalidade em relação à pós-graduação. Essa mudança deveria começar na política do governo, primeiramente valorizando os profissionais que investiram anos em sua qualificação. Essa mudança deveria incluir a abertura de novos postos de trabalho para que um número maior de pós-graduados seja bem utilizado. Por outro lado, uma mudança ainda mais radical deve ser estimulada no pensamento da população brasileira, para que a mesma entenda que a educação é o melhor mecanismo para mudanças efetivas, tanto sociais quanto políticas.
5) Que conselhos você daria a alguém considerando agora ingressar na carreira acadêmica?
Eu acho que é uma área encantadora, que favorece a formação de um senso crítico e proporciona uma visão ampla do mundo, mas que não é fácil! São necessários muito esforço e dedicação.
Fabiana Nunes – O futuro do doutorado
Fabiana Nunes é formada em Biologia na UNESP do litoral paulista. Ela concluiu o mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional na UFRJ onde hoje cursa seu doutorado no Departamento de Geologia e Paleontologia. Sua pesquisa é sobre paleontologia de pterossauros (que não são dinossauros voadores) sob a orientação do Prof. Alexander Kellner.
1) O que levou você a procurar a carreira científica? Como isto resultou no ingresso num programa de doutorado?
Ao ingressar na graduação em Ciências Biológicas pela UNESP eu já tinha em mente a pretensão de lecionar em alguma universidade e trabalhar com pesquisa. Logo, eu sabia desde então que trilharia inevitavelmente o caminho da pós-graduação (Mestrado-Doutorado). Para mim era algo natural, ainda mais em se tratando da área a qual eu me dedicaria – Paleontologia – que é essencialmente acadêmica, a menos que se pretenda estudar microfósseis e se vincular a este mercado bastante promissor patrocinado pelas indústrias do petróleo – o que definitivamente estava fora dos meus planos.
2) Quais os seus planos para sua carreira depois da titulação? Até o momento essa expectativa tem se cumprido?
Temos tido bastantes concursos pelo Brasil nos últimos anos, e isto é encorajador. Minha meta é, após a conclusão do doutorado ou até mesmo um pouco antes do término do mesmo, tomar parte nestes processos de seleção, preferencialmente para cargos em universidades públicas. Por ora estou focada no desenvolvimento da minha tese e no estudo do grupo ao qual me dedico (Pterosauria) porque agora é o momento – talvez único em toda a minha carreira acadêmica – de efetivamente aprender e ser pago para única e exclusivamente estudar, publicar e pesquisar. Uma vez assumindo o cargo de professor, estas atividades estarão diluídas em muitas outras que a nova função certamente irá requerer. Por esta razão, dedico-me hoje a formar este background da melhor maneira possível, o que me dará base não só para estes processos seletivos, como também para a pesquisa que pretendo desenvolver no futuro.
3) Em linhas gerais, como é sua rotina de trabalho no doutorado?
Divido minha rotina de trabalho entre publicar e estudar Filogenia e Sistemática de Pterosauria e mais particularmente algumas matrizes que são a base do meu trabalho a fim de construir uma matriz própria e partir para a análise in loco do material que devo analisar em coleções fora do país, a partir de meados deste ano até o final do ano que vem. É preciso muita organização e comprometimento com o trabalho para que todas as etapas sejam desenvolvidas a seu tempo e todos os prazos cumpridos. Vale ressaltar que uma tese de doutorado não se faz em um ano, por isso é fundamental seguir um cronograma previamente especificado para cada atividade a ser desenvolvida em cada semestre a fim de que a finalização da tese não fique comprometida principalmente no quesito tempo. E a pressa, de longa data, é inimiga da perfeição.
4) Quais os problemas que a pós-graduação no Brasil tem encarado?
As desigualdades regionais ainda são muito evidentes. É notório que as regiões Sudeste e Sul concentrem grande parte dos estudantes de pós-graduação, a despeito das demais regiões. O que temos na realidade são poucas universidades voltadas para o desenvolvimento da atividade de pesquisa em caráter permanente, o que as predispõem a serem preferidas por pesquisadores em detrimento de universidades menores; esse fato torna-as canalizadoras de recursos financeiros voltados para a pesquisa por parte das instituições de fomento. São estas universidades que acabam detendo grande parte dos programas de pós-graduação no Brasil, que continuam, por assim dizer, desigualmente distribuídos. Outro fator digno de nota é a questão da diversificação destes programas. Dentre as muitas causas deste problema chamo a atenção para grande parte das universidades não ser capaz de oferecer mais de um programa de pós-graduação em virtude da falta de especialistas que, em contrapartida – e caracterizando mais uma reconhecida dificuldade em nosso país – supõem um período de formação muito longo (em média, seis anos ou mais). Este fator, além de servir como desestímulo para grande parte dos graduandos, acaba impondo custos extraordinários ao sistema.
5) Que conselhos você daria a alguém considerando agora ingressar na carreira acadêmica?
É fundamental o gosto pelos estudos, em primeiro lugar. A atividade de pesquisa pressupõe uma constante busca pelo conhecimento, uma atualização permanente sobre conceitos e técnicas desenvolvidos. E uma vez que muito do que hoje se tem publicado seja escrito em inglês, o conhecimento deste idioma torna-se imprescindível ao desenvolvimento da pesquisa, principalmente quando se quer dar à mesma um caráter de divulgação mais amplo. Mesmo revistas brasileiras hoje publicam em inglês para tornar seu conteúdo mais acessível ao “mercado” internacional. Portanto, o domínio deste idioma torna-se condição sine qua non para um bom pesquisador. E, por fim, ter a certeza de que todo o esforço será recompensado no futuro.