Pensamento de Segunda

Deixarei uma some em dinheiro para que meu corpo seja levado ao Brasil. Ali ele será depositado protegido dos urubus e gambás […] para ser sepultado pelos besouros necrófagos. […] Então eu serei muitos, zumbirei como uma gangue de motoqueiros através da selva brasileira sob as estrelas.

Testamento (não atendido) de Bill Hamilton

O besouro fratricida

Para minha irmã.

Feliz aniversário.

Besouro crisomelídio da batata

Grande, bonito, saudável? Graças aos irmãozinhos que comeu na infância. Foto de Scott Bauer.

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A secretária não parava de olhar o besouro, primeiro cliente a chegar naquela manhã. Ele tinha duas olheiras sob os olhos compostos e as antenas pendiam desoladamente no alto da cabeça amarela. Ao perceber-se observado ele tentou inutilmente afastar a cara de preocupação. A psicanalista, que havia acabado de chegar para o trabalho, cutucou a atendente e pediu baixinho que parasse de encarar os pacientes. Em seguida chamou para entrar o besouro. Ele nem alçou voo. Arrastou o corpo que parecia mais pesado que de costume com os élitros baixos e um olhar lívido.

-Tive o sonho mais terrível com meus irmãos essa noite! – Declarou sem rodeios o besouro. A terapeuta nada disse. Quer dizer, ela disse que estava muito interessada e que preferia que o cliente narrasse todo o sonho antes que ela se pronunciasse. Mas tudo isso foi transmitido com um olhar consternado e interessado para o ocupante do divã que, sem alternativa, continuou a falar.

-De repente eu estava de volta à folha de batata onde nasci, àquela superfície tenra que aconchegava e deliciava. Sempre adorei comer folhas de batata, sabe, doutora? Então, lá estava eu, recém-saído do meu ovo e cercado dos ovinhos dos meus irmãos. Mas não era o mesmo campo verdejante e seguro onde nasci. No meu sonho eu eclodi num campo devastado, as folhas estavam já todas carcomidas por outros herbívoros e zumbiam no ar as asas e o fedor de percevejos vorazes e outros predadores. Apavorado com a visão daquele campo e a falta de perspectivas para meu futuro tomei a mais drástica das decisões. Comecei a destroçar e devorar os ovos de meus irmãos. – O besouro narrava com tamanho terror que às vezes lhe faltava ar. E prosseguiu.

-Doutora, meu corpo, ainda com forma de lagarta, se atirou sobre os ovos ao meu redor, maxilas em atividade, quebrando, rasgando e devorando meus irmãos. Dos ovos saíam gritos implorando piedade, mas eu os ignorava. Hemolinfa esbranquiçada escorria dos cantos da minha boca e eu gargalhava em meio à destruição de meus irmãos. Foi a coisa mais horrível! Só sosseguei quando todos já estavam estraçalhados ao meu redor. – Ele contava com movimentos frenéticos da hipofaringe e do labro como a analista jamais havia pensado possível.

-Acordei apavorado e não consegui mais dormir. Fiquei pensando em meus irmãos, minha irmã em especial. Quanto tempo não a vejo! Se mudou para tão longe, doutora. Fiquei preocupado com ela. Me senti culpado pelo sonho. Que bobagem, foi só um sonho, não é? Mas fiquei, sabe? Queria falar com ela, saber como estão as coisas. Se eu vou ganhar sobrinhos essa primavera. Sabe, doutora, durante o sonho eu me via comendo meus irmãos e ao mesmo tempo me recriminava, pensava nos meus sobrinhos que eu estava condenando a jamais nascerem. Acho que nessa hora estava já meio dormindo e meio acordado, sabe? Passei o resto da noite em claro. – A psicóloga ainda não havia aberto a boca desde o início da sessão, o que não era bem um problema, mas chegara a hora de intervir.

-Sr. Leptinotarsa, – A doutora não cansava de se surpreender com os nomes de seus clientes. – duas forças habitam os seres vivos:  Pulsão de vida e Pulsão de morte. Entre os besouros da batata o canibalismo de ovos é fazer uso da pulsão de morte, devorando os irmãos de ninhada. Isso é mais comum na pulsão de vida daqueles que estão ameaçados por falta de comida e excesso de predadores. Exatamente o seu enredo onírico.

-Mas como é que esses besouros ficam em paz depois do que fizeram. Eu estou carregando uma tonelada de culpa por ter sonhado com isso. Imagine quem praticou mesmo o canibalismo! – Surpreendeu-se o cliente.

-Olha, nossos sonhos são manifestaçõesdessas pulsões básicas e incontroláveis. A culpa é a censura por atendermos nossos instintos. Portanto, a felicidade está fadada ao fracasso, já que sempre haverá duas forças contraditórias. Só nos resta aceitar uma infelicidade mais branda. Nem imagino a culpa deles, mas não devorar os irmãos também é um problema. Se não comerem, tanto eles quanto os irmãos serão alvos dos predadores antes de tornarem-se adultos. Comendo os irmãos pelo menos eles chegam mais rápido à idade adulta e evitam serem presas dos percevejos. Só sobra o irmão mais velho e toda a plantação só para ele. O que também é uma vantagem na hora de competir por alimento. Sabe como é: “Ao vencedor as batatas.”

-Que coisa triste, doutora. Ainda bem que nascemos na plantação de batatas mais farta que existe.

-Nosso tempo acabou, mas acho que esse assunto também.

A psicanalista ficou em sua escrivaninha enquanto o crisomelídio ia embora, dessa vez voando pesadamente. Talvez pela culpa, talvez pelo exoesqueleto quitinoso. Enquanto isso a doutora pensava em como somos tentados a julgar antes de saber a história de vida de cada um. Mesmo as atrocidades mais graves têm seus motivos.
Collie, K., Kim, S., & Baker, M. (2013). Fitness consequences of sibling egg cannibalism by neonates of the Colorado potato beetle, Leptinotarsa decemlineata Animal Behaviour, 85 (2), 329-338 DOI: 10.1016/j.anbehav.2012.11.013

Vivendo na Merda

Aqui na UNEMAT estamos em plena realização do Ciclo de Estudos de Biologia de Tangará da Serra – BIOTA. Todo dia temos palestras e mini-cursos, pessoas novas de instituições distantes para interagir com nossos acadêmicos (e nós mesmos) e abrir novos horizontes. Muito ricas estas experiências! Nos fazem ver o quão pouco sabemos, o tanto de coisas legais que há para explorar fora daquilo que já pesquisamos.

 

Numa dessas esta tarde fui assistir a uma palestra sobre caracteres comportamentais e sistemática filogenética. O convidado, Fernando Vaz de Mello, da UFMT, tem se especializado em besouros rola-bosta e sua empolgação com o modelo é, digamos, contagiante. Esta subfamília de besouros, os Scarabeinae, utilizam fezes como seu principal recurso alimentar, assim como fonte de nutrientes dos filhotes. Algumas espécies retiram um pedaço de esterco, moldam-no em uma esfera, e vão rolando até um local onde enterram-na, remodelam-na, ovipositam ali dentro e podem permanecer ali para cuidar dos filhotes, são os chamados telecoprídeos. Outro grupo, o dos paracoprídeos, escava galerias sob o monte de merda preenchendo-as do recurso e colocando ali seus ovinhos. O último grupo deposita seus ovos em esferas de esterco dentro da própria montanha de esterco, são os endocoprídeos. À parte estão diversas variações destes comportamentos, como carregar o esterco sem rolá-lo, simplesmente depositar os ovos sem fazer bolinha nenhuma ou até trocar a bosta por uma apetitosa içá ou um emaranhado de plumas. Como etólogo meu instinto ficou ouriçado para saber mais sobre os bichinhos de hábito de vida tão peculiar.

 

rolabosta

Poucos animais são escultores tão hábeis…

ou escolhem matéria prima mais duvidosa

fonte: www.insecta.ufv.br

 

A despeito destes besouros viverem na merda literalmente, eles estão melhores do que muitas espécies por aí. Afinal, seu nicho, pelo menos no que se refere à dieta, não está escasso de forma alguma. Pior está a onça-pintada de outra palestrante, a Natália Mundim Tôrres da UFG, em que cada indivíduo necessita para viver de uma área preservada de 100 km² ou mais, dependendo da densidade de presas disponíveis a ela. Neste ponto bem estão os rola-bostas, se há onças eles chafurdam na bosta dela. Se só restaram suas presas, lá vão eles pro cocô da capivara. Se nem isso a agropecuária deixou, que se pode fazer? chafurdam os besouros na merda de vaca! Não há tempo ruim pra quem já vive na merda. Ou quem sabe a escolha evolutiva do grupo não seja tão má assim. Os bichinhos capricham tanto em suas esferinhas e as levam com tamanha destreza que dá gosto de ver (de nariz tampado, claro).

 

A Biologia é mesmo assim, linda em cada detalhe, desde que nos dêmos tempo para olhar. Tudo vale a pena se a idéia não é pequena.

 

E falando em poesia, lembrei de uma escrita pelo Paulo Robson de Souza, biólogo, no livro Poesia Animal que transcrevo um pedaço abaixo:

 

A peleja do Rola-bosta com a Formiga fazendeira

 

Era uma tarde após a chuva.

Um besourão empurrava

esterco sem usar luvas.

sem querer, deu um esbarrão

numa formiga saúva.

 

Que que é isso, meu amigo?!

– disse a formiga, espantada- ,

na sua cabeça chifruda

tens esta merda rolada?

Seu comedor de cocô!

Quer partir para a porrada?