Manchetes comentadas 2: Pai de Eloá é integrante de grupo de extermínio alagoano
Antes de começar só quero deixar claro que vou falar de mecanismos comportamentais gerais e suas possíveis causas proximais. Não quero que me confundam com um determinista que diria que não havia nada que se pudesse fazer. Em se tratando de comportamento, inclusive o humano, o determinismo não se aplica. Nem o genético nem o cultural. O comportamento é o resultado complexo da interação de uma miríade de fatores, uns perceptíveis ao observador, outros não. Toda vez que uso um α= 0,05, ou seja, permito-me considerar como padrão algo que acontece 95% das vezes, contra 99% usado pelos ecólogos, por exemplo, essa complexidade de fatores me salta aos olhos. O ensaio de hoje pode ser polêmico, mas foi o que me veio à cabeça quando li essa manchete.
Nos dias seguintes ao desfecho do seqüestro e assassinato de Eloá algumas imagens de seu pai foram obtidas pela mídia. Ao circular o país essas imagens chegaram à polícia de Alagoas, que imediatamente reconheceu o pai de Eloá como o Cabo Everaldo, foragido havia 12 anos e com quatro mandatos de prisão expedidos em seu nome. Aparentemente, Everaldo fugiu de Alagoas, mudou de vida e de nome. A violência parece ter deixado sua rotina até o incidente com sua filha.
Pesquisas recentes em psicobiologia concluíram que mulheres que descrevem ter um bom relacionamento com seus pais escolheram maridos que apresentavam algumas semelhanças físicas com o genitor. A pesquisa baseou-se em padrões de medidas faciais para chegar a tal afirmação, como distância entre os olhos, largura dos lábios e do nariz etc. Assim, o modelo que as mulheres utilizam para buscar seus parceiros é o modelo paterno. Pelo menos em termos físicos, que são mensuráveis. Mas o que sugiro aqui não é uma aparência física e sim de personalidade entre pai e ex-namorado de Eloá.
Fisionomia é algo mensurável, mas personalidade não. Para Freud, porém, essa extrapolação seria aceitável. Segundo a psicanálise, a primeira relação que uma menina tem com um homem é a que constrói com seu pai. Suas futuras relações serão sempre reedições desse relacionamento primordial. Além disso, traumas ocorridos na infância tendem a ser repetidos durante toda a vida numa tentativa de melhorar a forma como lidamos com ele da primeira vez. Eloá tinha três anos quando seu pai envolveu-se nas acusações de pistolagem.
É possível que Eloá tenha projetado em seus parceiros a relação que teve originalmente com seu pai. Ele foi descrito por conhecidos como um homem frio e violento. Eloá parece ter reincidido em um relacionamento com um homem agressivo, o que culminou no crime acompanhado pelo país nas semanas anteriores.
Manchetes comentadas 1: Enterro de Eloá leva milhares ao cemitério
Esses crimes que geram comoção pública nunca me atraíram. Tenho verdadeira ojeriza (que palavra eloqüente) àqueles programas mundo-cão, verdadeiros sucessos de audiência nos finais de tarde por todo o Brasil. Jamais me disporia a ir num velório de alguém que não conhecesse. Contudo, dez mil desconhecidos o fizeram no dia 21 de outubro.
O último desses crimes de comoção pública foi o seqüestro e assassinato da adolescente Eloá, em Santo André, por um ex-namorado. Um dos pontos que me chamou a atenção nessa história foi a quantidade de gente que compareceu ao seu velório e sepultamento. O que será que gera tal comportamento?
Algumas abordagens do comportamento humano trazem explicações para isso. A primeira delas aponta para a teoria da mente. Ela sugere que a situação vivida pela vítima é percebida por um observador, que se identifica e é capaz de imaginar o sofrimento da vítima, criando aí um elo. Dessa forma, aquelas milhares de pessoas no velório eram potenciais Eloás, pais de Eloás, amigos e companheiros de cárcere da menina. Pessoas que, em nossa sociedade cada vez mais violenta, sentiram-se elas também agredidas pelo seqüestrador.
É claro que as teorias não são exclusivas. Parte daquela massa deve ter ido ao velório de Eloá movido pela compaixão e empatia e parte pela tensão da situação. Aténum mesmo indivíduo ambas as causas podem se sobrepor, levando ao comportamento. O certo é que, enquanto nossos cérebros continuarem funcionando assim, teremos aglomerados ao redor de acidentes de trânsito, trens-fantasmas e programas mundo-cão.
Programação para o fim de semana? SNCT
Aproveitando a aproximação do final de semana vou sugerir uma programação aos fãs de Ciência e Tecnologia. De 20 a 26 de outubro está sendo comemorada a 4ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. Um evento criado pela coordenadoria de divulgação científica do Ministério de Ciência e Tecnologia e pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência. São diversas atividades realizadas por todo o território nacional abordando qualquer assunto relacionado a Ciência e Tecnologia. De forma a nortear o evento, esse ano o MCT escolheu como tema “Evolução e Diversidade” em homenagem aos 150 anos da publicação da Seleção Natural.
Todas as instituições de pesquisa e educação são convidadas a participar do evento todos os anos e as atividades são sempre gratuitas. Dessa forma, o evento busca levar ao público a importância da pesquisa científica, difundir o pensamento investigativo e alardear a produção do conhecimento realizada no país. As atividades reúnem exposições, apresentações culturais, palestras, matérias em jornais e revistas, emissoras de rádio e de televisão. Ao todo são mais de dez mil atividades realizadas por 745 instituições diferentes em mais de 400 cidades de todos os estados da federação, além do Distrito Federal.
Peguei algumas dicas para o final de semana dos interessados que listo a seguir, mas não deixem de conferir a lista completa no site da Semana (http://semanact.mct.gov.br). Em Manaus os visitantes do INPA, Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas, terão acesso ao laboratório de mamíferos aquáticos. Se você está em Recife o Espaço Ciência Pernambuco terá uma exposição de foguetes brasileiros, satélites, oficina de montagem de telescópios e mini-foguetes. No Planetário do Rio de Janeiro, na Gávea, haverá palestras a partir das 15 h sobre a biodiversidade brasileira no Zoomóvel, um ônibus com ambientação dos nossos principais ecossistemas. Em Brasília, no auditório do CNPq, esplanada dos ministérios, ocorrerá às 9 h da manhã de sábado um espetáculo teatral sobre o corpo humano e suas defesas contra as doenças. Já em Belo Horizonte minha sugestão é o curso de Introdução à Paleontologia, no Museu de Mineralogia. Quem estiver em São Paulo pode conferir a Mostra Internacional de Ciências na TV no domingo das 10 às 17 h na Estação Ciência da USP. Por fim, aqui em Cuiabá a Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia organizou uma mostra dos trabalhos vencedores das feiras de ciências pelo estado todo, além de apresentações do Show de Física da USP no Centro de Eventos Pantanal.
Tartarugas Marinhas
Mais um dos vídeos feitos na lua-de-mel. Desde meu estágio no projeto TAMAR que sou fascinado por esses bichinhos de uma feiura cativante (tipo ET do Spielberg ou cães pug). Esse vídeo vai para a meninada que estuda Zoologia de Vertebrados comigo que nunca teve chance de ver uma Tartaruga Marinha.
Meu prêmio Nobel preferido
Meu prêmio Nobel favorito é bem previsível. Sou fã dos laureados de 1973, Konrad Lorenz, Nikolaas Timbergen e Karl von Frisch. Especialmente os dois primeiros por seu espírito naturalístico e seu legado de popularização da ciência. Os três receberam o prêmio daquele ano por suas contribuições na criação da etologia, ou comportamento animal. Como trabalho nessa área de pesquisa esses caras merecem uma estátua no meu quintal ou, pelo menos, uma foto no quadro de cortiça do meu laboratório.
O austríaco Karl von Frisch dedicou muito de sua vida à comunicação entre as abelhas melíferas. Frisch descreveu o mecanismo de atuação dos feromônios na comunicação química entre o casal real e na hierarquização das castas dentro da colméia. Também explicou o papel da luz polarizada e da luz ultravioleta na comunicação desses animais. Mas seu trabalho mais conhecido traduziu a mensagem contida na dança das abelhas. As abelhas operárias que saem a forragear e, eventualmente, encontram uma boa fonte de alimento, retornam à colméia e sinalizam esse alimento às outras operárias. Elas realizam uma dança em forma de oito, a direção em que a abelha avança é o ângulo em relação ao sol em que se encontra o alimento. Já o tempo em que a abelha passa “rebolando” no centro do oito informa a distância da fonte de alimento.
Nikolaas, ou Niko, Timbergen foi um holandês interessado no comportamento de aves e peixes, entre outros organismos. O que mais me encanta nos trabalhos de Timbergen são seus experimentos elegantemente simples para testar idéias originalmente complexas. Timbergen, para mim, é um ícone de uma época em que ciência de excelente qualidade e amplamente reconhecida poderia ser feita com poucos recursos e muita criatividade. Entre os experimentos dele lembro-me de um que procurava explicar o comportamento de jogar fora as cascas de ovos eclodidos em gaivotas em que Timbergen observou a freqüência de predadores de filhotes em ninhos com ovos eclodidos e outros sem. Além disso, Timbergen enveredou para as bandas da divulgação científica produzindo filmes de história natural. Talvez o mais importante legado de Timbergen para a etologia tenha sido suas quatro perguntas básicas da etologia. Aquelas relacionadas aos mecanismos proximais: 1) Que estímulos desencadeiam o comportamento? e 2) Como o comportamento muda com a idade? E aquelas relacionadas aos mecanismos distais: 3) Como o comportamento se compara em espécies aparentadas? e 4) Como aquele comportamento afeta a sobrevivência dos animais que o realizam.
Konrad Lorenz, austríaco, também tinha uma predileção por aves. Usando gansos, Lorenz descreveu a estampagem, um mecanismo em que o animal tem um padrão de comportamento instintivo disparado por um estímulo aprendido. O padrão fixo de ação “siga a mamãe que ela irá alimentá-lo e ensiná-lo a voar” codificado no genoma dos filhotes de ganso depende de um outro aspecto, saber quem é “a mamãe”. Nesse sentido encontra-se igualmente codificado no genoma do gansinho a informação “mamãe é a primeira coisa grande que se mexer assim que você sair do ovo”. Ao posicionar-se em frente a ovos eclodidos em chocadeiras, Lorenz criou uma legião de gansinhos a segui-lo. Ele trabalhou ainda com comportamento agressivo, e aprendizado. Lorenz também era adepto da divulgação científica e escreveu alguns títulos sobre o comportamento animal para o público em geral.
As carreiras desses pesquisadores ocorreu em grande parte durante os anos de guerra. De fato, Lorenz e Timbergen viveram a II Guerra Mundial de forma bastante diferente. Lorenz afiliou-se ao partido nazista em 1938, o que lhe rendeu uma cátedra na universidade de Munique. Seus experimentos foram dirigidos pelo regime nazista durante alguns anos, escreveu sobre higienização racial e determinismo genético. No mesmo período Niko Timbergen foi feito prisioneiro dos nazistas e obrigado a realizar experimentos. Isso levou-o a cortar relações com Lorenz por muitos anos. Mais tarde, na cerimônia de entrega do Nobel, Konrad Lorenz reconciliou-se com Timbergen, assumiu seus erros e pediu desculpas por alguns de seus atos do passado.
Acupuntura
Sempre comento com meus alunos que enriquecer seus repertórios de experiências é uma boa forma de tornarem-se mais criativos ou, pelo menos, de tornar suas vidas mais divertidas. Andei meio sumido nas últimas semanas porque tive uma perda familiar muito grande deixei muitas das minhas atividades de lado por umas semanas e as estou retomando lentamente. Acontece que nesse processo de superação do sofrimento, meu pai me chamou para ir com ele a uma seção de acupuntura. Resolvi ir, mesmo com meu lado cético erguendo uma das sobrancelhas, pelo menos a título de experimentar o novo. Era uma sala comercial com uma atendente oriental muito simpática recepcionando, onde a esterilidade permitia havia itens de decoração chineses e pequenos bonecos do Confúcio com os desenhos dos tais meridianos de energia que diz-se guiar a acupuntura. Ao fundo a música me lembrava da onda new age da década de 90.
Deitei-me em uma espécie de maca, tiraram meus sapatos. Em seguida uma senhora japonesa (não sou bom de identificar as nacionalidades orientais pelo rosto, mas seu nome certamente era japonês, e não chinês) entrou com um punhadinho de agulhas num frasco esterilizado, me fez perguntas, pediu para ver minha língua, apertou minha barriga e pernas e começou a aplicar as agulhas em mim. A agulha não perfura fundo, fica bem superficial na pele. Recebi espetadas nos tendões de Aquiles, pulsos, testa, no alto da cabeça e dentro das duas orelhas. Permaneci ali deitado por uma hora. Havia momentos em que uma das agulhas me provocava uma sensação de calor intenso, outra de dor pungente local, noutro momento uma terceira agulha me provocou sensação de pressão difusa. Mas, no geral, elas incomodaram menos do que eu imaginei e toda a atmosfera trouxe uma sensação muito agradável.
Para a medicina tradicional chinesa a acupuntura é uma forma de regularizar o fluxo de energia vital (Qi, em mandarim) pelos meridianos em que ela verte pelo corpo. Assim, existem pontos em que a energia vital se esvai e deve ser concentrada e outros em que ela fica retida e deve ser dispersa. As agulhas são inseridas nesses pontos, conhecidos pelos acupunturistas graças à anamnese que fazem com o paciente e algumas observações prévias. Anatomicamente o tal fluxo de energia vital pelos meridianos não encontra nenhum embasamento nos canais conhecidos do corpo humano como o sistema circulatório, o linfático ou os nervos.
Por outro lado, é reconhecido que a acupuntura tem demonstrado efeito em uma série de problemas de saúde. Ela foi eficiente em reduzir dores lombares, enxaquecas e fibromialgias. Pesquisas que buscaram explicações mais materiais para a acupuntura chegaram a dois mecanismos de ação possíveis. A primeira sugere que a acupuntura interfere nos nervos aferentes (aqueles que levam informações da periferia do corpo ao cérebro) que atuarão num dos principais eixos de regulação metabólica do corpo, o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. É na interação entre esses órgãos que ocorre a definição da freqüência e da pressão cardíaca, taxa respiratória, digestão dos alimentos e transporte do alimento pelo tubo digestivo, balanço hídrico, anabolismo, balanço energético, aptidão reprodutiva, imunidade, estado de humor, mecanismos da dor e estresse. O que responderia por que a acupuntura pode agir numa gama tão grande de problemas de saúde. A outra hipótese baseia-se no fato de que a acupuntura desencadeia a liberação de endorfinas com ação analgésica quando conectados a receptores opióides no tálamo, o centro cerebral de administração da dor. Essa mesma endorfina, porém, também é liberada quando da administração de placebos. Os estudos, portanto, ainda são escassos e carentes de metodologia adequada, mas também promissores.
Quem me levou para a sessão foi meu pai, tão sugestionável que é capaz de sentir sono por mascar chiclete sabor maracujá! Mas, placebo ou não, a acupuntura me deixou mais tranqüilo e deu uma forte sensação de bem-estar. Valeu a experiência.
Ciência para a Vida
Hoje fui a uma exposição da EMBRAPA aqui em Brasília chamada Ciência para a Vida. É, na verdade, uma apresentação da pesquisa desenvolvida pela EMBRAPA em tecnologias agropecuárias e meio ambiente. A exposição é daquelas muito bem elaboradas por arquitetos, cheia de efeitos de luz, uma chuva caindo do teto para falar de mudanças climáticas, gráficos feitos de arroz e soja, até uma vaca clonada! Tudo muito legal.
Além disso, a intenção da organização esse ano foi oferecer um espaço não só de descoberta científica, mas também uma oportunidade de entretenimento de excelente qualidade, com gastronomia, música de qualidade, teatro, tudo bem diversificado. Do lado de fora há uma grande feira com exposição de produtos agrícolas, órgãos ligados à agropecuária e vários livros. Claro que eu não saí de mãos abanando.
Mais uma vez a EMBRAPA demonstra sua capacidade invejável de levar a produção científica que realiza ao cidadão comum. As grandes universidades e centros de pesquisa deveriam se espelhar nesse talento de divulgação científica para projetar sua imagem com a mesma eficiência.
Tubarão lixa
tubarão lixa
Na minha lua-de-mel tiramos um dia para conhecer o aquário de Natal. Ali havia um tanque que permitia tocar em alguns tubarões lixa, uma espécie bastante dócil. Veja o resultado no link acima.
Que dia
07:00 – Cansei de brigar com meus lençóis por mais alguns minutos de sono. Desisto. Saio da cama e vou me aprontar. Escolho no armário minha roupa com mais cara de biólogo, uma calça cargo com uns 316 bolsos e uma camisa verde igualmente cheia de bolsos. Odeio acordar cedo, mas é por um bom motivo.
08:00 – Converso com alguns alunos, jovens e sorridentes. Se congratulam. Hoje dispensamos nossos alunos das aulas formais e fomos todos para a praça central de Tangará da Serra, cidade onde sou professor na Universidade do Estado de Mato Grosso, UNEMAT. Ao fundo vejo passando outros alunos com mesas, caixotes e microscópios indo e vindo como formiguinhas para barracas montadas na praça.
09:30 – Somos uns 100 professores e alunos da biologia espalhados em algumas barracas. Na praça transitam estudantes do ensino fundamental e cidadãos comuns de Tangará. Na barraca da botânica os biólogos distribuem mudas de pequizeiro, dissecam flores ao microscópio e mostram plantas desidratadas. Na genética mostram o que são mutantes de verdade. Nada de super poderes, apenas um par de olhinhos brancos. Na microbiologia pontinhos rosados através das oculares passam a ser chamados de bactérias. Na barraca que estou, mostramos a fauna de serpentes venenosas da região, alguns insetos e uma demonstração da forma e função dos dentes na alimentação de mamíferos.
10:00 – Faz 36° C e a umidade não está alta, mas ninguém arreda o pé. Entre um visitante e outro emissoras de tv e jornais impressos vêm nos fazer perguntas e gravar. Nunca me acostumei com minha imagem refletida nas objetivas de uma câmera de vídeo.
11:30 – Missão cumprida! Levamos o curso de Ciências Biológicas da UNEMAT, do interior das nossas salas de aula para o meio da praça. No dia do biólogo mostramos um pouco do nosso papel para a sociedade, pelo menos a tangaraense, fizemos jus ao sustento que eles nos dão com seus impostos.
O biólogo ainda sofre com a falta de reconhecimento. Nossa profissão precisa de momentos como este para mostrar a que veio. Me impressionou hoje o quão pouco o público geral sabe sobre a profissão do biólogo. Isso se reflete na forma como os pais lidam com a escolha de um filho pelo curso de biologia, na compreensão da ciência que fazemos e na preocupação com os recursos naturais. Ainda bem que o prazer de fazer biologia compensa tudo isso.
Vinte mil léguas submarinas
Quando eu era pequeno meus pais participavam de um clube do livro. A cada dois meses um moço muito bem vestido batia à nossa porta com uma pasta e um catálogo, nós escolhíamos os títulos e eles nos eram entregues pelo correio. Foi assim que me tornei fã de um escritor francês chamado Júlio Verne. Ele era célebre por suas ficções quase proféticas, descreveu uma viagem à Lua, o submarino e uma série de outras coisas que só seriam inventadas dali a muitos anos. Meu livro preferido era Vinte mil léguas submarinas.
Nesse livro o capitão Nemo comandava o Náutilus, um submarino, através dos mares descobrindo seres incríveis. Talvez aí eu tenha começado a me interessar por biologia marinha, talvez antes disso já gostasse. Acontece que a realidade muitas vezes é bem mais estranha que a ficção. Mesmo os mais fantásticos monstros medievais ou seres das 20.000 léguas não fazem jus aos peixes abissais que descobri na biologia.
O ambiente abissal é caracterizado por uma luminosidade tão baixa que não sustenta vegetais. Isso levou a uma baixíssima quantidade de alimentos, então todo alimento deve ser aproveitado. Existem três origens para o alimento dos peixes abissais: pequenos animais na coluna d’água, outros peixes menores e detritos como peixes mortos e até fezes que caem lá de cima onde o sol bate mais forte. Os animais que se alimentam de pequenos animais são os filtradores, como Bassogigas gillii aos 2000 m, possuem longas estruturas na faringe que peneiram o alimento da água. Os predadores têm uma grande diversidade de estratégias para conseguir seu alimento em um ambiente tão ermo. Alguns têm bocas espantosamente grandes totalmente articuladas, como o Malacosteus niger que habita águas até 4000m. Outros têm uma modificação da nadadeira dorsal em órgão luminoso usando-o como isca, é o caso do Echinophryne mitchellii, encontrado a 700 m. O alimento é tão escasso que, depois de abocanhado, não pode ter chance nenhuma de fugir. Por isso os dentes funcionam como a grade de uma prisão (Anoplogaster cornuta, 5000 m).
Se conseguir alimentos já é difícil, um parceiro sexual não fica atrás. Para isso os peixes abissais deram também três soluções. Allocittus verrucosus aos 1800 m, formam cardumes grandes com machos e fêmeas vivendo sempre juntos, assim eles não precisam se encontrar só na época reprodutiva. Benthosema suborbitale, que vive aos 750 m de profundidade, resolveu esse problema tornando-se hermafrodita. Assim, o peixe pode se autofecundar na falta de um parceiro, ou servir de macho e fêmea quando encontra alguém. A solução mais radical foi a de Melanocetus johnsonii aos 1300 m. Nessa espécie os machos reduziram-se a apenas parasitas das fêmeas que sugam seu sangue e entregam-lhe sêmem.
Talvez a característica mais impressionante dos peixes abissais seja a capacidade de produzir luz. Na verdade eles apenas têm câmaras em seus corpos que servem como meios de cultura para bactérias, essas sim, capazes de produzir luz. É o caso de Astroonestes macropogon aos 2000 m. De fato, 75% dos animais abissais são luminescentes e usam essa luz de diversas formas. Alguns têm luz apenas no ventre para esconder sua silhueta de predadores que estiverem abaixo dele, como Argyropelecus gigas, de 650 m. Algumas águas-vivas, quando atacadas, acendem e iluminam seus predadores, expondo-os a peixes maiores que os comerão. Com toda essa diversidade de animais luminescentes, os predadores, que muitas vezes têm corpo transparente, não podem correr o risco de ficar com seu estômago brilhando no escuro. Por isso esse é o único órgão opaco desses animais.
Em se tratando de peixes abissais a evolução foi extremamente criativa. Mas tenha em mente que a diversidade de espécies conhecidas ainda é pequena comparada à diversidade existente. A cada viagem do submersível Alvin, do centro de pesquisa oceanográfica de Monterrey, novas espécies são descobertas.
Fonte das imagens: www.fishbase.org e www.bbc.co.uk