A íbis criativa

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A secretária recém contratada enfiou a cabeça dentro do consultório interrompendo a consulta anterior da doutora, que atendia uma poliqueta fêmea afeita a sexo grupal, numa orgia chamada epitoquia.

-Doutora, o pássaro que vai entrar na próxima consulta está rasgando suas revistas.

-Por favor, não me interrompa. A sessão de terapia é um momento muito íntimo entre profissional e paciente. Deixe-a rasgar o que quiser.

A íbis careca e criativa. Fonte: arkive.org

Momentos depois a doutora abre a porta e deixa passar a poliqueta. A íbis que era a próxima cliente tinha ao seu redor um conjunto de dobraduras feitas com diversas páginas de revistas. Os origamis, todos representando outras íbis, desenhavam no chão formações diversas.

-Vamos entrando, Dona Geronticus, a senhora é a próxima. – A doutora acompanhou a ave totalmente sem penas na cabeça vermelha semelhante à de um urubu caminhando com deselegância para dentro de sua sala e se empoleirando no encosto do divã. – O que a traz aqui hoje, minha cara?

– Doutora, será que tenho uma fixação na fase anal? Adoro inventar coisas diferentes na hora de voar, mas ninguém reconhece a genialidade do que eu crio. Tenho uma dependência de reconhecimento.

-Ninguém reconhece sua genialidade. Fale mais sobre isso.

-Bom, as íbis carecas sempre voam em formação de V. Me parece que todas nós nascemos assim e só sabemos fazer isso. Não nos questionamos, não damos asas à nossa imaginação. Só papagaiamos um padrão. Odeio isso. Eu prefiro criar! Prefiro inventar formações novas. Toda vez que chega minha hora de assumir a frente do bando eu dirijo as outras meninas para fazermos os mais lindos padrões nos céus. Passei pela fase das figuras, desenhando corações, trevos, ondas, casas. Passei pela fase dos emoticons, com as mais diferentes carinhas. Passei pela fase das mensagens, voávamos escrevendo “papagaio come milho, periquito leva a fama” ou “de grão em grão a galinha enche o bico”. Adoro inventar formações diferentes. O problema é que minhas companheiras de bando ficam rechaçando minha criatividade, me inibindo. Não aguento mais essa vida burocrática de só voar em V, mas se elas não querem colaborar, não consigo dar vazão à minha arte! Me ajude, doutora. Como posso abrir a mente delas?

-De fato, a senhora é muito inventiva e reconheço o mérito nisso. Mas já considerou que talvez exista uma razão de ser para todas as outras íbis só voarem no tradicional V? Talvez fosse melhor direcionar sua criatividade para outras áreas.

-Mas por que haveria uma vantagem específica em voar em V? Por que não em círculo ou em X?

-Olha, pesquisadores sugerem há décadas que esteja relacionado à economia de energia e ao aproveitamento do vórtex criado na ponta da asa da ave ao lado, mas nunca foi possível medir se as aves conseguem de fato se posicionar e abanar as asas da forma realmente mais econômica. Seria necessário usar sensores de posição nas aves que seriam grandes e pesados demais para não atrapalhar no próprio voo. A menos que uma íbis resolva estudar isso.

-Doutora, que grande ideia. Sempre quis me tornar uma cientista. Elaborar as mais audaciosas hipóteses e os mais belos teoremas matemáticos de excelência em voo. Seria perfeito! – Sorriu a ave com seu bico adunco e um leve arrepio nas coberteiras atrás da cabeça.

Várias espécies, como os gansos acima, voam em V. Fonte: sharing the planet with animals.

-Não tente mudar a forma de voo, a formação em V aparentemente proporciona uma economia energética razoável, por isso outras formações não são feitas em geral. Não é falta de criatividade, é um ótimo alcançado empiricamente. Nosso horário acabou. Posso ajuda-la em algo mais?

-Não, foi ótimo ter vindo. A senhora deu uma excelente ideia. – E lá se foi volitando a íbis, com uma nova perspectiva, ignorando o elevador e saltando janela a fora. Na antessala do consultório.

A secretária correu até a janela. – Passarinho estranho, hein doutora. Todos os seus pacientes são assim?

-Minha cara, de perto ninguém é normal. Nem a senhorita! E ela não é um passarinho, é uma ave. Uma íbis criativa.
Portugal, S., Hubel, T., Fritz, J., Heese, S., Trobe, D., Voelkl, B., Hailes, S., Wilson, A., & Usherwood, J. (2014). Upwash exploitation and downwash avoidance by flap phasing in ibis formation flight Nature, 505 (7483), 399-402 DOI: 10.1038/nature12939

A vaca subordinada

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Era o primeiro dia da secretária e ela não parava de encarar a cliente que esperava a doutora no sofá de frente ao seu balcão. Uma enorme vaca, com ancas carnudas e manchas nos pelos mascava sabe-se lá o que do mesmo jeito que a secretária mascava seu chiclete. Ela  já estava desconfortável com o olhar insistente da vaca, com seus olhos plácidos, mas isto era pouco comparado ao mal-estar de atender uma vaca num consultório psicanalítico.

-Moooça, você sabe se a doutora demora? – Perguntou a ruminante no exato momento em que a porta se abriu convidando-a para entrar.

-Bom dia, queira entrar e se acomodar no divã.

Respeite as mais velhas. Vacas mais velhas ocupam postos hierárquicos mais altos.

-Muuuito bom dia, doutora. Pedi esta sessão porque estou desapontada com o juízo que minhas companheiras de rebanho fazem de mim. Elas não me respeitam, ficam seguindo cegamente os palpites de uma vaca velha que é puro osso. Ninguém me escuta, fingem que eu não existo. Outro dia uma delas disse…

-Por favor, fale de você. Não quero saber o que as outras dizem. Quero saber como você se sente. – Interrompeu a psicanalista.

-Muuuda, eu me sinto muda. Ou então invisível. Ninguém me percebe! – Mugiu a cliente triste.

-Me desculpe a indiscrição, mas quantos anos a senhora tem?

-Moooagem nenhuma, eu sou jovem, não tenho problema em dizer minha idade. – Respondeu a vaca.

-Imaginei, a senhora sabe que entre as suas pares a idade é o mais importante na definição de quem manda no rebanho?

-Múúúmias, quer dizer que eu devo seguir as múmias do rebanho? Pois para mim é a força que define. Eu, uma vaca grande, forte e viçosa, é que deveria liderar aquele bando de múmias. Não consigo aceitar que eu não seja a líder. – Revoltou-se a vacona.

-Pois é, em muitos animais é mesmo a força que determina a hierarquia, mas não é sempre assim. Vacas mais velhas sabem onde o pasto está melhor, são mais sábias. Por isso são respeitadas.

-Mooodestamente, tenho que reconhecer que elas são mesmo experientes. Têm seus méritos para liderar o bando. Mas eu também tenho.

-Nem tudo se ganha na força, minha cara. Por que não experimenta a tranquilidade de se deixar liderar, aproveita este tempo para aprender muito e espera que seu dia de líder ainda vai chegar? – Sugeriu a terapeuta.

-Muuuito obrigado, doutora. Não era o que eu esperava, mas vou tentar. Um dia chega a minha vez. – Despediu-se a cliente passando pela secretária que ainda ruminava seu chiclete.
Radka Sarova, Marek Spinka, Ilona Stehulova, Francisco Ceacero, Marie Simeckova, Radim Kotrba (2013). Pay respect to the elders: age, more than body mass, determines dominance in female beef cattle Animal Behaviour DOI: 10.1016/j.anbehav.2013.10.002

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As festas de fim de ano aos olhos de um etólogo ateu

Várias pessoas que me conhecem pessoalmente se surpreendem com o minha ligação com as festas de fim de ano, já que sou ateu convicto e um cientista. Por isso resolvi explicar aqui a conexão que tenho com essas datas sob um ponto de vista etológico.

Que venha mais um movimento de translação!

Primeiramente, somos uma espécie altamente adepta a simbologias. A data de nascimento de um importante personagem histórico ou a virada do ano nada mais são que símbolos. Existem fortes imprecisões na determinação da data do nascimento de Cristo. Um ano, nada mais é que o período (com 4 horas de imprecisão) que a Terra leva para rodear o sol. Além disso, não existe nada astronomicamente memorável no momento estabelecido como nosso ano novo. Talvez fosse melhor mudarmos de ano no solstício do dia 21 de Dezembro. É por isso que, sendo puramente racionais, não faria sentido idolatrar esses símbolos.

Mesmo assim não acho incongruente da minha parte celebrar as festividades de fim de ano sendo ateu e materialista (no sentido de valorizar o concreto, não de me apegar aos bens materiais). Encaro o natal como a celebração da nossa vida em sociedade, especialmente nossa unidade social, a família. O natal para mim é a principal época de retribuir o altruísmo que me foi concedido, ou pelo menos agradecer por ele (o agradecimento funcionando como uma nota promissória de reciprocidade futura). Sem reciprocidade a socialidade perece, especialmente se não houver laços fortes de parentesco. Por isso considero o natal uma data extremamente importante.

Já o réveillon para mim é a data da renovação. É quando analisamos o ano que passou para projetar o futuro. Obviamente também é simbólico, uma meia-noite como qualquer outra das 364, mas precisamos de uma data para fazer as coisas, como uma meta socialmente imposta para repensarmos a vida e celebrarmos os acertos.

Assim sendo, seja você cristão, budista, macumbeiro, cubista, corintiano ou ateu, feliz ano novo e até 2014.

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