A tesourinha complexada

Para minhas colegas de trabalho Alessandra e Jéssica

Torta, mas funcional. A forfícula dos machos é assimétrica para ajudar nas lutas. Fonte: www.sfsu.edu

Torta, mas funcional. A forfícula dos machos é assimétrica para ajudar nas lutas. Fonte: www.sfsu.edu

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora abriu o consultório e por trás do balcão de atendimento a secretária lia um desses compêndios das piadas mais idiotas. Como era difícil encontrar uma boa funcionária, pensou a doutora. Ela nem contava que a secretária trocasse a revista de piadas pelos sonetos de Shakespeare ou O Livro dos Símbolos do Jung. Não a embaraçar na frente dos clientes já seria suficiente.

– Bom dia, vamos entrando. – Convidou a terapeuta.

O insetinho tinha uma compulsão quase irresistível pelas frestas, estava sentado num canto do sofá encolhido. Bem na hora em que se levantou e virou em direção à porta do consultório, a secretária disparou uma risada nada abafada em reação ao chiste, gargalhada dessas de mostrar obturação em dente siso. Imediatamente a tesourinha curvou os tergitos mediais do abdômen e grudou na parede. Correu para dentro do consultório com as lacínias tortas numa expressão inconfundível de quem foi ofendido.

– Doutora, ela riu de mim. – Sentenciou o animal desconfortavelmente enfiado entre duas dobras do divã.

– E o que há de engraçado em você, Sr. Anisolabis?

– Não é engraçado, é constrangedor! Doutora, nem tamanho de tesourinha que se preze eu tenho. Além disso, morro de vergonha de uma parte do meu corpo.

– O que há de errado com ela? – Instigou a terapeuta que já havia percebido a assimetria e a estatura diminuta do cliente.

– Ah, ela é feia, é pequena. E, doutora, o pior é que ela é mais torta de um lado que do outro. Por isso sua secretária riu de mim. Ela viu como sou horrendo.

– Mais torta para um dos lados, mas será possível? Você mostraria para mim?

– De jeito nenhum, você riria de mim como ela riu. Tenho vergonha. – Respondeu o inseto com o clípeo corado de vergonha.

– Sr. Anisolabis, eu sou uma profissional!

Ainda meio contrariado a tesourinha puxou lentamente seu abdômen de dentro das dobras de tecido do divã e expôs sua extremidade. Ali estava uma estrutura escura e alongada, um lado bem curvado, o outro mais aberto. Era mesmo torto, mas a analista tinha autocontrole e sabia do que se tratava.

-Não tem nada de estranho aí. Sua forfícula está dentro do tamanho padrão para a sua espécie. Além disso, o formato dela assim desigual é, na verdade, uma forma de você lutar melhor, você luta bem graças à sua forfícula torta.

– É verdade. Mesmo eu não sendo dos maiores, luto muito bem e sempre uso com habilidade minha forfícula.

– Você deveria se preocupar mais com a firmeza do aperto de forfícula do que com seu tamanho ou forma. – A analista sempre sabia como contornar uma situação constrangedora.

– Falando assim a senhora até parece minha mãe. – Respondeu o dermaptero.

– Chega de trasferência por hoje, Sr. Anisolabis! Vamos deixar sua relação com sua mãe para a próxima seção. Passar bem.

Nicole E. Munoz & Andrew G. Zink (2012). Asymmetric Forceps Increase Fighting Success among Males of Similar size in the Maritime Earwig Ethology DOI: 10.1111/j.1439-0310.2012.02086.x

O macaco prego brigão

Naquela manhã no consultório psicanalítico…

Essa carinha fofa engana, o macaco prego é bom de briga
Essa carinha fofa engana, o macaco prego é bom de briga. Fonte: wikipedia.com

 

Era a primeira vez que a doutora contratava um secretário e ela já estava arrependida. De um lado da antessala estava o dito cujo, contido à força por ela. Do outro, dois macaquinhos. O da frente, o líder do bando, com uma expressão assustada continha o outro que, irado, tentava desvencilhar-se e voltar a agredir o secretário.

O macaco dominante resolveu a contenda empurrando para dentro do consultório o colega irado. Quando a doutora entrou o macaquinho estava empoleirado no encosto do divã com a cauda enrolada à haste do abajur e o peito arfando. A doutora sentou-se na poltrona com o bloquinho na mão e o cabelo desgrenhado.

– Deixe-me adivinhar. Ímpetos de violência incontrolável?

– A senhora é boa mesmo, doutora. – Resmungou o primata com desdém.

– Quer me contar sobre sua semana?

– Eu tenho escolha?

– Sempre! Você paga a consulta agora e se livra de mim na hora.

– Foi uma semana normal. Comemos frutos, um ou outro inseto, patrulhamos o território, cuidamos de nossas fêmeas e dormimos. Nada excepcional. – Após alguns segundos de silêncio no fim da frase a analista sacou o bloquinho de recibos da gaveta.

– Ok! Ok! Vamos conversar. Meu líder não me deixa sair daqui antes do fim da consulta. – Protestou o macaco prego contrariado.

– Vamos começar por ele então. Como é a relação de vocês? – Perguntou a psicóloga guardando o talão de recibos.

– Ele manda e eu obedeço. Próxima pergunta.

– Na próxima resposta agressiva eu encerro a consulta. Você se sente valorizado por ele?

– Subordinados nunca são valorizados.

– E isso te incomoda. – Foi mais uma afirmação do que uma pergunta, mas a única saída para o macaquinho era responder.

– Eu não me importo muito. Dá para ver que alguns macacos são mais bem tratados, mas eu não ligo.

– Como foi a briga que o trouxe aqui?

– Qual delas? Na que eu peitei um bando inteiro com 20 machos? – Debochou o macaquinho que agora escorregou pelo encosto e deitou-se no divã relaxado.

– Você se acha muito poderoso com essa sua atitude agressiva, né?

– De certa forma, sim.

– Seu líder também acha isso?

– Mas que saco! Essa consulta é sobre mim ou sobre ele? – Gritou o prego mostrando os caninos inferiores.

Passaram-se alguns instantes que pareceram horas para o macaco enquanto sua expressão agressiva dava lugar a um beicinho de tristeza.

– Não, ele não me valoriza. – Bingo. A analista acertou na mosca.

– Sr. Cebus, é comum que animais sociais ousem agredir quando eles esperam construir uma reputação. Também é comum que macacos sejam agressivos quando sabem que podem contar com o apoio do bando, mesmo que haja mais oponentes. Essa sua violência é só vontade de ser notado, respeitado e recebido pelo grupo. Mas existem outras formas que não colocar seu bando em risco toda vez que escuta um grupo rival.

– É, eu sei. Acho que devo desculpas ao meu bando e ao seu secretário. – Respondeu o macaquinho cabisbaixo.

A presença da doutora entre o cliente e seu secretário era quase uma escolta. Ela observou o cliente e seu líder seguindo até o elevador certa de que tinha feito seu melhor, mas preocupada com o prego. Ser terapeuta não é fácil.
ResearchBlogging.org

Meunier, H., Molina-Vila, P., & Perry, S. (2012). Participation in group defence: proximate factors affecting male behaviour in wild white-faced capuchins Animal Behaviour, 83 (3), 621-628 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.12.001

A fêmea no poder V

Ao chegarmos ao final da primeira semana de fêmea no poder do Brasil não poderia deixar de falar da sociedade matriarcal do bonobo, Pan paniscus. Na árvore da vida o ramo que dá origem a Homo sapiens se separou mais recentemente de um ramo que originou duas espécies: os chimpanzés (Pan troglodytes) e os bonobos. Ambos não poderiam ser mais diferentes entre si em termos da lida com o poder. No entanto, são igualmente aparentados a nós. Aparentemente o surgimento do Rio Congo na África há 1,5 milhão de anos separou duas populações do ancestral Pan, originando ao norte do rio os chimpanzés e ao sul os bonobos. Surpreendente é saber que estes nossos primos tão próximos estão altamente ameaçados de extinção pela caça e desmatamento.

 

Nossos parentes mais próximos

Fonte: utdallas.edu

A maior sumidade mundial em comportamento de bonobos é o primatologista Frans de Waal. Ele afirmou em seu livro “Eu, primata”, embora não sem uma enxurrada de críticas, que bonobos são altruístas, pacientes, gentis, sensíveis, têm empatia e compaixão. As críticas vêm da dificuldade de imprimir sentimentos humanos a espécies não-humanas, entre outras. Fato é que bonobos nunca foram vistos agredindo seus iguais até a morte, comportamento comum entre os chimpanzés segundo as décadas de observação cuidadosa de Jane Goodall nesta espécie. A falta de trabalhos sobre bonobos em seu habitat natural pode fazer com que agressões letais ainda sejam descritas, mas sua natureza mais pacífica é evidente.

Analisando-se a árvore de nossos parentes viventes mais próximos temos uma gama de opções as quais só me resta desejar que a presidenta Dilma convirja com o primo bonobo. Orangotangos são profundamente solitários, já dizia Drummond, e machos adultos são frequentemente reconhecidos pelo conjunto de cicatrizes faciais que têm em decorrência de seus inúmeros combates. Gorilas formam haréns e intimidam rivais com o tradicional tamborilar dos punhos no peito, à fêmea não resta muita expressão senão cuidar da prole e satisfazer o macho durante o cio. Chimpanzés matam indivíduos solitários que invadam seu território e até filhotes de fêmeas inferiores na hierarquia podem ser mortos. Já o bonobo resolve seus conflitos com sexo! Um indivíduo passa um longo tempo longe? Na volta todos o recebem com sexo. Dois irmãos brigam? As pazes se fazem com sexo. Um intruso aparece? Seu reconhecimento pelo bando é feito através de sexo. Uma orgia, mas uma orgia pacífica bem ao estilo flower power dos anos 60.

 

Me lembrou a célebre fotografia de Alfred Eisenstaedt ao fim da 2a guerra

Fonte: http://www.dlwaldron.com/bonobos.html

Antropomorfismo e romantismo que seja. A série toda foi cheia de romantismos. Mas é esse altruísmo, gentileza, paciência, sensibilidade, compaixão e afeto que eu espero da líder que o Brasil elegeu e deu poder.