Na Patagónia – III (continua)

A rotina matinal, após o pequeno-almoço, consistia em efectuarmos o trajecto que nos separava da base do Serro Portezuelo no Unimog- os cerca de 5km moía-nos o corpo logo pela manhã.
Chegados, separávamo-nos em grupos de três ou quatro e procedíamos à selecção das áreas a serem “batidas”. Cada grupo ficava com um rádio walkie-talkie, que nos permitia comunicar achados importantes ou criar uma espécie de banda-da-amizade paleontológica.
Iniciávamos a caminhada diária (cerca de 10 kms) subindo e descendo imenso, sempre a olhar e a ver. Dirigíamo-nos aos afloramentos rochosos potencialmente fossilíferos e aí chegados apurávamos os “sentidos” paleontológicos.
Tal como a história das migalhas deixadas pelos meninos para não se perderem na floresta, assim foi a minha primeira descoberta. Seguindo fragmentos de osso por uma encosta acima “dei” com o meu primeiro vestígio de vida mesozóica na Patagónia – uma tíbia (osso da perna) de saurópode. Uma mescla de emoções à mistura com todo o peso de racionalidade científica invade-me.
Iniciei os trabalhos de limpeza, escavação e consolidação do material, sem “provocar” as hostes pelo rádio. Tinha encontrado o meu primeiro osso na Patagónia e logo de saurópode!
Para almoçar reuníamo-nos, normalmente, em depressões do terreno ou ribeiros secos, procurando abrigo do sol abrasador. Partilhávamos sanduíches, fruta e água e trocavam-se histórias de escavações passadas. Pude conhecer melhor Alberto Garrido, geólogo do Museo Carmen Funes. Conhecia-o de várias publicações, entre as quais algumas relativas a Auca Mahuida – jazida de ovos e embriões de saurópodes descobertas em meados dos anos 90. Tem a mesma idade que eu e já percorreu bastantes pontos do globo, fazendo cartografia geológica. Impressionou-me o relato da sua primeira saída como geólogo profissional. Em 1996 foi-lhe atribuído, e a mais dez geólogos, o trabalho de cartografar a geologia de parte da Serra de Aconcágua – a maior elevação da América do Sul. Durante a viagem para a base da serra, um dos veículos despistou-se tendo falecido metade dos geólogos. Contava-me Alberto que, de uma forma aparentemente natural, comunicaram aos familiares o sucedido, procederam às exéquias dos mortos e alguns dias depois retomaram o trabalho geológico (com metade dos especialistas). Aquela história pareceu-me absolutamente reveladora de um espírito duro e capaz de grandes sacrifícios. Trabalhar na Aconcágua é uma tarefa fisicamente desgastante (a mais de 5000 m de altitude) mas fazê-lo após a morte de vários companheiros parece-me quase humanamente insuportável. Fizeram-no, conta Alberto Garrido, como uma homenagem aos mortos e para espantar os seus medos e fantasmas. Tinha sido a primeira das suas três expedições a Aconcágua.
Pelas 17h30 chegávamos ao local onde tínhamos deixado o Unimog e enquanto esperávamos pelos mais atrasados dava-se início a “cerimónia” do Mate.
Neste dia o meu grupo encontrou mais fragmentos de ossos de dinossáurio e de tartarugas.

P.S. 3ª foto – Vista do Serro Portezuelo; 4ª foto – Xavier e Alberto Garrido tomando Mate.

(Continua)

Na Patagónia – I (continua)

(Num momento de enorme trabalho na tese, e em que me encontro num vai-não-vai para suspender o Ciência Ao Natural, publico, em várias partes, um resumo do trabalho de campo efectuado na Patagónia argentina, em 2005. Recordei-me deste diário devido à estreia – nos EUA – do documentário Dinosaurs 3D: Giants of Patagonia. Este trabalho foi efectuado na província de Neuquén. em 2004 já havíamos estado na províncias de Chubut e Rio Negro)

Sur o no Sur” (Sul ou não Sul) Kevin Johansen

Chegámos a Plaza Huincul depois de mais de 24 horas de viagem. A cidade, num sábado à tarde de calor, parecia deserta. Lembrava as cidades de um México cinematográfico – paradas à espera de algo que nunca acontece.
A equipa tinha-se instalado na base do Serro Portezuelo havia dois dias e enquanto esperávamos que nos viessem buscar procurámos um sítio onde comer. As horas não eram as mais adequadas – estava calor e tudo fechado.
Quando a noite já tinha caído apareceu um dos membros da equipa num Chevrolet antigo. Era Sérgio Cocca, do Museo Carmen Funes.
Partímos e após vários quilómetros de asfalto entrámos numa picada de terra onde as últimas luzes deram lugar à enormidade do céu patagónico. Procurava uma referência familiar nalguma constelação, mas tinhamos cruzado o equador!
O caminho ia-se complicando até que, num acesso apertado e cortado num dos lados por uma escarpa com cerca de 3m de altura, o veículo inclinou de tal forma que nos encolhemos uns contra os outros. Não subia. Sérgio, circunspecto até à exaustão (uma maneira muito própria de ser patagónico, como viemos depois a perceber) permanecia silencioso. Vanda e eu igualmente – o medo dá-nos por vezes para o silêncio, para não perturbar. Tentámos de novo mas não avançávamos. Parecia que escorregava. Sérgio finalmente disse algo: “Se queda!“. Pensámos: “mas fica o quê?”. No dia seguinte viríamos resgatá-lo.
Descarregámos as mochilas e começámos a caminhar. Apareceram depois, no meio da escuridão, parte do resto da equipa que pensaram ter havido um problema. Entre eles estava Rodolfo Coria, que nos convidou para esta “aventura”.
Caminhámos alguns quilómetros até que vislumbrámos luzes e o resto da equipa. Estavam numa depressão do terreno à volta de uma fogueira ainda sem jantar, à nossa espera. Levaram-nos depois às nossas “carpas” (tendas). Iria partilhar a minha com um jovem investigador do Museo de Cinco Saltos (cerca de 150 km de Plaza Huincul), Ignacio Cerda ou Nacho.
Deitei-me sem ainda ter intuído verdadeiramente onde estava…
Cerca das três da manhã, por motivos fisiológicos tive que deixar a tenda. Mal saí fui de novo “assaltado” pela enormidade do céu. Senti-me de uma pequenez extrema… Só pela vista deste céu a terrível viagem já havia valido a pena.
Agora havia que trabalhar…

(continua)