Beatas no Ninho

Embora o título possa parecer um pouco reles, o teor deste texto é tudo menos provocador.
Bem, talvez o seja para alguns seres vivos.
As beatas de que falamos são as pontas dos cigarros depois de fumados ou, em português do Brasil, as bitucas ou guimbas de cigarro.
animals,nature-214cf02b3e5291e0ec0b6c33eea85cad_hMas porquê falar da terminologia de um produto tão nocivo à saúde e, pior, misturá-lo com ninhos?
É que por vezes a natureza dá voltas por onde menos se espera. Neste caso, verificou-se que algumas aves da cidade do México utilizam as beatas de cigarros na construção dos seus ninhos.
O comportamento foi observado e avaliado por investigadores da Universidad Nacional Autónoma de México, que utilizaram um procedimento experimental para comprovarem a influência das guimbas de cigarro sobre parasitas que atacam as crias de aves.

Os cientistas verificaram que ninhos com pontas de cigarros fumados apresentavam menos parasitas externos do que aqueles construídos com pontas de cigarros não fumados.
Bem, nada de especial, escarnecerão os mais radicais, acrescentando que o tabaco é tão mau que nem os parasitas o aguentam.
cigarette-butt-bird_Víctor ArgaezOs investigadores verificaram que as aves que utilizam as beatas nos seus ninhos, pardais (Passer domesticus) e a espécie de tentilhão Carpodacus mexicanus, o poderão fazer como recurso a um insecticida natural, já que as pontas dos cigarros preservam quantidades de nicotina e outras substâncias químicas.
Um amigo meu inglês já me havia descrito que infusões frias de beatas de cigarros quando vertidas nos vasos de plantas ornamentais as tornam mais saudáveis. Ou assim diz ele.
Estes investigadores não descartaram a hipótese de que as aves utilizem as beatas como um revestimento térmico para os ninhos, uma vez que estas têm celulose. Tão pouco afastam que as vantagens de as aves utilizarem a nicotina como desparasitante sejam anuladas pelos efeitos tóxicos dos químicos tabágicos.
art-016Ainda que não totalmente esclarecidos, os autores propõem duas hipóteses para o comportamento das aves: as substâncias químicas presentes nas pontas de cigarro poderão estimular o sistema imunitário das crias e, assim, favorecer as suas hipóteses de sobrevivência. A segunda hipótese aponta para que os químicos presentes nas bitucas de cigarros possam ter um papel mais directo, evidente e já referido: as beatas seriam um insecticida natural, que desinfectaria os ninhos de parasitas externos.

Esquecendo as infusões de nicotina e desejando que as hipóteses levantadas sejam testadas, o que as aves urbanas parecem ter descoberto é a reutilização do arsenal químico dos cigarros a favor das suas crias.
Ao contrário do que escreveu Tchekov, estas aves mexicanas descobriram os benefícios do tabaco.

Aparentemente.

 

ResearchBlogging.orgReferências:

Suárez-Rodríguez M, López-Rull I, & Macías Garcia C (2012). Incorporation of cigarette butts into nests reduces nest ectoparasite load in urban birds: new ingredients for an old recipe? Biology letters, 9 (1) PMID: 23221874

Imagens:

1 – daqui

2 – de Vitor Argaez – daqui

3 – daqui

 (PUBLICADO NO JORNAL SUL INFORMAÇÃO)

Dinossauros e as Aves

ResearchBlogging.orgContinuação de Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos (2)
Desde a descoberta, em 1861, do Archaeopteryx lithographica, animal que apresentava características comuns às aves e aos répteis, os paleontólogos percorreram uma verdadeira cruzada científica para provar que as aves descendiam dos dinossauros. O Archaeopteryx apresentava verdadeiras asas e penas, o que o classificava como ave, mas, simultaneamente, podia-se observar que as suas asas apresentavam garras e o seu bico tinha uma série de dentes.
A partir de meados da década de 80 do século passado, várias descobertas têm completado o traArchaeopteryx (Large).jpgjecto de parentesco entre aves e dinossauros. A maioria dessas descobertas foi feita em jazidas chinesas, mas não só. Contudo, antes de apresentar estas novas “contratações” é importante referir que tanto o Archaeopteryx, como a maioria dos exemplares chineses, procedem de um tipo especial de jazida designada, a partir do alemão, de Konservat-Lagerstatten.
Estas jazidas, pelas suas características geológicas, apresentam a propriedade de preservar em detalhe estruturas frágeis como, por exemplo, asas de insecto, pêlos de mamíferos e, importante para se perceber a evolução das aves, também as penas e os seus ossos frágeis. Se o Archaeopteryx procedia de um Konservat-Lagerstatten da Baviera alemã, a maioria das preciosidades paleontológicas que foram descobertas apenas a partir de 1984, são oriundas das jazidas de Liaoning, no nordeste da China [8].
500px-Archiesizeall1.svg.pngOs paleontólogos de vertebrados costumam afirmar, em jeito de brincadeira, que podemos esperar quase tudo de Liaoning. A inveja salutar subjacente a este comentário não minimiza, contudo, a realidade científica excepcional que os achados de Liaoning representam, tendo estes servido para comprovar quase todas as etapas evolutivas dos dinossauros para as aves, numa realidade científica sem precedentes.

Confuciusornis
, Changchengornis, Eoconfuciusornis ou Sinornis são algumas das espécies de aves primitivas que foram descobertas nas jazidas chinesas, podendo as morfologias corporais das aves actuais ser observadas nestes exemplares fósseis.
Para além das penas, outras características anatómicas, como um bico córneo, banal nas aves da actualidade, pode ser observada pela primeira vez no grupo de aves primitivas a que pertencem Confuciusornis ou Eoconfuciusornis, espécies que viveram num intervalo temporal que se estendeu entre os 120 e os 131 milhões de anos.
A presença de penas assimétricas, características de um voo activo, já pode ser observada nalgumas aves primitivas de Liaoning.
Confuciusornis sanctus and Eoconfuciusornis (Large).jpg
Apesar da enorme diversidade de aves primitivas provenientes da China, outros países têm contribuído para esta saga de conhecimento da transição evolutiva dinossauros-aves. Na jazida de Las Hoyas, em Cuenca, Espanha, foram descobertos os vestígios que permitiram classificar outra ave primitiva – Iberomesornis romerali [9].
Esta espécie contribuiu para a compreensão dos mecanismos de voo das primeiras aves, já que é uma ave que apresenta o que se designa por fúrcula, estrutura óssea que permite que os membros anteriores das aves executem os movimentos de voo semelhantes aos das aves modernas. Iberomesornis apresentava também as vértebras caudais distais fundidas, tal como as aves modernas.
Mas outros exemplares de aves primitivas foram descobertos e descritos pela equipa de paleontólogos da Universidad Autónoma de Madrid, como Concornis lacustris e Eoalulavis hoyasi.
Recentemente, Las Hoyas revelou outra das etapas evolutivas, desta vez não das aves, mas ainda dos dinossauros não-avianos, com a apresentação de Concavenator corcovatus, o mais antigo dinossauro com evidências de penas na sua anatomia [10].
Se os exemplos de aves primitivas apresentados e respectiva sequência de características anatómicas próximas às modernas atestam parte do percurso evolutivo destes animais, também é possível verificar nos dinossauros ditos não-avianos algumas particularidades anatómicas comuns à linhagem aviana, das quais saliento a presença de penas em várias espécies de dinossauros.
A maioria dos não-especialistas apontaria a presença de penas como condição suficiente para a classificação de um animal como ave, já que esta estrutura não é encontrada actualmente em mais nenhum grupo zoológico. Contudo, o registo fóssil de penas em grupos de dinossauros não-avianos tem vindo a crescer, quer na quantidade de dinossauros descritos, quer na sua antiguidade.
Dinossauros como Sinosauropteryx, Shuvuuia, Beipiaosaurus, Caudipteryx, Sinornithosaurus ou Microraptor apresentavam penas, de diversos tipos e em zonas corporais distintas.
Microraptor, dinossauro datado de há 128 milhões de anos, revelava penas não só nos membros anteriores, mas também nos membros posteriores, avançando alguns paleontólogos que este dinossauro poderia ter apresentado um padrão de voo planado semelhante ao observado em alguns mamíferos planadores actuais.
No próximo post abordarei o aparecimento do voo e das penas.
Para já um vídeo sobre o Archaeopteryx que apesar de algumas pequenas imprecisões serve para introduzir este importante exemplar da história evolutiva das Aves aos mais novos

Referências:
[8] Hou, L. & Liu, Z. 1984. A new fossil bird from Lower Cretaceous of Gansu and early evolution of birds. Scientific Sinica (Series B) 27(12): 1296-1302.
[9] Sanz, J., Bonapartet, J., & Lacasa, A. (1988). Unusual Early Cretaceous birds from Spain Nature, 331 (6155), 433-435 DOI: 10.1038/331433a0
[10] Ortega F, Escaso F, & Sanz JL (2010). A bizarre, humped Carcharodontosauria (Theropoda) from the lower cretaceous of Spain. Nature, 467 (7312), 203-6 PMID: 20829793
Imagens:
1Archaeopteryx lithographica a) vista lateral do esqueleto; b, c) crâneo em vista lateral; d) mandíbula inferior direita com dentes; e) penas.
Imagem compósita adaptada de figura 9.2. de Benton, M. J. (2004) Vertebrate Palaeontology, 3rd Edition ISBN: 978-0-632-05637-8 e de figura 10.5 de Fastovsky, D. E. and Weishampel, D. B. (2009) Dinosaurs: A Concise Natural History. Cambridge University Press ISBN 978-0-521-71902-5.
2– os vários exemplares de Archaeopteryx comparados com o ser humano. Daqui.
3– a) Esqueleto de Confuciusornis sanctus, reconstituição (canto inferior esquerdo) e detalhe de pena caudal (canto superior direito). Imagem compósita adaptada de Chiappe et al. 1999. b) Crâneo e mandíbula de Eoconfuciusornis zhengi. Imagem de Zhang et al. 2008.

Aprender de Ouvido

Em crianças, balbuciamos o que ouvimos, esperando que nos escutem. Praticamos futuros discursos a partir de ouvidas conversas, trauteando a música de palavras que desconhecemos, cobertos por emprestadas capas sonoras.
Vemos os nossos pais também com os ouvidos, numa aprendizagem que é conhecida por todos, enfim.
Mas não somos os únicos a fazê-lo.
Cheryl Warrick1.jpgAs aves canoras aprendem igualmente com um adulto a arte que as irá transformar em verdadeiras bandas-sonoras ambulantes. Aprendem de ouvido, deduzo.
O que agora revelam os cientistas é a descoberta de uma zona cerebral responsável pela memorização/aprendizagem do canto pelas aves.
ResearchBlogging.orgA novidade científica é importante para a poesia ou para a compreensão dos processos biológicos dos animais que povoam os nossos céus, arrisco. Para os colegas cientistas, o essencial desta descoberta reside em que poderá contribuir para a compreensão dos processos de aprendizagem da linguagem no ser humano. Tal como nós, nas aves canoras as zonas da memória auditiva e da produção sonora estão localizadas em áreas distintas dos seus cérebros. A memória auditiva, por vezes negligenciada tanto no nosso imaginário, como sobretudo em áreas da pedagogia, tem um papel vital na aprendizagem da produção oral.
Memorizar o que se ouve é fundamental na aquisição e desenvolvimento da linguagem pelas crianças. Há que ouvir, para depois falar, sempre ouvi dizer… as aves que o comprovem, canto eu de galo.
As memórias sonoras parecem ser assim responsáveis pela iniciação musical das divas que voam nos campos.
Numa das suas saborosas crónicas, Fernando Alves citava um destes dias um provérbio chinês: “Um passarinho não canta porque tem uma resposta. Canta porque tem uma canção.”
Cheryl Warrick.jpgE de onde lhes vem a canção que cantam?
Já vimos que ouvindo um mestre, mas é preciso algo mais que saber ouvir.
O cérebro das jovens aves revive, durante a noite, o canto do progenitor, sendo activadas as zonas cerebrais da memória sonora. A activação neuronal nocturna implica, assim, a memória auditiva.
Para cantar, a jovem ave sonha com o canto do mestre, penso eu.
Sem solfejo ou conservatório, as aves canoras aprendem.
Aprendem de ouvido.
Nos dias alcatifados de sons em que vivemos, estará a arte de aprender ouvindo próxima do silêncio total?
Referência:
Gobes, S., Zandbergen, M., & Bolhuis, J. (2010). Memory in the making: localized brain activation related to song learning in young songbirds Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 277 (1698), 3343-3351 DOI: 10.1098/rspb.2010.0870
Imagens: Cheryl Warrick
Publicado no jornal barlavento de 20 de Janeiro de 2011

O Chapeleiro Louco e as Aves Desafinadas

P04043_9.jpg – Naquela direcção – disse o Gato, levantando a pata direita – vive um Chapeleiro, e naquela, agitando a outra pata, mora uma Lebre de Março. Visita o que quiseres, ambos são loucos.
– Mas eu não quero estar ao pé de gente louca – respondeu Alice.
– Oh, não podes evitá-lo – disse o Gato. – Aqui todos são loucos. Eu sou louco. Tu és louca.

Que têm em comum o Chapeleiro Louco e o canto das aves?
A resposta tortuosa pode ser…o mercúrio.
Não Mercúrio, o deus dos comerciantes, da eloquência e dos ladrões, mas antes o elemento químico.
Vamos ver se consigo resumir.
Há centenas de anos que tecidos de origem animal são utilizados na manufactura de chapéus. No século XIX, a pele mais apetecível para o fabrico de chapéus era a do castor, mas a caça a este animal implicou a sua escassez, o que levou à utilização de peles de coelho.
As peles necessitam de um amaciamento prévio, sendo utilizados produtos químicos, normalmente compostos de mercúrio, como o nitrato de mercúrio (2; p.52).
Não irei descrever os processos da manufactura de chapéus, apenas refiro que o carácter rudimentar da tecnologia química e das normas de segurança laboral envolvidas, colocava os chapeleiros em sérios riscos de contaminação por mercúrio, originando o hidrargirismo (nome da contaminação).
309goya.jpgTremores físicos característicos, bem como várias patologias neurológicas designadas colectivamente de eretismo, são algumas das alterações provocadas pela intoxicação crónica por mercúrio. Timidez e irritabilidade extremas, alucinações e incapacidade de pensar correctamente, são também comportamentos típicos destas intoxicações.
Este quadro clínico, muito comum no século passado entre os chapeleiros, contribuiu para a génese da expressão “Mad as a hatter” (louco como um chapeleiro).
As alterações neurológicas por mercúrio poderão igualmente ter despertado o espírito criativo de Lewis Carroll na criação da personagem do Chapeleiro Louco, presente no intemporal “Alice No País das Maravilhas” (3).
A literatura, desta vez, não parece ter sido maior que a Vida, antes se tendo inspirado num quotidiano tão pouco poético.

O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Em que dia do mês estamos? – perguntou, voltando-se para Alice.
Tirara o relógio e olhava-o, inquieto, abanando-o de vez em quando e levando-o ao ouvido.
Alice pensou e depois respondeu:
– A quatro.
– Dois dias atrasado! – disse o Chapeleiro com um suspiro.
– Bem te disse que a manteiga não lhe faria bem! – acrescentou, lançando à Lebre de Março um olhar furibundo.
– Mas era manteiga da melhor qualidade! – respondeu a Lebre de Março com brandura.
– Sim, mas também devem ter entrado migalhas de pão lá para dentro – resmungou o Chapeleiro. – Não devias ter usado a faca do pão.

Aves Desafinadas
As contaminações ambientais podem influenciar directa ou indirectamente muitas funções biológicas dos seres vivos. Entre as consequências temos, por exemplo, alterações dos ciclos reprodutivos, desenvolvimento de tumores ou até o canto de algumas aves.
Investigadores americanos avaliaram o chilrear de três espécies de aves, a carriça da Carolina (Thryothorus ludovicianus), da curruíra (Troglodytes aedon) e do pardal-cantor (Melospiza melodia), numa área contaminada por mercúrio – South River, na Virgínia.

Esta área industrial foi contaminada durante mais de 30 anos, sendo os níveis de mercúrio no sangue e nas penas das aves desta região muito superiores ao das aves de áreas circundantes.
Este grupo de pássaros adquire as suas capacidades sonoras de “ouvido”, ou seja por intermédio da audição de outras aves. Este facto exclui que diferentes performances sonoras possam ser de origem genética, sendo antes um reflexo de aprendizagens distintas. Desta forma, podem ser avaliadas as implicações ambientais nas alterações dos trinados das aves.
Apesar dos resultados estarem condicionados pela diminuta amostra (veja-se, por exemplo a recta de regressão), este trabalho indicia que as aves em terrenos contaminados por mercúrio apresentam uma menor diversidade de sons emitidos do que as mesmas aves de terrenos não-contaminados.
O mercúrio parece ter assim um papel uniformizante de uma característica que tanto apreciamos nas aves: o canto.
Mas porquê? Estariam estes pássaros a enlouquecer, como os chapeleiros do século XIX?
regressão.jpgOs resultados apoiam outros autores que já anteriormente haviam demonstrado que aves vivendo próximo de siderurgias apresentavam transtornos semelhantes, isto é, os seus cantos eram menos diversificados do que aves vivendo em áreas não-contaminadas.
Poderemos pensar que se vivêssemos perto de uma siderurgia também teríamos pouca vontade de cantar….é verdade.
Mas o click para este problema musical está no facto de que as contaminações por metais, como por exemplo o mercúrio, alteram a capacidade auditiva das aves juvenis, impedindo-as de escutar na plenitude as “lições” musicais do seus pais.
Dito de outra forma: a cantoria das aves de South River tornou-se minimalista, menos diversificada, tanto no nível de intensidade, como na variedade de tons emitidos, devido às aves juvenis ouvirem mal os seus pais – os pais de adolescentes sabem do que estou a falar…
Referências:
ResearchBlogging.org
1 Hallinger, K., Zabransky, D., Kazmer, K., & Cristol, D. (2010). Birdsong Differs between Mercury-polluted and Reference Sites The Auk, 127 (1), 156-161 DOI: 10.1525/auk.2009.09058
2Jacob, V. (2005). The Elements of Murder. A History of Poison. Von John Emsley. Angewandte Chemie International Edition, 44 (45), 7332-7332 DOI: 10.1002/anie.200585343
3Waldron HA (1983). Did the Mad Hatter have mercury poisoning? British medical journal (Clinical research ed.), 287 (6409) PMID: 6418283
4 – excertos de “Alice no País das Maravilhas”
Imagens:
Peter Blake `For instance now, now there’s the King’s messenger’ , 1970
Francisco de Goya Y Lucientes, The Yard of a Madhouse, 1794 – daqui
Thryothorus ludovicianus: daqui
Gráfico – de 1.

Baleias com patas, a Origem das Espécies e aves fósseis

Charles Darwin - Evolution(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 24/11/2005)

Hoje comemoram-se 146 anos de existência de um livro que teve fortes repercussões pelas suas propostas de Evolução pelo mecanismo de Selecção Natural. A 24 de Novembro de 1859, Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies” com uma primeira edição de 1250 exemplares que esgotou no seu dia de lançamento.
Darwin defendia que o meio ambiente e as relações entre os próprios seres vivos exercem uma selecção que favorece os mais aptos enquanto os menos dotados são eliminados, transmitindo-se à geração seguinte as diferenças que facilitam aquela sobrevivência. Ao longo das gerações, essas características acentuam-se e geram uma nova espécie.
Darwin foi convidado em 1831 a participar numa volta ao mundo no navio Beagle promovida pela marinha inglesa. A expedição – que durou cinco anos – tinha o objectivo de melhorar e completar dados cartográficos. Esta viagem foi decisiva para fundamentar as suas teorias evolutivas.
América do Sul, Austrália e Nova Zelândia foram alguns dos locais em que Beagle efectuou paragens. Surpreendeu-se com o grande número de espécies de plantas e de animais que, até então, eram desconhecidos. O que lhe chamou mais atenção foram a enorme diversidade de tentilhões, que só conheceu no arquipélago das Galápagos.
Early_birds_dinosaursO registo fóssil

Quando Darwin propôs que a Evolução se dava pela Selecção Natural, o registo fóssil oferecia ainda poucas evidências que apoiassem as suas ideias.
Actualmente os paleontólogos contam com mais informação fossilífera do que aquela que dispunha Darwin. Este dedicou dois capítulos da sua “Origem das Espécies” à imperfeição do registo fóssil, provavelmente porque constatava que estaria aí um dos pontos mais fracos da sua argumentação. Dois anos depois da publicação do seu livro, o primeiro exemplar de Archaeopteryx foi descoberto na Baviera, constituindo um dos “elos perdidos” entre as aves e os répteis.
O registo fóssil está longe de ser perfeito – faltam assim muitos elementos de transição na história evolutiva dos seres vivos. Este é um dos argumentos com que os Criacionistas (opositores à Teoria da Evolução, populares sobretudo nos EUA) se valem no seu ataque a Darwin.

As últimas estimativas apontam para que apenas 1% de todas as espécies animais e vegetais que habitaram o nosso planeta ficaram preservadas como fósseis. Razões para esta escassez de informação fóssil são várias, mas podemos apontar que as condições físicas necessárias à preservação de um ser vivo sob a forma de fóssil são muito raras. Grande parte dos seres vivos é constituída por partes moles; este facto contribui igualmente para que o registo fóssil seja desprovido da maioria dos “actores” da vida sobre a Terra.
Mas existem numerosos exemplos que reflectem as etapas de transição entre diversos grupos de organismos, corroborando Darwin.
Para além do já referido Archaeopteryx (descoberto em sedimentos da Baviera com 150 milhões de anos) foi descoberta nos últimos 20 anos toda uma panóplia de formas de transição entre os dinossáurios carnívoros (semelhantes ao Velociraptor) e as actuais aves: Confuciusornis (China, primeira evidência de um bico sem dentes); Iberomesornis (Espanha, apresentava uma estrutura óssea semelhante às aves actuais que permitia inserir a musculatura específica para o voo), entre inúmeros outros exemplos.
Whales evolutionAs patas das Baleias

Outro dos exemplos que se podem apresentar para ilustrar as transições evolutivas sofridas pelos organismos é a evolução das baleias.
A maioria das pessoas tem, pelo menos a noção, de que a vida terrestre surgiu a partir de vertebrados que deixaram o ambiente aquático. Todas as formas de animais que ocuparam e ocupam um ambiente terrestre, descendem desses primeiros colonizadores. O que a maioria das pessoas não sabe é que o grupo de animais a que pertencem as actuais baleias descendem de um grupo que “decidiu” voltar a ambientes aquáticos, donde tinham saído há mais 250 milhões de anos.
Em 1983 foram descobertos no Paquistão fósseis de um animal que tinha vivido há cerca de 52 milhões de anos. Este animal, Pakicetus, apresentava ainda corpo com forma para a vida terrestre (membros com capacidade de locomoção em terra) mas tinha um crâneo e dentes com características típicas dos ancestrais dos actuais baleias. Onze anos mais tarde e igualmente no Paquistão foi descoberto o Ambulocetus natans (literalmente baleia caminhante que nada). O Ambulocetus tinha o tamanho de um leão-marinho e apresentava as patas (sim esta baleia ancestral tinha patas!) com capacidades para deslocação em ambiente terrestre. Igualmente exibia os seus pés e mãos com capacidade natatória – ou seja este animal possuía capacidades para se deslocar em ambiente terrestre e aquático.
Aparentemente o Ambulocetus nadava como uma lontra, com movimentos para cima e para baixo (dados da morfologia da sua coluna vertebral atestam-no).
Em 1995 um terceiro elemento de transição foi descoberto – o Dalanistes. Apresentava os membros mais curtos que Ambulocetus, cauda e crâneo mais alongados ou seja mais semelhantes às actuais baleias.
Actualmente mais de uma dúzia de fósseis ilustrativos das transições evolutivas dos cetáceos (grupo a que pertencem as baleias) já foram descobertos.
Complementarmente análises de ADN mitocondrial aos actuais representantes dos cetáceos permitem apontar que estes pertencem ao grupo dos artiodáctilos, mais concretamente são parentes próximos dos hipopótamos.
No dia de aniversário da A Origem das Espécies, que fez com que o Homem descesse de mais um dos seus inúmeros pedestais, podemos afirmar que o registo fóssil é mais um dos motivos de orgulho para Darwin.
Ao contrário do que receava, o trabalho de investigação paleontológico nos últimos 100 anos, permitiu que o registo fóssil seja mais uma prova de que Darwin não estava e não está errado.

Imagem – Werner Horvath: “Charles Robert Darwin – Evolution”. Oil on canvas