O Panda Catalão
É uma típica imagem chinesa aquela que agora vem da Catalunha – o panda.
Quase todas as crianças reconhecem este animal e uma parte delas sabe que este mamífero vive actualmente na China. Talvez a maioria dos adultos desconhecerá é que o mais antigo panda gigante viveu há cerca de 11 milhões anos na península ibérica.
Os vestígios fossilizados de um antepassado do panda gigante foram encontrados numa jazida fossilífera de Saragoça, designada Nombrevilla 2.
O Kretzoiarctos beatrix passa a ser o mais antigo representante da subfamília Ailuropodinae, grupo a que pertencem as formas extintas e as formas actuais do panda gigante, tendo os sedimentos onde foi encontrado a idade de 11.6 milhões de anos.
Até esta descoberta, o mais antigo antepassado procedia do Miocénico chinês, com uma idades que variavam entre os 7 e os 8 milhões de anos. A descoberta das mandíbulas e dentes fossilizadas, levada a cabo por paleontólogos do Instituto Catalão de Paleontologia, faz recuar assim o retrato da evolução do panda gigante em três milhões de anos, ampliando igualmente a imagem da distribuição geográfica passada deste mais do que emblemático animal actualO panda gigante (Ailuropoda melanoleuca) constitui há muito motivo de debate científico pois de há muito que se discute a sua origem e a sua relação na família Ursoidea, sendo este posicionamento apoiado por dados moleculares que o remetem como grupo-irmão do ursos.
Esta nova espécie fóssil, o Kretzoiarctos beatrix [1], para além de representar o mais antigo antepassado do panda gigante, constitui também o mais antigo vestígio de um ursídeo na península ibérica.
Sobre a possibilidade deste antepassado ter coloração branca e preta típica dos seus descendentes, os paleontólogos não confirmam dado não haver material fossilizado que o permita inferir [2].
Os paleontólogos que estudaram este material referem ainda que na origem da extinção deste animal terão estados alterações ambientais com impacto direto nos ambientes em que este panda viveria – as florestas densas e húmidas terão sido substituídas por ambiente mais abertos e secos [2].
Há 11 milhões de anos, tal como hoje, o clima a condicionar de sobremaneira a existência das espécies…ainda assim, viva a panda catalão, viva!
(artigo publicado no jornal Sul Informação)
[1] Abella J, Alba DM, Robles JM, Valenciano A, Rotgers C, Carmona R, Montoya P, & Morales J (2012). Kretzoiarctos gen. nov., the Oldest Member of the Giant Panda Clade. PloS one, 7 (11) PMID: 23155439
[2] http://www.livescience.com/24788-oldest-panda-fossils.html
Imagens:
A – reconstituição de Kretzoiarctos beatrix ; daqui – SINC
B – restos encontrados de Kretzoiarctos beatrix; de [1]
C – distribuição actual e do passado recente do panda gigante (Ailuropoda melanoleuca); daqui – WWF
FRACASSO CHINÊS
“China reassures scientists not to fear failure
(Reuters) – China will tolerate experiment failures by its scientists to ease pressure, encourage innovation and cut the chances of fraud, a top official said on Thursday.”
Sempre pensei que o erro e o fracasso constituiam componentes fundamentais do “processo científico”.
Agora o governo chinês vem descansar os seus cientistas para que não temam o falhanço e o fracasso.
Esta desculpabilização institucional visa fomentar a “criatividade”, aliviar a enorme “pressão” bem como evitar a “fraude científica”.
Quando por lá trabalhei e contactei com diversas realidades de investigação paleontológica, verifiquei a enorme tensão produtiva em que viviam os meus colegas chineses.
Parecia-me que esse comportamento semi-obsessivo se devia mais ao carácter laborioso típico dos asiáticos do que, mais pragmaticamente, aos enormes “incentivos” financeiros concedidos pelo governo sempre que, por exemplo, uma nova espécie de dinossáurio é descoberta ou um paper na Nature é publicado.
Por respeito e pudor não avançarei valores.
Agora constato que não era nenhuma produtividade típica dos asiáticos.
A pressão oficial devia ser tanta que, oficialmente, tiveram que a conter.
Fonte da notícia – aqui
Na China – I
A “história” chinesa foi bastante complicada – ver post com outra das histórias.
O contacto inicial foi feito com Xu Xing do IVPP. Ele é responsável por mais 20 espécies novas de dinossáurios e publicou mais de 10 artigos na Nature.
Para além de me receber, propôs-me também iniciar trabalho de análise morfológica 3D de crâneos de Psittacosaurus, em conjunto com um aluno seu de doutoramento (foto).
Durante a primeira semana de estadia em Pequim, Dong Zhi-ming, um dos “pais” da Paleontologia de dinossáurios na China, encontrava-se em Pequim de visita. Falei com ele, contei-lhe o meu projecto e ele convidou-me para, passados 4 dias, nos encontrarmos no sul da China, em Lufeng. Comecei logo a tratar das coisas (arranjar avião pois Lufeng, na província de Yunnan, fica próximo da fronteira com o Vietname e do Laos) e a improvisar os meus planos iniciais.
Passados esses dias aterrava em Kunming onde tinha colaboradores de Dong Zhi-ming à minha espera, para uma viagem de carro de cerca de duas horas até Lufeng.
Estive cerca de uma semana trabalhando sobretudo em prossaurópodes, o mais famoso dos quais é o Lufengosaurus (do nome da cidade), mas também em diversos saurópodes, alguns dos quais ainda não descritos.
Fiz também prospecção no campo em conjunto com Dong Zhi-ming nas famosas jazidas do Triásico desta região.
Este investigador ficou tão impressionado com o meu trabalho que me propôs que regressasse para descrever novos materiais (provavelmente novas espécies, das centenas de ossos que eles têm em preparação), mas essa história fica para mais tarde…
Em Lufeng fui brindado com os manjares entomológicos que os meus colegas me tinham reservado – sou extremamente alérgico à picada de abelhas e vespas e quando me puseram à frente um prato de larvas e vespas adultas ia caindo para o lado!
Neste jantar, para além de Dong Zhi-ming e colaboradores, estavam também quatro colegas da Mongólia Interior, conhecidos, entre outras atributos, por serem resistentes aos efeitos do álcool. Para os chineses, quem aguenta bem a bebida é porque é bom líder, disseram-me.
Para além de convidado, era estrangeiro, e nisso os chineses são muito formais, de maneira que de 5 em 5 minutos levantava-se um chinês, fazia-me um brinde e bebíamos ambos um trago de aguardente de arroz. Como eles eram dez e eu o único convidado, tive que efectuar vários brindes com aguardente…
Dong Zhi-ming contou-me, no dia seguinte, que os colegas mongóis tinham ficado impressionados comigo porque nunca abandonei as boas maneiras nem alterei o tom de voz, e isso para eles é sinal de força interior. Não sei se é ou não, o certo é que nesse dia tinha uma certa dor de cabeça!
Lufeng é uma cidade muito pequena, mesmo para os standards chineses, semi-rural e onde quase nunca vão estrangeiros – é impressionante como estavam sempre a olhar para mim quando andava na rua…!
Recordo-me de sair um dia à noite e num restaurante (o mais próximo que se pode dizer daquele espaço…) onde entrei para me aventurar nas surpresas gastronómicas, estar vazio. Passada meia-hora, já quase não haviam mesas para chineses que apenas tinham dois objectivos: beber chá e mirar o ocidental que pensava em dinossáurios saurópodes, enquanto tentava adivinhar o que lhe tinham colocado no prato!
Foi também em Lufeng que ao sair de um riquexó motorizado (basicamente uma moto com uma cobertura atrás – foto) me deixaram à porta de uma pensão que não era a minha. Era de noite, não tinha o nome do sítio onde estava nem tão pouco sabia minimamente onde me encontrava. Para além de não esperar que alguém soubesse falar inglês, e o meu ultra-básico mandarim não dar para me safar daquela situação, foram uns minutos de completa impotência. Senti-me ao mesmo tempo como uma criança perdida no supermercado e como um adulto imbecil. Depois de ter recuperado a calma abordei o condutor do riquexó com as palavras “Kong long, kong long!” que significam “dinossáurio, dinossáurio”, uma das poucas que sei em mandarim.
Após o ter repetido várias vezes e o chinês ter recuperado das gargalhadas iniciais, lá deduziu que eu queria que ele me conduzisse ao Museu dos Dinossáurios.
É que a partir do Museu sabia eu o caminho!
Terminei a noite, com a cabeça de fora da caixa motorizada a gesticular “esquerdas e direitas” até ao meu hotel no sul da China.
Já andei por grande parte do mundo e nunca me tinha sentido tão “perdido” como naqueles cinco minutos…
Os Ossos do meu Ofício
Ao longo dos últimos anos parte do meu trabalho tem consistido em estudar as colecções de dinossáurios em diversos Museus de História Natural de vários países e continentes a fim de compreender a evolução daqueles animais.
Os objectos de estudo são assim ossos fossilizados que têm que ser observados, medidos, estudados, mexidos e remexidos.
Percorri uma parte substancial da China, desde Pequim às províncias de Chengdu e Yunnan. Neste última estive em Lufeng, uma pequeníssima cidade, para os standards chineses, com o objectivo de estudar os famosos exemplares do Triásico superior (há cerca de 200 milhões de anos).
As condições de trabalho não eram os habituais de forma que acabei digitalizar os exemplares em cima de uma mesa de pingue-pongue. Apesar do carácter pouco ortodoxo do equipamento, a estrutura funcionava tão bem como a melhor mesa de trabalho do Museu de História Natural de Nova Iorque!
Lá se foi a minha idealização da curiosidade científica da classe trabalhadora…
No início deste ano estive a estudar e digitalizar as colecções de dinossáurios do Museu de História Natural de Londres (MHNL).
Entre os exemplares estudados contavam-se alguns saurópodes procedentes das jazidas de Tendaguru, na actual Tanzânia. Já havia estudado parte destas colecções no Museu de História Natural de Berlim – o mais famoso representante daqueles dinossáurios é o Brachiosaurus, cujo úmero (osso que vai do obro ao cotovelo) tem mais de dois metros!
Foram os alemães nos anos 20 do séc. XX, em especial expedições lideradas por Janensch, os principais exploradores das jazidas da Tanzânia. Mas igualmente os ingleses, sensivelmente na mesma época, fizeram expedições paleontológicas naquela área.
Encontrava-me a preparar o digitalizador 3D para enfrentar um fémur de um Dicraeosaurus, na cave do Museu, quando entra a responsável (curadora) pelas colecções de répteis do museu londrino.
Para além do rotineiro discurso sobre as localizações e características do material diz-me:
“Os ossos para além de muito grandes são também radioactivos!”
Reparo agora que tinha entrado pelas colecções de contador Geiger na mão!
Esperava ver quase tudo menos um contador de radioactividade.
“Agora põe estas luvinhas para manusear o material.”
Já estava eu agarrado literalmente ao osso quando a curadora me repete “Tem que pôr as luvas!”
Calma, disse de mim para mim.
“Madam, eu fumo mais de dois maços de tabaco, não sou abstémico nem vegetariano, estive dois meses na China e em Berlim trabalhei com o mesmo tipo de ossos, vivo em Portugal e respectiva crise económica…acha que é este mísero osso em que vou trabalhar na próxima meia-hora que me vai matar?!!?”
Senti uma pequena alteração comportamental na sua habitual calma, mas nada de especial. Que nos outros museus ela não tem nada com isso mas que ali são as normas, disse-me ela.
“Então já que tenho que usar as luvas ao menos quero ver esse brinquedo do meu imaginário funcionar! Pode ser?!”
Suspiro (dela, claro).
Baixa-se, começa a medir o fémur, e tudo abaixo do nível recomendado pelos britânicos (já de si ridiculamente baixos, citando um paleontólogo amigo, “tem mais radioactividade um pacote de amendoins…”).
“Muito bem…então agora meça-me a mim!”, disse-lhe, do alto da minha chica-espertice.
A fleuma britânica viu-se neste momento pois pressenti que por dentro do seu ar esfíngico pensava:
“Mas porque raio o comité científico atribuiu uma bolsa a este tipo?”
Começa a medir-me e, das duas uma, ou estou carregadinho de radiação ou os ossos são tão radioactivos como um esquilo siberiano a comer um chupa-chups!
“Minha senhora, o meu caso está encerrado. Posso trabalhar e tirar as luvas?”
E assim fiz.
Obviamente que não critico, antes pelo contrário apoio, as medidas de segurança adoptadas no NHML.
Neste momento penso que não deveria ter tido aquela atitude mas por vezes acho que os meus ossos são mais fortes que o meu ofício.
Espero.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 26/4/2007)
Imagens: Luís Azevedo Rodrigues