Escuva terras, ou o drama de se chamar toupeira
Na terra do meu pai havia vários montes que sempre me intrigaram. Quando digo na terra, é mesmo na terra, essa que se lavra e suja os pés.
A outra, o sítio onde se cresce ou apenas se nasce, não importa para a história, apenas que era vizinha da de Aquilino.
Os montes de terra apareciam sem eu perceber como nem porquê. Surgiam nos lameiros, terrenos junto a cursos água, bons para erva fresca e sestas olhando vacas pastar.
Nos lameiros, aqui e ali, o verde era manchado de castanho, quais pintas em cara sardenta. O caos de cores alterava-me a ordem que tentava pôr em tudo: o lameiro era verde, ladeado pelo ribeiro, escuro pela sombra das árvores que aí se encostavam e, do outro lado, um outro verde, rasteiro, de um batatal.
E depois os montes castanhos.
Essas construções desordenadas, pequenos altos de terra, moeram-me o juízo durante os verões que passava nas Terras do Demo.
Um dos dias de Agosto, em brincadeiras com o Luciano, perguntei-lhe que raio era aquilo feito de terra, no meio dos lameiros.
“Escuva terras”, largou-me ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
“Ah…que era terra já eu sabia…”, avancei, tentando ver se o outro se explicava melhor.
“São uns ratos danados, esses bichos. Sempre a fuçar, a fuçar na terra. Depois dá nisto.”
“A maneira de dar cabo deles é cortar um bocado de plástico, enterrá-lo nesses montes com o gargalo para cima que o assobio do vento na garrafa dá logo cabo deles!”.
Toma e embrulha, faltou-lhe dizer.
Toupeiras.
E não deviam gostar que lhes assobiassem nas varandas, pensei eu.
Esta história foi assim mesmo, na sua maioria, e já lá vão mais de 30 anos.
Não tenho a certeza se seriam toupeiras europeias (Talpa europaea) as escuva terras que partilhavam o lameiro do meu pai, mas é bem provável.
As toupeiras são mamíferos que pertencem à ordem Talpidae sendo mais facilmente observáveis as suas construções do que elas próprias. Vivem a maioria da sua vida debaixo do solo, escavando e construindo túneis de forma solitária, e defendendo agressivamente o seu território à excepção da época de acasalamento. Nessa altura, os machos tentam literalmente interceptar os túneis construídos pelas fêmeas, iniciando-se então o acasalamento.
As patas anteriores, com grandes garras, permitem-lhes o seu modo de vida subterrâneo, alimentando-se sobretudo de insectos ou minhocas, o seu manjar predilecto.
A anatomia especial deste animal, nomeadamente a capacidade de articulação do úmero e o grande desenvolvimento muscular nesta zona, associado às enormes garras e um osso semelhante a um polegar, colocam este animal entre os grandes construtores zoológicos. A maioria da força das patas anteriores é exercida a partir do antebraço, rádio e cúbito, sendo também necessária a colaboração das patas posteriores para empurrarem a terra que vai sendo escavada.
As construções das toupeiras garantem-lhes alguma inimizade por parte dos agricultores que se esquecem que os túneis construídos pelas toupeiras aumentam não só o arejamento dos terrenos, como contribuem para uma melhor fertilização dos mesmos.
A capacidade física destes animais é extraordinária, tendo sido observado uma toupeira, com cerca de 80 gramas, construir quatro montes de terra com cerca de 15 quilos em apenas 90 minutos. Se fizéssemos a comparação para a nossa espécie, seria o equivalente a um ser humano de 70 quilos escavar 10000 quilos numa hora.
Não consigo deixar de imaginar estas bichezas a trabalharem para o Metro de Lisboa…
Imagens:
ARKive – http://www.arkive.org
Hall, B. K. (ed). 2007. Fins into Limbs: Evolution, Development, and Transformation. Chicago: University of Chicago Press, 433 pp.
Vídeo – ARKive
Esta é Nossa
O pouco que se fez muito no meu sentir Portugal aconteceu quinta-feira.
Num mundo de homens-cópia* e países-clone, na quinta fomos diferentes.
Celebrámos um homem que não era cotado em Londres ou Tóquio, que não tinha valor em Nova Iorque.
Era rico em coisa nenhuma, vendia o que não dá lucro, esbanjava tempo, em tempos de crédito mal-parado.
Era homem num mundo de ratices.
Dizia adeus de braços abertos, sem nada em troca.
Há tempos assim.
Tempos em que sinto gana de não ser de outro lado que de um país que acena a quem passa.
País que tinha um bom louco que acenava.
Dá-nos pão?
Se calhar, mas pão para um alma desgastada.
Há maior poesia que esta?
Há.
Mas esta é nossa.
O Adeus, ao Sr. do ADEUS from João Nunes on Vimeo.
P.S. – para os meus queridos leitores do Brasil em baixo poderão perceber sobre quem falo no texto:
Aqui, aqui e aqui
* – palavra de José Manuel dos Santos, um dos melhores cronistas portugueses.
A Imortalidade de Um Saco Plástico
Sobre o vórtice do pacífico.
Sobre os dramas existenciais.
Sobre a morte e a necessidade de sermos desejados.
Sobre nós.
Tudo a partir da imortalidade de um saco plástico.
P.S. – uma lição de conservação planetária, bem melhor que lamechices à Al Gore.
Fonte – “Future States”
Inspiração – Micaela Sousa, “a place to be”