Natal Geotérmico
O bafo era quente.
Mal fora, já que provinha de um mamífero. Ao lado outro, mamífero e bafo, completava o bestial serviço. O felizardo com o ar tépido pêlos não tinha, apenas um têxtil mal engendrado lhe cobria a pele nua. Não fora o mistral dos animais, a cria não aqueceria.
Burro e vaca estavam ao serviço do filhote, mantendo-lhe caldo o corpo. Quais alergias, qual quê, o que importava era o calor para que a cria sobrevivesse.
Bafejado pela sorte sê-lo-ia, pelo menos até aos 33, mas agora era-o pelo calor.
Calor de um corpo alheio.
Este mísero intróito natalício, para além dos motivos sazonais óbvios, serve de introdução a breve descrição de uma descoberta científica.
Nas vastidões argentinas a presença de vários ninhos de dinossauros saurópodes já era conhecida. Paleontólogos argentinos apontam agora para que a fonte de calor necessária à incubação dos ovos daqueles animais tenha sido…a Terra.
Os investigadores apresentaram um conjunto de provas de que alguns dinossauros teriam utilizado a energia geotérmica como incubadora dos seus ovos.
A jazida de Sanagasta ofereceu vários ovos fossilizados de dinossauro, mais de 1000, com uma idade aproximada entre os 134 e os 117 milhões de anos. Para além desta actividade biológica passada, foi possível também identificar actividade hidrotermal da mesma época. As estruturas geológicas identificadas mostraram que naquela zona e na mesma altura teria existido actividade geotérmica.
Mas foram apenas estas informações que permitiram afirmar que um grupo de dinossauros utilizou o calor da Terra para incubar os seus ovos?
Não.
Análises geoquímicas revelaram também a influência de calor externo nos sedimentos onde foram encontrados os ovos fossilizados. Complementarmente, já se conheciam na Coreia do Sul ovos morfologicamente idênticos aos agora encontrados na Argentina. Os ovos coreanos procediam também de jazidas que geologicamente apresentavam a mesma influência hidrotermal. As coincidências reduzem-se…
Parece assim que a natalidade dos dinossauros saurópodes, mais concretamente dos Neosauropoda, está associada às condições ambientais, mais concretamente condições hidrotermais.
O Menino foi bafejado pelos mamíferos, já o sabíamos.
O que o passado do planeta nos revela agora é que os bebés dinossauros precisavam (também) do bafo da Terra para nela poderem caminhar.
P.S. Santo Natal, para todas as espécies!
(texto publicado também no jornal Sul Informação)
Referência:
Fiorelli, L., Grellet-Tinner, G., Alasino, P., & Argañaraz, E. (2011). The geology and palaeoecology of the newly discovered Cretaceous neosauropod hydrothermal nesting site in Sanagasta (Los Llanos Formation), La Rioja, northwest Argentina Cretaceous Research DOI: 10.1016/j.cretres.2011.12.002
Imagens:
1 – Aspecto da jazida de Sanagasta – do artigo referido.
2 – A-C Esquema do arranjo espacial dos ovos encontrados; D-F – imagens dos ovos fossilizados encontrados. Imagem do artigo referido.
Onde se cheiram cores?
(a minha pequena contribuição para o Dia Nacional da Cultura Científica, publicada no jornal Sul Informação)
Sentir com o coração é muito mais difícil, mas porventura muito mais comum, do que cheirar o vermelho, foi a conclusão a que cheguei no final deste texto.
Apesar de muito cansado, esta frase não atesta que eu possa ter perdido definitivamente o tino.
A máxima com que iniciei este texto pode servir de introdução à sinestesia. Não, não voltei a entrar pelos meandros da irracionalidade.
A sinestesia é uma condição neurológica na qual uma pessoa é estimulada sensorialmente sendo duas respostas sensoriais desencadeadas. Um sinestésico sente a forma de um cheiro ou o sabor de um som, por exemplo. Desta forma, as experiências sinestésicas podem conter várias respostas a um mesmo estímulo. Esta condição neurológica, apesar de rara, pode afectar até cerca de 4% da população, existindo diversas variantes.
A primeira vez que me deparei com esta característica neurológica foi com a minha cara-metade, andava ela a tactear a poesia de Fernando Echevarría, poesia que, segundo ela, tem como uma das pedras angulares a sinestesia – grita-me agora ela do outro lado da sala “Isso era a minha tese!”.
Deixemos as teses alheias e voltemos à sinestesia de Echevarría.
É a noite dos rios. Arrefece
Ter a longa pupila sombreada.
E as mãos velhas de ter sido verde
Ver-se passar a noite pela água.
(…)
O jornal i, de data incerta, proporcionou-me o segundo contacto com a sinestesia. Nele se relatavam as experiências ocorridas nas gravações de Jimmy Hendrix. Algures, contava o produtor, o guitarrista gritava-lhe algo como: “Preciso de mais verde aí…” ou “Isto estava perfeito se tivesse mais roxo…”, dizia Hendrix sobre partes das gravações. Poderão os conservadores afirmar que o verde que Hendrix pedia era uma consequência das doses cavalares de LSD que o virtuoso das cordas consumia. Pode ser; mas não deixa de ser sinestesia.
Apesar de vastamente descrita, a sinestesia ainda não é totalmente compreendida. É uma condição rara, afectando de maneiras distintas os sinestésicos. Uma das formas mais comuns é designada de sinestesia grafema-cor em que existe uma associação de cores a números ou a letras. Exemplos deste tipo de sinestesia podem ser compreendidos pela leitura do livro “Nascido num dia Azul” de Daniel Tammet, igualmente portador de síndrome de Savant. Tammet é capaz de indicar 22514 dígitos de Pi, graças à sua associação de números a cores. Uma prática semelhante, ao nível do cálculos matemáticos, é referida pelo famoso físico Richard Feynman.
De que cor é o se7e mesmo?
Para além da associação números/letras a cores, existem vários outros tipos de sinestesia, entre os quais:
-som-cor;
-palavra-sabor;
-sabor-toque;
-espelho-toque – o sinestésico sente o toque quando vê outra pessoa a ser tocada.
Uma verdadeira confusão de sensações mesmo depois da adolescência…
Embora a componente hereditária da sinestesia não esteja totalmente explicada, foram identificadas famílias com maior percentagem desta condição. A investigação científica tem vindo gradualmente a apontar para que poderá ainda existir uma ligação da sinestesia ao cromossoma X, dado que a proporção de mulheres vs. homens nesta condição neurológica é de 6 para 1. Alguns autores referem que a resiliência evolutiva deste gene, ou genes, poderá estar associada a processos criativos, entre os quais os de memória. Argumenta-se que as experiência sinestésicas poderão ter contribuído evolutivamente para que a retenção de informação sensorial se desse mais efectivamente.
Se virmos e cheirarmos sincronicamente o mundo talvez sobrevivamos melhor, acrescento eu.
Certo é que ainda permanecem muitas questões em aberto sobre a sinestesia.
Não posso mais. Caem lentas
e maduras como horas
de lágrimas. Não sustentas
robustas pedras sonoras.
Um coração ao compasso
de cada fruto maduro,
que rebenta quanto apuro
no silêncio do que faço.
Um coração passo a passo
do coração prematuro.
Referências:
Poemas de Fernando Echevarría retirados de Poesia 1956-1980, Edições Afrontamento (2000).
Brang, D and Ramachandran, V.S. (2011) Survival of the Synesthesia Gene: Why Do People Hear Colors and Taste Words? PLoS Biol 9(11): e1001205. doi:10.1371/journal.pbio.1001205
Hubbard EM, & Ramachandran VS (2005). Neurocognitive mechanisms of synesthesia. Neuron, 48 (3), 509-20 PMID: 16269367
Imagens:
de Brang and Ramachandran (2011) e daqui
Perspectiva do Cão
Tal como muito da vida, as coisas devem ser perspectivadas de vários ângulos, com o risco de nos enganarmos, fazermos algo maior ou mais pequeno do que realmente é.
A escala e a perspectiva andam de mãos dadas (?).
Imagem de Daniel Rodrigues – ” Vouga na pedreira”.
O telefonema do poeta para o desempregado
O telefone não parava de tocar.
Sempre a mesma coisa, podia estar desempregado mas tinha mais que fazer que pegar naquilo.
Aquilo trazia-lhe notícias que não queria ouvir, graças que não eram as suas, ou apenas um cumprir de serviço do lado de lá da linha
Ou talvez não fosse isso, talvez não querer ouvir gente, ainda por cima gente com trabalho, trabalho que ele não tinha.
Pelo menos igual aos outros.
Tocava, continua a tocar, o telefone.
Quem quererá falar; e para cá.
Tinha que continuar a escrever. Decidira-o quando, há dois anos, o mandaram para casa.
Senhor Engenheiro, haviam tentado ser o mais corretos que sabiam, sendo a convocatória feita apenas pelo desempenho laboral, Senhor Engenheiro, a verdade é que deve encarar isto como uma oportunidade.
Sim, uma oportunidade. Como aquela que falta a quem lhe liga neste momento, sente.
Se calhar ainda querem explicar melhor porque o mandaram para casa. Ou o que fez com a oportunidade que lhe deram. Mas tem mais que fazer, tem que escrever. Agarrar a oportunidade.
Escrever para provar que podia fazer algo, ele que havia sido mandado para casa porque não tinham algo que ele pudesse fazer.
Porra para o telefone, que não se cala.
A escrita com horários, a fuga surgida da liberdade perdida de quem não tem trabalho.
O telefone chamava-o, tal como as linhas que escreveu.
Não lhes pôde fugir.
Ainda bem.
Foi atender.
P.S.- pela manhã, ao café como deve ser, uma história daquelas que inspiram e fazem apertar a garganta, daquelas que fazem ainda ter esperança em que há sempre que andar para frente, pôr ordem nas palavras, nas palavras que faltam em dias de excesso de números.
Ainda que não conheça a história feita nesses dois anos, fica a história do telefonema que se atrasou dois anos.
Imagens: do jornal Público de 19 de Outubro de 2011. As minhas desculpas pela má qualidade das imagens:
Ciência Pop
(Este é o primeiro texto da colaboração com o jornal “Sul Informação”, novo diário da região sul. O texto foi publicado aqui)
A palavra dinossauro é vastamente utilizada no discurso informal, e quase sempre com sentido pejorativo. Basta apenas um pouco de observação para identificar outros conceitos científicos presentes na cultura popular.
A Teoria da Relatividade Geral, bem como as recentes novas quanto à velocidade da luz ter sido ultrapassada pelos neutrinos, fascinam-nos a todos. As implicações de algo conseguir ultrapassar a velocidade da luz são enormes em termos de imaginário: a capacidade de fintar a barreira do tempo, viajarmos através dele como se fosse uma auto-estrada, torna-nos aparentemente livres.
Filmes como “Regresso ao Futuro” ou mesmo “A Guerra das Estrelas”, materializam essa alteração do real, libertando o ser humano das amarras do Tempo. O ultrapassar das leis da Física contribui assim para que as condicionantes sociais, económicas e até éticas, possam ser ultrapassadas tudo assente na capacidade de se viajar mais rápido que a luz. O ultrapassar dessa fronteira faz-nos não só donos do tempo, mas oferece-nos igualmente a possibilidade de recriarmos o nosso presente – aquilo que fizermos na viagem ao passado obviamente influirá no presente. Quantos de nós não desejámos alguma vez modificamos algo no nosso passado?
“Para baixo todos os Santos ajudam”, diz o povo. Este dito popular não revela o carácter altruísta dos objectos da Hagiologia, antes é uma conhecida redundância de que a Gravidade existe, existiu e existirá, originando que o esforço envolvido em subir seja completamente distinto do de descer. O Mito de Sísifo não existiria se a força gravítica não se exercesse sobre este filho de Éolo. Sísifo, condenado a empurrar uma pedra encosta acima, vê-la-ia regressar à base, sobre a acção da gravidade, vez após vez, numa condenação eterna.
A mitologia revela-nos que a astúcia de Sísifo, que enganou a Morte por duas vezes, não foi capaz de vencer a Física. Que me desculpem Albert Camus, bem como todos aqueles que cuidam a condição humana como sendo desprovidas de sentido: não é a labuta diária que empurra a pedra pela encosta baixo, antes é a Gravidade a ser mais forte que Sísifo.
Ser verdadeiro não implica qualquer indicação da matéria física de que somos feitos. Ainda assim, a cultura popular associa a Física e a Ética. “A verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima”, sempre ouvimos dizer. As distintas densidades (a massa a dividir pelo seu volume) da água e do azeite, que originam a sua imiscibilidade, são remetidas para uma moral de comportamento: azeite e verdade são duas realidades que acabarão por flutuar: o azeite, pela sua menor densidade relativamente à água; a verdade, sabe-se lá por que caminhos, espero que venha sempre à tona dos dias e dos acontecimentos.
Esta correcta sabedoria é mais acertada na sua componente física uma vez que na vertente moral a sua eficácia revela graves lacunas. Pelo menos no que vou observando nos dias que correm.
Outros exemplos existem da relação sabedoria popular vs. Ciência, mas a tarde está soalheira…
Referência: