Os Cães do Estado

O risco parece ser o tempero principal do prato que nos servem nos dias em que nos assam.
As elites governativas apelam a que cada um de nós largue o gatinhar seguro e se atire, sem medos, para a iniciativa própria.
Arriscar e aguentar, dizem eles, que o Estado já fez o que devia e todos devemos largar o consolo a que nos habituámos por direito.
Devemos arriscar mais, fugindo da segurança que o Estado nos deveria proporcionar.

01ladies CARPACCIO (Large)A história evolutiva dos cães apresenta, como explicações para o seu aparecimento, duas alternativas. A mais comummente aceite é a de que os seus ancestrais lobos foram seleccionados artificialmente pelo Homem e, assim, adquiriram as características comportamentais, primeiro, e físicas, depois, que interessam e agradam ao ser humano.
Uma segunda alternativa, defendida por Raymond Coppinger [1] envolve, para além da selecção artificial dos nossos antepassados de alguns lobos, a selecção natural. Em resumo, os lobos, como outros animais, apresentam graus distintos do que se designa por “distância de fuga”, ou seja, a distância mínima que um animal está disposto aceitar à aproximação de um ser humano, ou outro perigo, antes de iniciar a fuga. Intuitivamente compreendemos este conceito de “distância de fuga”, tanto mais que já todos vimos, pelo menos na televisão, que diferentes animais apresentam “distâncias de fuga” distintas e, mesmo dentro da mesma espécie, esta distância variará de indivíduo para indivíduo. Se não acreditam, experimentem alimentar pombos ou gaivotas…
A “distância de fuga” está relacionada com a sobrevivência do animal, seja por permitir que obtenha alimento fácil arriscando mais, seja por poder ser ferido ou morto caso se aproxime do eventual perigo que está entre ele e o alimento.
O autor referido apresenta como motivo para a domesticação do lobo e consequente aparecimento do cão que a distância de fuga dos lobos que circundavam os acampamentos humanos primitivos se terá reduzido. Por outras palavras, alguns lobos arriscavam mais e seriam esses que despertaram o espírito de domesticação dos nossos antepassados. No surgimento do cão parece ter estado um aumento do espírito de risco ou a diminuição da distância de fuga por parte de alguns lobos.

Ora o risco e empreendedorismo, bandeiras que se devem aplicar à Banca mais do que a nenhum outro sector da economia, parecem ter ficado na gaveta.
Verdadeiros lobos, os bancos arvoram-se, historicamente, como bastiões do risco e da independência face à protecção.
Mas o que verifica recentemente é que o espírito protector e paternalista parece ter assolado as mentes de quem nos governa. Só uma mãozinha, que eles são pequeninos, justificam. Era mesmo só o que lhes faltava, este naco de carne dado à boca, que os bancos de pedigree não singram sem esta ajuda, carpem os que mandam no Estado.
Do que me ensina a evolução dos lobos e dos cães resta-me adivinhar que os bancos, protegidos e esquecidos do risco, saltem para ao colo dos seus donos.
4892685898_ef8ed1d949_b (Large)E para quê?
Há que tomar conta dos rebanhos, especulo.
Há que fazer companhia financeira, quando dela precisarem os futuros ex-governantes.
E quem melhor para estas tarefas?
Estes novos cães do estado, amansados e alimentados à mão.
Pena é que quem manda se esqueça que por vezes os cães mordem a mão de quem os alimenta.
E estes, ao contrário dos cães de quatro patas, já deram provas de que o farão.
Mais tarde, ou mais cedo.
E a nós, o que nos resta?
Voltar à selva, que o canil do Estado, que todos pagámos, já está ocupado.

 

 

Referências:
[1] Dawkins, R. 2009. O Espectáculo da Vida – A Prova da Evolução. Páginas: 430. Casa das Letras. ISBN: 9789724619354 – páginas consultadas 75-78.

“Estado injecta 1 100 milhões de euros na recapitalização do Banif” jornal i 31 de Dezembro de 2012

“Injecções de dinheiro no BPN ascendem a 8,5 mil milhões” jornal DN 25 de Outubro de 2011

Imagens:
Vittore Carpaccio “Two Venetian Ladies” (1510)

Daqui

 (PUBLICADO NO JORNAL SUL INFORMAÇÃO)

O regresso da tipa

bill,brandt,black,white,classic,miners,photography,south,wales-71269b11297e5b74c3e7f0ca3dd876cf_h.jpgA tipa iniciou o seu degredo quando eu ouvi um dia “O Inferno são os outros”.
Exagero, sempre me pareceu, embora com os anos uma patine de verdade lhe tenha assentado. E ela começou a ir-se.
Cada vez a vejo menos. Há dias que se foi de vez, penso.
Bancos, governos corruptos e/ou incompetentes, entre muitas outras inerências à condição humana, originaram que a frase de Sartre se tornasse um mantra para o mundo. Mantra a que resisto, é certo, mas persistente.
A crise gerada por homens que comem homens, outrora apelidados de canibais mas hoje em dia baptismo de especuladores financeiros, lançou o mundo na confusão e no caos. Estados que foram em auxílio da banca, à custa dos seus cidadão, pagam agora aquela ajuda com juros muito superiores.
Como há-de ela voltar?
A tipa tem razão, melhor que não a vejam.
O Inferno são os bancos?
Talvez.
O cinismo existencialista de Sartre não foi, nem é capaz de atrofiar a alegria quando vi o último mineiro chileno sair da cova.
A tipa, cada vez mais solitária nos dias que voam, insiste em regressar-me.
Gosto dela sempre que me visita, mesmo que à saída de uma mina chilena. E ainda que a tentem afastar com Sartrices do tipo “Só se safaram porque as TV’s quiseram” ou “Havia de ser na China que iam ver o que lhes tinha acontecido”, a verdade é que ela voltou-me.
Por quanto tempo?
Não sei.
Há dias em que a tipa me volta a aparecer.
Ainda bem que voltaste, esperança.
Imagem: Bill Brandt – Miners Returning to Daylight, South Wales (1931-35)