Ocupas
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 04/01/2007)
O período que vai entre o Natal e a Passagem de Ano passo-o entre a família, os amigos e a casa dos meus pais.
É uma altura em que o conceito de lar me diz muito – e acho que também à grande maioria das pessoas.
Aos amigos que vivem em Portugal juntam-se os novos emigrantes – os que saíram com um curso superior, tão diferentes daqueles que há umas décadas abandonavam o extremo oeste da Europa.
Mas essa é outra história.
A que quero hoje contar hoje surgiu de uma conversa com alguns desses amigos, à roda de cervejas, em que se falava de uma associação artística que surgiu e se mantém num prédio ocupado de Amesterdão.
Estes edifícios são prédios abandonados que foram (e são) ocupados por quem não tem abrigo e tiveram origem na década de 60 do século passado, especialmente na Alemanha, Holanda e Inglaterra, embora seja um fenómeno mais ou menos geral nos países desenvolvidos.
Não pretendo dissertar sobre as razões morais, económicas ou legais que estão na origem do squatting. Esta conversa lembrou-me antes os squatters que existem no mundo natural.
O primeiro de que me lembrei foi o caranguejo-eremita (género Pylopagurus).
Este crustáceo, de que existem muitas espécies, quer marinhas quer terrestres, não possui a carapaça típica dos populares caranguejos, apresentando um corpo mole, desprovido de protecção perante os predadores. Este animal desenvolveu, então, um comportamento equivalente ao dos ocupas humanos – aproveita as conchas vazias de gastrópodes. Essas conchas vão servir de “lar” ao caranguejo-eremita, protegendo-o dos perigos do meio-ambiente que o rodeia.
Quando este “ocupa” natural cresce e a concha já começa a “rebentar pelas costuras”, decide aventurar-se de novo no mercado imobiliário disponível – procura uma nova concha, desta vez com um tamanho adequado às suas necessidades.
Este comportamento de adaptação parece ser já bastante antigo, pois conhece-se pelo menos um caso (Paleopagurus) datado do Cretácico inferior (sensivelmente há 130 milhões de anos), em que fossilizaram ambos, hóspede e habitação. A casa do antepassado dos actuais caranguejos-eremita pertencia a um grupo diferente – era uma amonite – cefalópode extinto há 65 milhões de anos. Interessante é também o facto de a pinça maior (aquela que fica “à porta”) ter variado a sua forma ao longo do tempo. Assim, este gastrópode manteve um comportamento de aproveitamento de materiais naturais para a sua habitação e adaptou o seu próprio organismo às condições do imóvel natural disponível no mercado!
Mudam-se os tempos, mudam-se as casinhas!
Outro dos exemplos conhecidos de ocupação de casa alheia é o do cuco – Cuculus canorus.
Esta ave apresenta um comportamento bastante peculiar pois, ao contrário da maioria das aves, não constrói ninho. Opta, antes, por colocar os seus ovos em ninhos de outras aves.
Por mecanismos ainda não muito bem compreendidos, as fêmeas-cuco colocam os seus ovos unicamente em ninhos de espécies cuja cor de ovos não seja muito diferente da sua – mimetismo. Fazem-no provavelmente para evitar que os donos dos ninhos os detectem e abandonem, pois as fêmeas hospedeiras podem facilmente reconhecer ovos que não sejam seus.
Depois de eclodirem, os recém-nascidos cucos são muito diferentes das crias legítimas.
Paradoxalmente, os pais-adoptivos não reconhecem esta diferença na prole invasora, criando-os como se fossem seus.
Este comportamento é aparentemente contraditório em termos evolutivos, pois ao fim de alguns dias, e devido ao maior tamanho do cuco, este acaba por expulsar os seus irmãos adoptivos do ninho.
De certeza que as espécies hospedeiras anseiam uma nova lei de arrendamento!
Pais são quem cria!
O lar, seja construído, aproveitado, ocupado ou seja de que forma for, tem um valor muito importante, quer para humanos, quer para os seres vivos.