Mãe-galinha – o outro lado dos dinossáurios
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 12/01/2006)
Um destes dias conversava com uma amiga. Contava-me ela os seus problemas com a filha, das normais discussões e do seu mais que inquestionável amor maternal. “Porque eu sempre fui uma mãe-galinha e estas discussões custam-me tanto!”.
Sorri. Quem não teve discussões com os pais e quantas vezes não se ouviu esta expressão: é uma Mãe-galinha!
Esta expressão portuguesa resume um conjunto de comportamentos, a maioria racionais mas alguns perfeitamente irracionais, de afecto, protecção, conselho e sobretudo de muito amor.
Por defeito profissional, e depois desta conversa, não pude deixar de pensar nesta expressão, comum aos comportamentos humanos e aos dos seres que investigo – os dinossáurios.
As galinhas são aves. Como aves e, ao abrigo das mais actuais teorias evolutivas, são os actuais descendentes dos dinossáurios.
A tradicional visão dos dinossáurios, animais terríveis, enormes e desprovidos de qualquer comportamento maternal, contraria qualquer relacionamento com os comportamentos de uma mãe-galinha!
Tal não é verdade e podem ser apontados dois ou três exemplos que a paleontologia tem estudado e que vêm corroborar aquela expressão portuguesa.
Nos anos 70 do século passado, mais concretamente em 1978, o paleontólogo “Jack” Horner (conselheiro científico de Steven Spielberg no filme Jurassic Park) entrou numa loja de minerais no estado americano de Montana. O seu espanto foi imenso quando “deu de caras” com um esqueleto de um dinossáurio bebé. Após questionar os donos da loja onde tinha sido descoberto aquele fóssil, estes explicaram-lhe que o tinham feito numa área chamada “Egg Mountain” (montanha dos ovos). Disseram-lhe ainda que esta era uma zona rica em ossos de dinossáurios juvenis bem como de ovos – agora fazia sentido o nome da montanha.
Horner, após campanhas de prospecção e escavação no local, descobriu cerca de onze esqueletos de dinossáurios bebés, de um grupo de dinossáurios herbívoros chamados bicos-de-pato, os hadrossáurios. Os juvenis tinham cerca de 1m de comprimento. Na proximidade dos restos ósseos descobriu uma série de estruturas que veio a constatar serem de ninhos. As estruturas circulares tinham 2m de diâmetro e cerca de 70 cm de profundidade no centro estando a área coberta por pequenas cascas de ovos, em sedimentos do Cretácico superior (há cerca de 75 milhões de anos).
“Jack” Horner reconheceu um padrão no posicionamento e distribuição dos ninhos – tinha descoberto uma colónia de dinossáurios!
A MATERNIDADE NOS DINOSSÁURIOS
Até essa época pensava-se que os dinossáurios colocavam os seus ovos e os abandonavam de seguida, tendo as crias que sobreviver sozinhas. Com esta descoberta constatou-se que afinal os dinossáurios apresentavam um comportamento semelhante ao das aves e crocodilos – elaboravam construções onde as crias eram alimentadas e protegidas até terem atingido um determinado grau de desenvolvimento, ou seja construíam “ninhos”. Provas paleontológicas da alimentação dos juvenis são, por exemplo, fósseis de plantas regurgitadas encontrados nas imediações dos ninhos.
Horner baptizou esta espécie de dinossáurio de Maiasaura (Maia – boa mãe + sáuria – réptil) ou seja o dinossáurio boa-mãe! Estes dinossáurios atingiriam (quando adultos) cerca de 7m de comprimento
Tal como as aves altriciais (aquelas que precisam da protecção e alimentação parental até determinado grau de desenvolvimento) também os juvenis de Maiasaura (e outro dinossáurios entretanto descobertos) precisariam destes cuidados.
Mesmo não sabendo muito de paleontologia e evolução, a cultura popular portuguesa não deixa de ter razão quando uma mãe é extremosa nos seus cuidados, tal como os dinossáurios – é uma mãe-galinha!
E ainda bem!
O Falso Culpado
A cultura cinematográfica está repleta de ambientes de presídio.
Lugar-comum recorrente – o prisioneiro inocente. Vítima de uma qualquer trama mais ou menos maquiavélica, de um erro do sistema judicial, estes injustiçado faz tudo para se libertar daquela condição.
Recentemente a revista National Geographic publicou o estudo de manuscritos coptas que revelavam a remição do mais famoso dos traidores – Judas. Segundo os investigadores, Judas teria tido um papel essencial, a pedido de Jesus, no processo que levou à condenação de Cristo.
Este reescrever da história é fundamental não só para a própria compreensão dos fenómenos em jogo, como também para que se entenda que as realidades não são sempre como nos as “pintam”, nem tudo é preto-e-branco.
Na maioria das vezes vemos o que queremos ver.
Um dos objectivos do paleontólogo é descobrir os verdadeiros papéis de cada um dos “actores” do “filme” que é a História da Vida.
No século passado o Museu Americano de História Natural de Nova Iorque levou a cabo diversas expedições paleontológicas e antropológicas à Mongólia, mais concretamente ao deserto de Gobi. Descobrir vestígios de mamíferos primitivos e, em última análise, a origem do próprio Homem eram os seus intuitos.
Em 1923 (numa das várias campanhas do MAHN à Mongólia) foi descoberto um esqueleto quase completo de um dinossáurio carnívoro com características excepcionais – apresentava um crânio com mandíbula semelhante a um bico de papagaio.
Este dinossáurio foi encontrado sobre um ninho com ovos, que os paleontólogos pensavam ser de Protoceratops (dinossáurio herbívoro). Devido a associação do dinossáurio carnívoro com os ovos fossilizados, este foi baptizado de Ovirator (“ladrão de ovos”).
Estava descoberto um dinossáurio que se dedicava a roubar ovos!
A verdade científica diz-nos que existiram duas imprecisões nas inferências paleontológicas estabelecidas: a primeira que os ovos eram de Protoceratops e a segunda que o Oviraptor os estaria a roubar.
A primeira inferência, que condiciona a segunda, baseou-se na enorme quantidade de restos fósseis de Protoceratops encontrados no deserto de Gobi. Se foram encontradas enormes quantidades de vestígios ósseos de dinossáurios herbívoros porque não pertencerem os ovos àquela mesma espécie?
A segunda inferência é mais linear – dinossáurio carnívoro encontrado perto de ovos…havia um “crime” a acontecer!
Tínhamos o criminoso e tínhamos o motivo. Víamos o que queríamos ver.
O futuro reservaria um “apelo” neste tribunal paleontológico que absolveria o nosso ladrão-de-ovos.
Nos anos 90 do século passado, Phillip Currie do Museu Royal Tyrrel, descobriu novos ninhos de dinossáurio na Mongólia. Tal como nas primeiras descobertas também desta vez foi possível observar que o Oviraptor estava sobre um ninho. Ovos iguais aos conhecidos em 1923 jaziam nesse ninho. Mas desta vez um dos ovos tinha preservado um embrião. Era um embrião, não de Protoceratops, mas de…Oviraptor!
Estudos posteriores permitiram completar este puzzle – uma mãe (ou pai) Oviraptor havia sido surpreendida por uma tempestade de areia que a havia soterrado e aos ovos.
Desta forma o Oviraptor foi absolvido do seu “crime” – de ladrão de ovos passou a mãe/pai extremosos.
O caso do Oviraptor não foi um erro de casting. Foi apenas uma interpretação apressada, condicionada por aquilo que se queria ver.
Era um guião demasiado complexo para uma única leitura – a História da Vida na Terra.
Tal como o culpado nem sempre é o mordomo, também muito menos o foi o Oviraptor…
P.S.- o título remete para o filme de 1956 Wrong man (“O Falso Culpado”) de Alfred Hitchcock.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 20/04/2006)