A Liberdade e a Cardiologista
Abandonei o silêncio penitente a que se remetem os pacientes.
Farto da parede muro-das-lamentações que me tapava a vista, falei.
“E o sal, doutora?”.
Não o meu; o da Assembleia da República.
“Acho que legislaram bem. Apesar de não ser original, já que os teores de sal são já controlados em muitos alimentos…Olhe, até nos refrigerantes eles põem sal!”.
Reforçou o argumento espetando-me o peito com maior intensidade.
“Bem…”, ganhei balanço, entre o desconforto do ecocardiógrafo e um novo quebrar do silêncio asséptico.
“Bem, não se trata só de uma questão de Saúde Pública. É também uma questão de liberdade individual, de escolha pessoal. A seguir vem o quê? A cor dos meus boxers?”.
Agradeci encontrar-me num cardiologista e não num urologista, já que estética cromática é uma lacuna da minha personalidade.
“Liberdade? O sr. sabe o custo para os contribuintes que o consumo excessivo de sal origina? Sabe que o cancro do estômago está intimamente relacionado com teores de sal na urina, que por sua vez reflectem o consumo de sal? É caríssimo, não há dinheiro. É preferível cortar essa pequena liberdade!”.
O miocárdio neste momento deve ter posto a língua de fora porque me perguntou:
“Tem andado a sentir-se bem?”.
Maldita tecnologia, pensei. Não dá a mínima hipótese, qual detector de mentiras.
“Claro que tenho, doutora. O meu dealer salino está em promoções!”.
Imagem – daqui
O mar e as entranhas – histórias de bactérias
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 12/07/2007)
A escuridão é total. Mas há vida.
Não poderíamos viver nestes ambientes. Mas conhecemo-los.
Ou partes dele.
O fundo do mar.
O nosso sistema digestivo.
O grande desconhecido que é o profundo marinho tem equivalências no invisível interno humano.
O PNAS*, de 5 de Julho de 2007, publicou um estudo sobre a vida microscópica, onde se relacionam os dois ambientes, com personagens que estão mais relacionadas do que até aqui se imaginava.
Quer o sistema digestivo quer o fundo do mar são ambientes inóspitos – escuros e com baixas concentrações de oxigénio.
Ainda assim estão repletos de bactérias.
Sulfurovum litthotrophicum, descrita em 1984, e Nitratiruptor tergarcus são duas espécies de bactérias do grupo ε-Proteobacteria, que habitam o fundo do mar. Sobrevivem a temperaturas comos as que temos no frigorífico lá de casa, 4º C, até aos 70º C. Vivem ambas no substrato marinho de grandes profundidades obtendo energia através da fixação de azoto provenientes de fontes hidrotermais. São consideradas das mais resistentes formas de vida, pois conseguem sobreviver naqueles ambientes adversos, onde as temperaturas podem atingir mais de 100º C, a profundidades, como no caso da fonte hidrotermal “Menez Gwen” dos Açores, de 1700 m.
Apesar da enorme resistência daquelas bactérias em ambiente natural, só recentemente foram cultivadas em laboratório permitindo que fossem estudadas mais detalhadamente.
O outro grupo de bactérias que ninguém gostaria conhecer, pelo menos na prática ocupa, com maior ou menor frequência, o nosso sistema digestivo.
A Helicobacter pylori, descoberta em 1982, está presente em metade da população mundial, sendo a causadora da inflamação da mucosa do estômago bem como das úlceras gástricas e do duodeno. A descoberta desta relação concedeu, em 2005, o prémio Nobel da Medicina a Barry Marshall e J. Robin Warren.
O minúsculo ser vivo acompanha a espécie humana desde há muito num fenómeno coevolutivo, facilitado pela sua grande variabilidade genética.
Segundo investigadores do Instituto Max Planck em Berlim, a Helibobacter tem sido transmitido de pais para filhos desde a nossa ancestral saída de África.
Reconstruindo a árvore evolutiva desta bactéria, foi possível identificar dois grandes ramos – um que infecta os europeus e norte-americanos e outro que afecta sobretudo os asiáticos. Essas duas linhagens estão associadas às migrações humanas, permitindo reconstituir essas antigas movimentações.
Outro dos géneros de bactérias patogénicas analisado foi o Campylobacter jejuni, responsável por intoxicações alimentares nomeadamente a gastroenterite. Os ambientes favoritos para a sua disseminação são leite cru ou mal pasteurizado, aves mal cozinhadas e água não tratada (líquida ou em gelo).
A equipa de investigadores procedeu à análise do ADN presente nas bactérias que partilham o nosso ambiente digestivo – Helicobacter e Campylobacter – e o das bactérias das profundezas marinhas – Sulfurovum e Nitratiruptor.
Os dois grupos de bactérias apresentaram afinidades genéticas, que lhes possibilitam viverem em ambientes hostis. Entre as semelhanças estão a quase ausência de genes de reparação do ADN. Este facto permite não só a grande adaptação destes seres vivos a novas condições extremas, mas também ao próprio sistema de defesa de um organismo hospedeiro.
Segundo os investigadores, as bactérias humanas evoluíram a partir de ancestrais de grande profundidade, adquirindo o seu “mau-feitio” quando estabeleceram relações simbióticas com invertebrados marinhos.
Não era novidade que tínhamos todos uma origem marinha.
Foi de lá que viemos.
O profundo marinho e o sistema digestivo humano partilham coincidências evolutivas.
O sistema digestivo humano serve de mar a uma variedade de fauna microscópica; sabemos agora que parte dessa fauna tem parentes próximos nos fundos marinhos.
* Proceedings of the National Academy of Sciences
Referências consultadas
-Inagaki, F. et al. 2004. Sulfurovum lithotrophicum gen. nov., sp. nov., a novel sulfur-oxidizing chemolithoautotroph within the ε -Proteobacteria isolated from Okinawa Trough hydrothermal sediments. International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology, 54, 1477-1482.
-Nakagawa, S. et al. 2007. Deep-sea vent ε-proteobacterial genomes provide insights into emergence of pathogens PNAS published July 5, 2007, 10.1073/pnas.0700687104.
-Nakagawa, S. et al. 2005. Nitratiruptor tergarcus gen. nov., sp. nov. and Nitratifractor salsuginis gen. nov., sp. nov., nitrate-reducing chemolithoautotrophs of the -Proteobacteria isolated from a deep-sea hydrothermal system in the Mid-Okinawa Trough. International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology, 55, 925