Dinossauros: Velhos Mitos (2)
(texto publicado no jornal Diário de Coimbra, 20 de Setembro de 2011, integrado no projecto “Ciência na Imprensa regional – Ciência Viva”)
A primeira vez que um dinossauro fez a sua estreia no mundo do cinema ocorreu muito antes de Spielberg ter estreado Parque Jurássico, em 1993. Um dos primeiros filmes de animação tinha como principal intérprete um dinossauro, de cauda e pescoço compridos, que se chamava Gertie. Esta dinossauro saurópode desfilou nos ecrãs a preto-e-branco pela mão de Winsor McCay, em 1914, sendo esta a estreia dos dinossauros no mundo do cinema [1].
“The Valley of Gwangi” (1969) ou “When Dinosaurs Ruled the Earth” (1970), são dois exemplos em que se pode verificar tanto a sincronia existencial de homens e dinossauros, como, sobretudo, a ruptura da estabilidade social que o dinossauro vem trazer.
Se na cinematografia ocidental o dinossauro é representado de forma fiel, a cultura cinematográfica oriental, nomeadamente a japonesa, altera a anatomia do dinossauro, transformando-o numa entidade diferente. Um monstro pós-nuclear é criado e vem destruir cidades e culturas. Vários autores apontam que o monstro, Godzilla, não é mais do que um fenómeno catártico colectivo da sociedade japonesa às explosões de Hiroshima e Nagasaki. A morfologia do dinossauro é alterada, quase como um efeito de mutação de origem nuclear.
O dinossauro desempenha assim, pelo menos no ocidente, um papel que era tradicionalmente representado pelo dragão, monstro que encarnava todo o tipo de mal nas culturas judaico-cristãs. A actualização iconográfica, com a substituição do dragão pelo dinossauro, não é consensual para a maioria dos investigadores, embora seja sem dúvida apelativa, encontrando-se facilmente inúmeros exemplos deste fenómeno.
A influência dos dinossauros na literatura surgiu pela mão de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. A descoberta de uma pegada de Iguanodon fossilizada, em 1909, impressionou de tal forma Conan Doyle que o inspirou na criação de um mundo fantástico, cheio de criaturas extintas e gigantescas, na América do Sul, no seu livro de 1912 “O Mundo Perdido” [2].
“O político X é um dinossauro”, já todos lemos por mais do que uma vez. Este baptismo pejorativo, na maioria dos casos, pretende sublinhar o carácter ultrapassado e decadente do nomeado. Há, assim, a associação do termo dinossauro a todo o tipo de pessoas e realidades que há muito deveriam estar reformadas ou apenas desaparecidas. Incorpora-se a realidade da extinção biológica na dimensão humana, conotando-se o dinossauro com o arcaico e ultrapassado humano. Os dinossauros diversificaram-se e sobreviveram durante quase 200 milhões de anos, mas a sobranceria de um grupo de mamíferos que escreve há poucos milhares de anos, para além de biologicamente embaraçosa, é injusta.
O ser humano apenas caminha sobre a Terra há uma pequena fracção do tempo em que os dinossauros percorreram todos os ambientes terrestres.
Referências:
[1] Sanz, J.L. 2002. Starring T. Rex – Dinosaur Mythology and Popular Culture. 153pp. Indiana University Press.
[2] Lockley, M. 1991. Tracking Dinosaurs: A New Look at an Ancient World. 238pp. Cambridge Univ. Press, Cambridge.
Imagens:
a) Cartaz do filme de animação “Gertie, the Dinosaur” (1914), de Winsor McCay. Fonte: http://bit.ly/7ZusdN; b) Cartaz do filme “When Dinosaurs Ruled the Earth” (1970), de Val Guest. Fonte: http://bit.ly/g2785g; c) Cartaz do filme “Gojira” (1954), de Ishirō Honda. Fonte: http://bit.ly/2DjRBX
Este texto é a continuação de “Dinossauros: Velhos Mitos (1)”
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9 Mitos/Confusões sobre Dinossáurios/Paleontologia
Tal como temos ideias pré-concebidas em relação à política, ao futebol e à vida em geral, também no campo da Paleontologia é habitual termos concepções que não correspondem ao que a Ciência conhece.
Porque a literacia científica é importante.
1-Os dinossáurios eram animais “estúpidos” – este conceito é, erroneamente, apoiado pelo facto de que se extinguiram. A paleontologia sabe que o grupo de animais designados de dinossáurios foi, em maior ou menor grau, dominante em diversos ecossistemas durante mais de 170 milhões de anos; em termos comparativos o Homem, como espécie, habita o nosso planeta há uns míseros milhões de anos…estúpidos?
Não.
Cumulativamente conhecem-se hoje restos fossilizados de dinossáurio – Troodon – em que a relação tamanho corporal/tamanho craneal é bastante elevada levando os paleontólogos a especular se aquele grupo de animais não possuiria padrões de comportamento bastante desenvolvidos.
2-Steven Spielberg no “Parque Jurássico” foi o primeiro a “utilizar” os dinossáurios no cinema – ao contrário do que geralmente se pensa, a utilização dos enormes animais do Mesozóico não foi uma ideia original de Hollywood. O primeiro filme de animação tinha como personagem principal um dinossáurio saurópode, ou melhor uma “menina” saurópode de nome Gertie. Foi realizado em 1914 por Winsor McCay (também autor da famosa obra “O pequeno Nemo); McCay foi influenciado por uma visita que efectuou ao Museu de História Natural de Nova Iorque, tendo ficado tão impressionado com o Brontosaurus (hoje designado Apatosaurus) em exposição que o decidiu “utilizar” no primeiro filme de animação.
Ao longo da história do cinema contam-se imensos exemplos que integram como personagens os dinossáurios; apenas dois exemplos: “O Mundo Perdido” de 1925 e “Quando Os Dinossauros Dominavam a Terra” de 1970.
3- Os arqueólogos estudam os dinossáurios e os fósseis – tal como não são os paleontólogos que estudam os vestígios da Humanidade em Foz Côa ou no Egipto, também não são os arqueólogos que estudam as formas de vida preservadas sob a forma de fósseis – esse é o trabalho do paleontólogo.
4- Na linguagem do dia-a-dia a utilização das palavras “dinossauro” e “fóssil” estão associados a conceitos ultrapassados – televisão, rádio, jornais e mesmo nas conversas quotidianas veiculam as palavras dinossáurio e fóssil associadas a conceitos de objectos, ideias ou pessoas que estão ultrapassadas, velhas e antiquadas. Apesar de nalguns contextos aquela associação fazer sentido, na maioria dos casos é errada, pois os dinossáurios foram animais excelentemente adaptados aos seus ambientes e constituíram um grupo de sucesso durante muitos milhões de anos (ver ponto 1).
5- Homem e dinossáurios foram contemporâneos – nos exemplos cinematográficos atrás referidos, em obras literárias (“O Mundo Perdido”, “Lost World” no original, de Sir Arthur Conan Doyle) e séries televisivas (“Os Flinstones”, por exemplo), o Homem e os dinossáurios coexistem em ambientes mais ou menos remotos.
Sob um ponto de evolutivo e da História da Vida, esta perspectiva, obviamente, não está correcta. Entre os dois grupos de seres vivos existem um “fosso” temporal de mais de 60 milhões de anos! Os antepassados do Homem moderno, num sentido amplo, terão surgido há cerca de 4 ou 5 milhões de anos, tendo os grandes sáurios desaparecido há 65 milhões de anos.
Mas para efeitos ficcionais o devaneio artístico é bem tolerado…
6- Todos os grandes répteis do Mesozóico eram dinossáurios – embora os dinossáurios dominassem um grande número de ecossistemas não eram o único tipo de fauna.
Dimetrodon, Pteranodon (pterossáurio), e Megalneusaurus (réptil marinho) não eram dinossáurios e são alguns exemplos de outros répteis contemporâneos dos grandes sáurios. Tal como hoje não existem unicamente mamíferos em diversos ecossistemas, também no Mesozóico não existiam só dinossáurios…
7- Os dinossáurios eram voadores e habitavam também os mares – os dinossáurios eram animais exclusivamente terrestres. Répteis como os pterossáurios (voadores) são normalmente confundidos com os dinossáurios; embora parentes próximos, não pertencem ao mesmo grupo. Tendo em atenção que os dinossáurios são os antepassados das aves, então podemos dizer que existiram dinossáurios voadores; mas tendo em atenção essa ressalva…
De maneira semelhante, existiram e desapareceram no mesmo momento grupos de répteis parentes dos dinossáurios que habitavam o meio aquáticos – os ictiossáurios, os plesiossáurios e os mosassaúrios.
8- Todos os dinossáurios eram enormes – embora uma das estratégias evolutivas desenvolvida pelos dinossáurios fosse o aumento de tamanho, conhecem-se actualmente algumas espécies de pequeno porte. Exemplos como Procompsognathus e Echinodon apresentavam tamanho que variavam entre o 1,20 e 1,50.
9- Os mamíferos só apareceram depois de os dinossáurios se extinguirem – os últimos anos têm permitido reformular esta ideia; foram descobertos mamíferos fossilizados na China que transformaram a ideia que os nossos antepassados longínquos eram de tamanho muito reduzido e viviam em poucos ambientes.
O Repenomamus foi descoberto recentemente e permitiu saber os mamíferos apresentavam tamanhos maiores do que se pensava e, mais surpreendente, se alimentavam, sempre que podiam, de dinossáurios! Este facto foi provado quando se descobriu este animal com restos fossilizados de um dinossáurio no seu interior. Podemos, desta forma, perceber que os mamíferos ancestrais não eram inofensivos como se suponha, aproveitavam as oportunidades que a Natureza lhes oferecia…
P.S.- para quem estiver interessado aprofundar os conhecimentos sobre a influência dos dinossáurios na cultura popular pode tentar obter o excelente livro Starring T-Rex: Dinosaur Mythology and Popular Culture publicado pela Indiana University Press e, infelizmente, sem edição em português. Escrito pelo catedrático de Paleontologia e cinéfilo José Luís Sanz, da Universidad Autónoma de Madrid.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 02/03/2006)
Fósseis – História e mitos populares
Os fósseis ao longo dos tempos nem sempre foram encarados como registo de uma vida passada que permitem reconstituir tudo aquilo que se passou biologicamente no nosso planeta. Associações dos fósseis a acontecimentos históricos bem como tradições e mitos populares de várias partes do mundo são inúmeros. Alguns deles são aqui referidos.
Fóssil deriva do termo fossilis referido pela primeira vez por Plínio, o Velho (23-79 DC). A sua raiz fossus, particípio passado de fodere (i.e. cavar), significa literalmente “o que se extrai cavando“.
Adrienne Mayor refere no seu livro “The first fossil hunters” que na origem da figura mitológica Grifo estarão estado os dinossáurios. Senão vejamos o seu raciocínio: no séc. VII A.C., os gregos estabelecem contactos com nómadas Saka (exploradores de ouro no deserto de Gobi). Estes povos da Ásia central referiam que existia um monstro protector das reservas de ouro que teria cabeça e asas de águia num corpo de leão – é o nascimento da lenda do grifo na cultura grega. Nos anos 20 do séc. XX são descobertos dinossáurios no deserto de Gobi, um dos quais o Protoceratops – dinossáurio com uma projecção craneal semelhante a um bico.
A enorme semelhança de aspecto entre os restos de Protoceratops e a figura mitológica do grifo poderá explicar que os primeiros gregos (desconhecedores dos dinossáurios) tenham tomado conhecimento do seres do mesozóico muito antes de Richard Owen os definir no séc. XIX.
Outro dos exemplos históricos em que o registo fóssil e a história se cruzam diz respeito a Santo Agostinho (Aurelius Augustinus, 354-430 DC).
Em 413, no seu livro A Cidade de Deus, é referido um molar gigantesco atribuído a um gigante ancestral. Como outros autores até aí, pensava que os fósseis eram o resultado do Dilúvio. Acreditava igualmente que os seres humanos haviam diminuído de tamanho ao longo dos tempos. Esse molar seria um vestígio desses tempos em que os humanos apresentavam um tamanho colossal – hoje sabemos que esse molar não é mais do que o resto fossilizado de um parente dos actuais elefantes.
Em relação a um dos fósseis comuns no registo paleontológico português – belemnites – também existem várias crenças populares. As belemnites são o resto fossilizado de seres marinhos semelhantes a lulas e que habitavam o planeta nos tempos dos dinossáurios. Os restos que são preservados apresentam uma forma cónica, parecida com balas. É a sua forma que contribui para que vários povos expliquem a sua origem de maneiras distintas da real – resto de um ser vivo.
A designação inglesa para belemnite é thunderstone (pedra-de-raio) pois pensava-se que resultavam da queda de um relâmpago. No folclore chinês as belemnites são conhecidas como Jien-shih ou pedras-espada. Na Escandinávia aqueles fósseis são vistos como velas de elfos, gnomos ou de fadas. Nalgumas áreas ainda são actualmente designadas de vateljus que em sueco significa literalmente luzes de gnomo.
Outro modo de explicar o aparecimento de fósseis é a sua atribuição a fenómenos religiosos.
As amonites – moluscos cefalópodes marinhos semelhantes aos Nautilóides, existentes em várias afloramentos do país, exs: Figueira da Foz, Peniche.Na zona de Whitby, Inglaterra, considerava-se que eram restos petrificados de cobras que outrora haviam invadido esta área. A praga havia sido terminada por Santa Hilda (614-680 DC), que as transformou em rochas.
Associadas ao deus egípcio Ammon (representado por vezes com cornos retorcidos, de onde deriva o nome amonites), eram encaradas pelos gregos clássicos como símbolos sagrados capazes de curar mordeduras de cobra, cegueira, esterilidade ou impotência. Alguns romanos acreditavam que podiam prever o futuro se dormissem com uma amonite piritizada sob o travesseiro.
Dentes de tubarão fossilizados (geralmente de Carcharodon) eram utilizados como amuletos contra venenos. As designações tradicionais para estes fósseis incluíam Glossopetrae (língua de pedra), Linguae Melitensis (línguas de Malta) ou Linguae S. Pauli (línguas de São Paulo). Esta última é explicada pela seguinte associação entre um facto bíblico e a consequente exploração popular. Como referido em Actos dos Apóstolos (28:2-7), São Paulo, em Malta, foi mordido por uma cobra. Este atirou-a para a fogueira não tendo sofrido qualquer dano físico.
Como castigo divino as cobras terão perdido o seu veneno bem como os olhos e língua ficando para sempre os vestígios preservados sob a forma petrificada.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 29/09/2005)
Imagens: da Wikipedia, páginas de Belemnites e Amonites.