(1944 – 2020)
Por Karina Bidaseca – professora titular e pesquisadora principal do CONICET do IDAES / UNSAM e FSOC-UBA.
PDF – María Lugones
Informações biográficas:
Maria Lugones foi uma filósofa argentina graduada com honras na Universidade da Califórnia, reconhecida pelas suas contribuições teóricas aos feminismos decoloniais, o seu ativismo como mulher de cor nos Estados Unidos e, posteriormente, na Bolívia. Como uma costura que pode nos ajudar a fechar e curar a ferida colonial, inspirada em Audre Lorde, a sua metáfora das “peregrinações” ou “viagens pelo mundo” é decisiva para uma poética política feminista de coalizões.
Maria Cristina Lugones nasceu na cidade de Buenos Aires, em 26 de janeiro de 1944. Sua infância transcorreu em Los Toldos e na cidade de Morón, onde a sua família tinha uma casa de fim de semana. A sua morte ocorreu na cidade de Syracuse, Nova York, Estados Unidos, em 14 de julho de 2020.
A família Lugones estava formada por duas filhas e dois filhos. A mãe era de ascendência catalã de origem humilde. O pai foi o primeiro reitor da Faculdade de Bioquímica da Universidade de Buenos Aires, presidente do centro estudantil em 1932 e presidente da Federação Universitária dois anos depois.
O tratamento hostil do pai para com Maria se manifestou já na adolescência. A liberdade de exercer sua sexualidade foi punida pelo pai com o confinamento e, posteriormente, com um tratamento psiquiátrico cruel em um Hospital. Essa situação levou Maria a decidir viajar para os Estados Unidos. É nesse novo contexto que ela vivencia sua identidade lésbica e de mulher de cor.
Em 1973 obteve o Mestrado em Filosofia no Departamento de Filosofia da University of Wisconsin, Madison. Em 1978 obteve o título de Doutora em Filosofia pela mesma universidade, com uma tese sobre moralidade e relações pessoais e institucionais, que teve como foco o conceito de amizade na Ética a Nicômaco, de Aristóteles.
Costumava se definir como uma pedagoga popular, o que lhe valeu a inserção nas comunidades latinas e chicanas; nessa linha, fundou a “Escuela Popular Norteña” em Valdés, Novo México. Além de começar a trabalhar com grupos feministas em Madison, ela se aprofundou nos métodos pedagógicos de Paulo Freire e Myles Horton.
Chamada de “La Negra” pela sua família, Maria começou a perceber o racismo e a homolesbofobia muito cedo. Como pensadora da coalizão “Mulheres de Cor”, foi fiel à linha de pensamento de chicanas e afro-americanas como Gloria Anzaldúa, Audre Lorde, Chela Sandoval e Patricia Hill Collins.
No final da década de 1980 escreveu o artigo “Playfulness, ‘World’-Travelling, and Loving Perception”, publicado na Revista Hypatia em 1987. Ela vivenciou o “viajar-mundos” desta forma: “Pode-se viajar entre “mundos” e pode-se habitar mais de um desses “mundos” ao mesmo tempo” (1987: 10-11). No início da década de 1990, conheceu a experiência da Oficina de História Oral (THOA) em La Paz, Bolívia, fundada pela socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui. Filomena Miranda Casas foi a sua professora de aimará, língua que começou a aprender em diversas viagens, quando a sua saúde lhe permitia. A cosmovisão aimará, a exploração capitalista e a opressão colonial selaram seu compromisso com os feminismos de Abya Yala.
Lugones conheceu o sociólogo peruano Aníbal Quijano na Binghamton University de Nova York, onde lecionou como professora no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade. Quijano começou a perceber a sofisticação de seu pensamento. Ela contestou a sua tese sobre o conceito de “colonialidade do poder” em um texto publicado em 2006, o que, para Quijano, significou uma epifania para sua própria teoria.
Na década de 1990 María Lugones já fazia parte do programa modernidade/decolonialidade, ou virada decolonial, ao lado de Walter Mignolo e Catherine Walsh, entre outros. Suas contribuições foram fundamentais para o feminismo decolonial, ao que pôde também oferecer subsídios para o problema da colonialidade de gênero, raça e decolonialidade.
Colonialidade de gênero: um conceito chave
Sua tese é que existe uma partição fundamental entre modernidade/colonialidade: a dicotomia humano/não humano. Com a colonização, os europeus introduziram a dicotomia racial segundo a qual os colonizados são seres sem razão. Essa desumanização se traduziu no tratamento imposto à produção econômica, ao conhecimento e à imposição sexual. A hegemonia cultural que as potências europeias obtiveram com o colonialismo se expressa na adaptação à cultura do conhecimento europeu. A introdução colonial da dicotomia homem/mulher, macho/fêmea é heterossexual; o significado dessa heterossexualidade depende da dicotomia. Conforme expresso no texto “Colonialidade e gênero: rumo a um feminismo decolonial”:
“[…] faz parte da história que, no Ocidente, só as mulheres burguesas brancas tenham sido contadas como mulheres. As mulheres excluídas por e nessa descrição não eram apenas subordinadas, mas também vistas e tratadas como animais, em um sentido mais profundo do que o da identificação das mulheres brancas com a natureza, com os filhos e com pequenos animais. As fêmeas não brancas eram consideradas animais no sentido profundo de serem seres “sem gênero”, sexualmente marcadas como fêmeas, mas sem as características da feminilidade”. (Lugones, 2008, p. 94).
Por isso, para Lugones,
“[…] índios e negros não podiam ser homens e mulheres, mas seres sem gênero. Como bestas, eles eram vistos como sexualmente dismórficos ou ambíguos, sexualmente aberrantes e fora de controle. […] Como bestas, eles eram tratados como totalmente acessíveis aos homens e perigosos para as mulheres desde o ponto de vista sexual. “Mulher” então aponta para os europeus burgueses, reprodutores de raça e capital. ” (Lugones, 2012, p. 2).
Essa mulher burguesa é então dirigida pela emoção ao invés de pela razão, e concebida como casta, sexualmente pura, passiva e heterossexual. Lugones afirma que a colônia destruiu a constituição de cada pessoa, de cada comunidade, de práticas e saberes interligados e, com isso, as formas de entender o mundo tornaram-se inacessíveis. Ao mesmo tempo, tal destruição da comunidade implicava tratar o homem indígena como autoridade da comunidade e como mediador com o mundo branco, relegando as mulheres indígenas à condição de se tornarem seres sem gênero e racializados.
Uma das contribuições mais importantes de Lugones aparece no texto “Multiculturalismo radical y feminismo de las mujeres de color” (2005). Nele ocorre uma mudança decisiva de uma lógica da opressão para uma lógica da resistência. A própria lógica da opressão levou a dominação cultural e de gênero a se disfarçar. A “Máscara Multicultural” é uma versão do multiculturalismo que poderia ser chamada de “multiculturalismo ornamental” (Lugones, 1995, p. 61); a máscara feminista é aquela que se opõe a uma versão de feminilidade atribuída exclusivamente às mulheres em termos de raça, classe e sexualidade, e se subordina apenas à mulher burguesa branca. O feminismo hegemônico é eurocêntrico, universalista e racista. Esse feminismo está comprometido com uma certa representação de todas as outras mulheres. Desse modo, Lugones aponta: “Tanto a máscara multicultura quanto a feminista participam de uma máscara de falsa universalização” (Ibid., p. 62).
Nesta fase de sua obra, o pensamento peregrino de Lugones permite enriquecer o conceito de “colonialidade do poder”, enunciado por Aníbal Quijano. “Colonialidad y género: hacia un feminismo decolonial” (2008) é um texto-chave no caminho para o feminismo decolonial. Nele, a autora propõe uma categoria que denomina de “sistema de gênero colonial moderno”. Lugones afirma que a categoria “gênero” é tão central e indispensável quanto a categoria “raça” para a validade do padrão colonial de poder e conhecimento. Da mesma forma, questiona o estatuto totalizante da raça, cuja limitação reside em considerar o gênero anterior à sociedade e à história, o que naturaliza as relações de gênero, a heterossexualidade e os efeitos da pós-colonialidade.
Quijano explicou que o mito da colonialidade reside em afirmar que a Europa preexistiu ao padrão capitalista de poder e que, portanto, constitui o momento mais avançado no curso contínuo, unidirecional e linear das espécies. Segundo tal crença, a humanidade se diferenciou em dois grupos: superior e inferior, racional e irracional, primitivo e civilizado, tradicional e moderno. Nas palavras de Lugones:
“A naturalização das diferenças sexuais é outro produto do uso moderno da ciência que Quijano enfatiza no caso da ‘raça’. É importante notar que as pessoas intersexuais não são corrigidas ou normalizadas por todas as diferentes tradições. Por isso, como fazemos com outras suposições, é importante perguntar como o dimorfismo sexual serviu, e ainda serve, para a dominação capitalista global eurocêntrica.” (Lugones, 2008, p. 86).
Lugones explica que não é necessário que as relações sociais se organizem em termos de gênero, nem mesmo aquelas consideradas sexuais:
“Tanto o dimorfismo biológico quanto o heterossexualismo e o patriarcado são característicos do que chamo de lado claro ou visível da organização colonial moderna de gênero. Dimorfismo biológico, dicotomia homem-mulher, heterossexualismo e patriarcado estão escritos com letras maiúsculas e hegemonicamente no próprio significado de gênero. ” (Ibid., p. 78).
“É importante entender até que ponto a imposição desse sistema de gênero foi tanto constitutiva da colonialidade do poder, quanto a colonialidade do poder foi constitutiva desse sistema de gênero. A relação entre ambos segue uma lógica de constituição mútua […] Problematizar o dimorfismo biológico e considerar a relação entre o dimorfismo biológico e a construção dicotômica de gênero é central para compreender a abrangência, profundidade e características do sistema de gênero colonial moderno. A redução do gênero ao privado, ao controle do sexo e de seus recursos e produtos é uma questão ideológica apresentada ideologicamente como biológica, parte da produção cognitiva da modernidade que conceituou raça como ‘generificada’ e gênero como racializado de formas particularmente diferenciadas entre europeus/europeias brancos(as) e povos colonizados não brancos. Raça não é mais mítica nem mais fictícia do que gênero – ambos são ficções poderosas. ” (Ibid., P 93-94).
Lugones apela ao
“[…] Lado escuro e oculto da organização colonial moderna do gênero para interpretar a construção de uma categoria homogênea de mulher, eurocêntrica e universalmente válida que corresponde às características da mulher branca, burguesa, de classe média e intelectual que reivindica o feminismo hegemônico.” (ibid., p. 78).
Para a autora, é imprescindível visualizar esse lado oculto, pois isso “permitir-nos-ia desmascarar a colaboração cúmplice e nos convocaria a rejeitá-la nas múltiplas formas em que se expressa, ao mesmo tempo que retomamos o nosso compromisso com a integridade comunitária na direção da liberdade”. (Ibid., p. 99). Lugones, portanto, pensa em raça, gênero e sexualidade como co-constitutivos. Em seu texto “Subjetividad esclava, colonialidad de género, marginalidad y opresiones múltiples”, escrito enquanto viveu na Bolívia, ela afirma que:
“[…] Raça, classe e gênero são inseparáveis e a intersecção das categorias homogêneas dominantes apagam a heterogeneidade interna e apagam a raiz afro-americana, a afro-caribenha, a cherokee, a sioux, a navajo, a africana, indo-Caribenha, afro-colombiana, afro-latino-americana, guarani, mapuche, aimara, toba, quíchua”. (Lugones, 2012, p. 4-5)
Resistências: interseccionalidade em discussão
A socióloga afro-americana Patricia Hill Collins escreve um livro fundamental para Lugones: “Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment”, publicado originalmente em 1990, no qual analisa o trabalho de três das mais prestigiosas feministas que representam o “pensamento negro”: Angela Davis, Alice Walker e Audre Lorde. Na aula magistral que ministrou para o nosso círculo de alunos, explicou:
“A matriz de dominação de uma sociedade é ordenada por intersecções e esses domínios correspondem ao econômico, o político e o ideológico. Esses eixos se cruzam de modo que os eixos das mulheres negras não podem ser pensados nos mesmos termos que os das mulheres medievais, sob o feudalismo. Sem esses eixos de intersecção entre raça e gênero, não é a mesma dominação. Então é preciso entender a construção do estereótipo da mulher negra em torno da sua hipersexualidade e sua forma de resistir a essa matriz de dominação”
Enquanto isso, ela mantinha certa crítica às ideias de Hill Collins. Para Collins, uma única mulher pode resistir, enquanto para Lugones:
“[…] a resistência vem da participação alternativa de uma comunidade que é anticapitalista, antirracista, antissexista, uma comunidade que tem um sistema de valores diferente. A resistência das mulheres negras em enfrentar essa dominação acontece em termos interseccionais, porém, suas vivências são diferentes e elas se diferenciam entre si na forma de responder”
O standpoint de Patricia Hill Collins foi questionado por Maria Lugones, porque ela adverte que não se trata do “ponto de vista do grupo”, pois o próprio grupo é heterogêneo em uma realidade que é afetada por esses dois domínios de opressão que são o gênero e a raça. Segundo Lugones, a resistência é necessariamente dialógica. Lugones acredita que para as mulheres negras, assim como para outras pessoas de cor, existe uma comunidade alternativa. E esse diálogo é formal e informal, mantido por mulheres em situações diferentes, ativistas da prática cultural, assim como mulheres intelectuais. Essas últimas não podem renunciar ao seu papel de ativistas; caso contrário, a sua voz não será incluída no diálogo.
Segundo Lugones, a ideia de interseccionalidade é importante, mas não define libertação ou resistência, mas simplesmente define a situação, poderíamos dizer, desde um ponto de vista meramente descritivo.
“[…] pessoalmente, penso na possibilidade da atividade, de um agir que pode ser mínimo, porém importante apenas se a pessoa for impura, ou seja, se ela não é alguém que valoriza a homogeneidade ou a pureza em si mesma, tampouco o que constrói o social, mas sim alguém em quem raça e gênero se fundem, e que nessa fusão continua a ser oprimida: há uma correlação resistindo. Vejo que em Hill Collins trata-se de um ser pré-social. Para mim, a mulher é social. Quando esse sujeito social está sendo oprimido, ele resiste, não há ninguém resistindo sem estar sendo oprimido, e vice-versa. Eu coloco no gerúndio”
A política da interseccionalidade de raça, classe, gênero e sexualidade, já presente em outra afro-americana, Kimberlé Williams Crenshaw (1995), pode ser encontrada no texto intitulado: “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”. No caso de Crenshaw, a ausência da mulher negra na lei define um mecanismo de apagamento. A interseccionalidade revela o que não é visto quando categorias como gênero e raça são conceituadas como separadas umas das outras.
Para Lugones, o feminismo de cor coloca em tensão as categorias “mulher” ou as categorias raciais “preto”, “hispânico”, uma vez que homogeneizam e elegem a dominante, no grupo, como norma; portanto, “mulher” seleciona fêmeas burguesas brancas heterossexuais como a norma; “preto” seleciona machos heterossexuais negros, e assim por diante. Dada a construção de categorias, o exercício de intersecção mostra que entre “mulher” e “negro” existe um vão que a “mulher negra” deve ocupar, uma vez que nem “mulher” nem “negro” a incluem. A autora evidencia como a interseccionalidade mostra o que se perde e se propõe a reconceituar a lógica da interseccionalidade para evitar a separação das categorias dadas. Isso significa que o termo “mulher”, por si só, não faz sentido, ou tem sentido racial, uma vez que a lógica categórica selecionou um grupo dominante: as mulheres burguesas brancas heterossexuais e, portanto, como ela declara, ” esconde o abuso e a desumanização que a colonialidade de gênero implica” (Lugones, 2008, p. 25).
Outros temas e conceitos
Um conceito extremamente valioso de Lugones é o de “coalizão” e “fusão”. Ela propõe um movimento de “segundo desmascaramento”, como ela mesma define, em cujo trânsito há um impulso para a coalizão dentro da lógica da fusão.
“É porque cada fusão é vivida e compreendida relacionalmente e é possível avaliar se a relação é concebida ou não em termos categóricos ou em termos de fusão. Uma vez que a fusão é uma resistência a opressões múltiplas, pode-se também apreciar as maneiras pelas quais outros conceberam, moldaram culturalmente, teorizaram, expressaram e incorporaram sua resistência a opressões múltiplas. Também é possível entender como e em que medida essas resistências se apoiam ou se enfraquecem. Não se trata exatamente de possibilidades teorizadas, mas de possibilidades vividas. É por isso que buscamos a coalizão” (Lugones, 1995, p. 74).
Lugones conclui:
“Falamos de “Mulheres de cor” enquanto uma identidade de coalizão que se opõe aos monologismos, não enquanto um emblema racial. Como identidade de coalizão, procura identificações múltiplas, instáveis, historicamente situadas, por meio de diálogos complexos dentro da interdependência das diferenças não dominantes” (Ibid., p. 70)
Em opondo Crenshaw a Lorde, segue-se que a lógica da interseccionalidade é necessária para dar lugar à “lógica da fusão, da trama, da emulsão”: “Enquanto a lógica da interconexão deixa intacta a lógica das categorias, a lógica da fusão a destrói”, garante Lugones. E continua: “A fusão ou emulsão permite-nos ir à resistência.” (Lugones, 1995, p. 66).
Resistir no lugar de opressões sobrepostas cria entendimentos resistentes que possuem significado cultural na música, na arte, na teoria. “Não é possível nos emanciparmos apenas em termos teóricos” (Lugones, 1988, p. 23): ela não propõe pensar na maravilhosa antologia “Esta puente mi espalda: Voces de mujeres tercermundistas en los Estados Unidos”. Lugones recupera o tema da falsa dicotomia entre “teoria” e “prática” e, em seu livro Pilgrimages: Theorizing Coalition against Multiple Oppression (2003), oferece-nos uma pedagogia popular crítica para interpretar a resistência constituída por diferentes saberes marginais que ultrapassa as barreiras comunicacionais e cognitivas, na complexa passagem da “interseccionalidade” à “lógica da fusão”. As opressões sobrepostas e as barreiras de comunicação que apagaram a resistência das Mulheres de Cor esvaziam-nas de todo significado político e bloqueiam a memória política dos feminismos de cor.
Pilgrimages… – traduzido recentemente para o espanhol -, destaca os conceitos que foram utilizados na tradução – a saber: “alegria de brincar, viajar-mundos e percepção amorosa” – e que estão ligados aos de “identificação” e “amor”. María Lugones escreve: “Quando eu era criança, fui ensinada a perceber com arrogância. Eu também fui objeto de percepção arrogante. Embora eu não seja uma mulher branca anglo-saxã – o que é uma indicação de que o conceito de percepção arrogante pode ser usado transculturalmente e que os homens brancos anglo-saxões não são os únicos percipientes arrogantes. Criada na Argentina, observando homens e mulheres de recursos consideráveis enxertando a substância de seus servos em si mesmos, eu valorizava minha ascendência rural ‘gaucha’ porque o seu ethos sempre foi de independência na pobreza através de uma enorme solidão, coragem e autossuficiência. Eu encontrei inspiração neste espírito e nunca me comprometi a ser afetada por uma percepção arrogante”
Quando fala de “mundo”, Lugones explica que não apela a viajar a outros mundos femininos. Pelo tipo de confusão que considerou ontológica sobre si mesma ao se enunciar como “nós, mulheres de cor”, ela oferece algumas características que servem para distinguir entre um “mundo”, uma utopia, um mundo possível no sentido filosófico e uma visão do mundo. Por “mundo” ela não quer dizer uma utopia, pois os “mundos” de que fala são “possíveis, o que não significa uma cosmovisão, embora algo como uma cosmovisão esteja aí inserido. Somente quando viajamos para os “mundos” um do outro, estamos totalmente sujeitos um ao outro (concordo com Hegel quanto ao outro problema, mas discordo de sua afirmação de que isso requer tensão ou hostilidade)”.
Para Maria Lugones, conhecer o “mundo” de outras mulheres faz parte de conhecê-las e conhecê-las faz parte de amá-las. Viajar para o “mundo” de outra pessoa não significa ter intimidade com ela. “A intimidade é constituída em parte por um conhecimento muito profundo do outro e viajar pelo ‘mundo’ é apenas parte de ter esse conhecimento”.
A linguagem se move entre os mundos. Não sugere a sensação de pertencer a um lar, mas sim de sentir a experiência de ser diferente em cada um desses mundos. Em uma viagem entre mundos o eu torna-se plural. Para Lugones: “A mudança de ser uma pessoa para ser outra pessoa diferente é o que chamo de “viajar ” (1987: 11). O deslocamento da viagem (do eu) permite, assim, o encontro com o outro na sua diferença: cultural, racial, sexual. Essa possibilidade de atravessar as subjetividades e os seus lugares de enunciação é central na práxis feminista decolonial, na co-criação de um sentido de interdependência pluralista e inclusiva. Mas é por “necessidade” que as mulheres negras nos Estados Unidos praticam a “viagem pelo mundo” como um exercício habilidoso, criativo, enriquecedor, uma forma amorosa de ser e de viver. Para a autora, “viajar” tem um valor enorme em nossa vida e é uma conexão com o amor.
A Associação Filosófica do Caribe concedeu a Maria Lugones o Prêmio Frantz Fanon pelas suas contribuições à teoria política decolonial (LACAS, 2020), reconhecendo-a como “ancestral”.
Obras, literatura secundária e outros materiais
Alguns dos trabalhos mais importantes de Maria Lugones são:
LUGONES, M. “Toward a Decolonial Feminism”, Hypatia, vol. 25, núm. 4, págs. 742-759, 2010; https://www.jstor.org/stable/40928654.
LUGONES, M. “The Coloniality of Gender”, Worlds & Knowledges Otherwise, núm. 2, págs. 1-17,2008; http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1794-24892008000200006
LUGONES, M. “Colonialidad y género”, Tabula Rasa, núm. 9, págs. 73-101, 2008; https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
LUGONES, M. “Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System”, Hypatia, vol. 22, núm. 1, págs. 186-209, 2007; https://www.jstor.org/stable/4640051
LUGONES, M. “On Complex Communication”, Hypatia, vol. 21, núm. 3, págs. 75-85, 2006; https://www.cambridge.org/core/journals/hypatia/article/abs/on-complex-communication/C9C30A1F23BDFC225D05C217C9D30FE8
LUGONES, M. “Multiculturalismo radical y feminismos de mujeres de color”, Revista Internacional de Filosofía Política, núm. 25, págs. 61-76, 2005; https://www.redalyc.org/pdf/592/59202503.pdf
LUGONES, M. Peregrinajes/Pilgrimages: Theorizing Coalition Against Multiple Oppressions, New York, Rowman & Littlefield Press, 2003
LUGONES, M. & JOSHUA, P. “The Inseparability of race, class, and gender”, Latino Studies Journal, vol. I, núm. 2, págs. 329-332, 2003; https://www.academia.edu/1571211/The_Inseparability_of_Race_Class_and_Gender_in_Latino_Studies
LUGONES, M.“Impure Communities”, en Philip, Anderson (ed.), Diversity and Community: An Interdisciplinary Reader, Oxford, Blackwell Publishers, págs. 58-64, 2002;
LUGONES, M.“Wicked Cab: on the Authority of Improper Words”, en Frye, Marilyn & Hoagland, Sarah Lucia (eds.), Essays in Honor by Mary Daly, New York, Routledge, 2000;
LUGONES, M.“The Discontinuous Passing of the Cachapera/Tortillera from the barrio to the bar to the Movement”, en Bar-On, Ami & Ferguson, Aim, Daring To Be Good: Feminist Essays in Ethico-Politics,New York, Routledge, págs., 159-167, 1998;
LUGONES, M. “Tenuous Connections in Impure Communities”, Ethics and the Environment, vol. 4, núm. 1, págs. 85-90, 1999;
LUGONES, M. “Motion, Stasis, and Resistance to Interlocked Oppressions”, en Hardy Aiken, Susan et al., Making Worlds: Gender, Metaphor, Materiality, The University of Arizona Press, págs. 49-53, 1998;
LUGONES, M.“Enticements and Dangers of Community for a Radical Politics”, en Jaggar, Alison & Young, Iris, Blackwell Companion to Feminist Philosophy Oxford, Blackwell Publishers, 1998;
LUGONES, M.“Hard to Handle Anger”, en Bell, Linda A. & Blumenfeld, David, Overcoming Racism and Sexism.Lanham, Rowman & Littlefield, págs. 203-218, 1996; “Purity, Impurity, and Separation”, Signs, vol. 19, núm. 2, págs. 458-479, 1994;
LUGONES, M.“Borderlands/La Frontera: An Interpretive Essay”, Hypatia, vol. 7, núm. 4, págs. 31-37, 1992; https://www.cambridge.org/core/journals/hypatia/article/abs/on-borderlandsla-frontera-an-interpretive essay/610E37EE15885BD57207B07B68279E3E
LUGONES, M. “Structure/Antistructure and Agency Under Oppression”, Journal of Philosophy, vol. 87, núm. 10, págs. 500-507, 1990; https://www.pdcnet.org/jphil/content/jphil_1990_0087_0010_0500_0507
LUGONES, M.“Playfulness, “World”-Travelling, and Loving Perception”, Hypatia, vol. 2, núm. 2, págs. 3-19, 1987. https://www.jstor.org/stable/3810013
LUGONES, M. “Peregrinajes. Teorizar una coalición contra mútiples opresiones” Buenos Aires: Ed. El Signo. 2021.
LUGONES, M. Rumo a um feminismo decolonial. REF, Vol 2 Nº 3. UFSC. 2014.https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755
Literatura secundária
MARIM, C.. CASTRO, S. Políticas da Resistência: homenagem à María Lugones. Porto Alegre: Ed. Fundaçao Fénix. 2020. disponível para leitura: https://www.fundarfenix.com.br/60-políticas-de-resistência
Bibliografia referida
CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color.” In: KIMBERLE, Crenshaw; NEIL Gotanda; GARY Peller; KENDALL Thomas. Critical Race Theory. NuevaYork: The New Press, 1995.
GLISSANT, Edouard. Caribbean Discourse. Chariottesville: University Press of Virginia. 1989.
HILL COLLINS, Patricia. Black Feminist Thought. Nueva York: Routledge, 2000.
HIRSCH Jr., E. D. Cultural Literacy: What Ever y American Needs to Know. Boston, 1987.
LORDE, Audre. “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House.” LORDE, Audre. Sister Outsider. Taimansburg: The Crossing Press, 1984.
Lugones, María (1987) “Playfulness, “World”-Travelling, and Loving Perception”. Hypatia. 2 (2) pp. 3-19.
LUGONES, María; Joshua PRICE. “Dominant Culture: El deseo por un alma pobre”. In: HARRIS A. Dean (Ed.). Multiculturalism from the Margins. Wesport: Bergin & Garvey, 1995.
LUGONES, María. Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalition against Multiple Oppressions. Lanham: Rowman & Littlefield. Long and Wide Selve.i., 2003.
LUGONES. “Multiculturalismo radical y feminismo de las mujeresde color” Revista Internacional de Filosofía Política. Madrid, n. 25. Traducción de Joaquín Rodríguez Feo. 2005.
LUGONES. “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, n. 9, jul./dic., p. 73-101, 2008. Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, Bogotá, Colombia.
LUGONES, María (2010). Hacia un feminismo decolonial. Hypatia, vol. 25, N. 4, Otoño.
LUGONES. “Subjetividad esclava, colonialidad de género, margi nalidad y opresiones múltiples”. In: Serie Foros 2 Pensando los feminismos en Bolivia. Conexión Fondo de Emancipaciones. 2. La Paz, Bolivia, 2012. (Serie Foros). Disponible en: <http://www .conexion.org.bo/uploads/Pensando_los_Feminismos_en_Bolivia.pdf>. 17 oct. 2014.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo yAmérica Latina” en LANDER, Ed. Colonialidad del Saber,Eurocentrismo y Ciencias Sociales. CLACSO, Bs. As., 2000. p. 201-246.
SEGATO, Rita. “Género y colonialidad: en busca de claves de lectura y de un vocabulario estratégico decolonial”, en Bidaseca, Karina (Co-comp.) Feminismos y poscolonialidad. Descolonizando el feminismo desde y en América Latina. Bs. As.: Ed. Godot, 2011. p. 291-306.
Tradução de Natalia Costa Rugnitz