Mary Astell
(1666 – 1731)
por Yasmim Pontes, formada em Letras e mestranda
em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora
da Cátedra UNESCO para a História das Mulheres e bolsista da CAPES – Lattes

Nascida em 1666, em Newcastle, Mary Astell foi a única filha de uma família respeitada e abastada, com fortes laços monarquistas. Seu pai, um cavalheiro e membro da Companhia de Mercadores, detinha considerável poder e influência na cidade. Como era comum para as mulheres de sua época, é provável que Astell não tenha recebido uma educação formal. No entanto, durante seus primeiros anos, ela recebeu instrução de seu tio, um clérigo do Emmanuel College em Cambridge.
Após a morte de seu pai, em 1678, sua família passou por tempos difíceis. Por um período, a família de Astell dependeu de doações e empréstimos para renda. Assim que sua mãe morreu, Astell mudou-se para a cidade de Chelsea onde, inicialmente, procurou o patrocínio de William Sancroft — um arcebispo de Canterbury — enviando-lhe uma série de poesias. Ao que tudo indica, Astell consegue construir uma amizade com Lady Mary Wortley Montagu, o que lhe permitiu adentrar em um ciclo social de intelectuais, o que possibilita que ela conserve como suas principais patrocinadoras Lady Ann Coventry (que doou fundos para a implementação para a escola de meninas propostas por Astell) e Lady Elizabeth Hasting (que também, preocupada com e educação das mulheres, fundou, em 1709, uma escola para meninas em Chelsea apoiada pela Society for the Propagation of Christian Knowledge). É evidente que Astell continua seus estudos em filosofia, religião e política, pois, após manter um vasto diálogo com John Norris, um dos seus primeiros apoiadores, Astell é reclamada pelo filósofo para que publique Letters Concerning the Love of God [Cartas sobre o Amor de Deus] (1695), onde ela expõe sua argumentação filosófica e pensamentos teológicos. Além disso, Astell ainda se torna próxima de Lady Mary Wortley Montagu, autora conhecida pela obra Letters From the East [Cartas do Oriente] (1724) para cuja publicação Astell escreve um prefácio. Em Chelsea, Astell também conhece a Duquesa de Mazarina, cujo divórcio inspira a criação de sua principal obra, Some Reflections Upon Marriage [Algumas Reflexões sobre o Casamento] (1700). Ao que parece, a escritora viveu uma vida discreta, dedicando-se ao estudo e às publicações. Por permanecer solteira, as amizades que cultivou durante a vida, principalmente com as mulheres, foi de grande importância, uma vez que é Lady Catherine — filha do conde de Ranelagh — que permaneceu ao lado de Astell durante a sua morte causada por um câncer de mama, em 1731.
Além da publicação de suas obras em livros, Astell viveu um período em que se dedicou à panfletos políticos e filosóficos, são eles:
- An Impartial Enquiry into the Causes of Rebellion and Civil War in This Kingdom [Uma investigação imparcial sobre as causas da rebelião e da guerra civil neste reino] (1704)
- The Christian Religion as Profess’d by a Daughter of the Church of England [A religião cristã professada por uma filha da Igreja da Inglaterra] (1705)
- Bartelmy Fair or an Enquiry after Wit in which due Respect is had to a Letter concerning Enthusiasm [Bartelmy Fair ou uma investigação sobre o humor em que se deve ter o devido respeito a uma carta sobre entusiasmo] (1709)
Sua primeira obra publicada exclusivamente sobre o assunto da educação feminina, A Serious Proposal To The Ladies For the Advancement of their True and Greatest Interest [Uma proposta séria às mulheres para o avanço de seu verdadeiro e maior interesse] (1694), foi dividida em dois volumes que abordam uma teoria da educação direcionada às mulheres. Porém, o primeiro objetivo de Astell com Serious Proposal I, não foi alcançado, uma vez que o cenário inglês passava pela Reforma Protestante, o que extinguiu a criação de conventos e o seu projeto não pode se concretizar, já que remontava às características dessas instituições. Com esse fracasso, Astell publicou Serious Proposal II para que as mulheres pudessem se instruir em casa. Posteriormente, a pedido de John Norris, Astell publicou parte de sua correspondência com o filósofo sob a forma de texto, intitulado Letters Concerning the Love of God [Cartas Sobre o Amor de Deus] (1695). Em 1700, publicou Some Reflections Upon Marriage [Algumas Reflexões sobre o Casamento], onde faz uma crítica contundente ao casamento como um regime de escravidão para as mulheres. Em 1705, publicou suas teorias educacionais religiosas em The Christian Religion As Profess’d by a Daughter of the Church of England [A Religião Cristã Professada por uma Filha da Igreja da Inglaterra].
Obras
Ao contrário de seus contemporâneos, como John Locke, Gottfried Wilhelm Von Leibniz, Baruch Spinoza e George Berkeley, Mary Astell estava profundamente preocupada com a falta de educação enfrentada pelas mulheres de sua época. Para ela, essa lacuna educacional contribuía para que as mulheres adquirissem vícios e se distanciassem da sabedoria, virtude e felicidade plena.
Astell enfatiza, alinhando-se com a filosofia moral de Platão, as virtudes da sabedoria e a importância da educação: devemos nutrir nossos espíritos em vez de focarmos em coisas materiais. Como racionalista, Astell concordava com Platão e Descartes que o verdadeiro conhecimento é alcançado pelo raciocínio, e não pelos sentidos, e através do domínio da mente sobre o corpo. Porém, apesar de estar preocupada com a educação das mulheres, Astell não tem o objetivo de subverter a hierarquia política ou social, mas sim de tornar as mulheres donas de si mesmas por meio de uma educação religiosa e virtuosa:
Não é nossa intenção que as mulheres ensinem na igreja ou que usurpem a autoridade onde isso não é permitido; mas apenas tolere que entendamos qual é o nosso dever e que não sejamos forçadas a aceitar e confiar no que os outros pensam; Permitam-nos, pelo menos, ser instruídas para poder conceber em nossas mentes os fundamentos autênticos do cristianismo (Astell, 1694, p. 57)
Astell afirma que o caminho comum apresentado às mulheres as tornavam tolas e estúpidas, seria necessário, então, quebrar o vício comum para o aperfeiçoamento da alma. Sendo assim, os maus costumes — “perseguir borboletas e outras ninharias” -— resultaria, portanto, em uma “influência perniciosa”:
A deficiência, se houver, é adquirida e não natural; E esta estupidez também não é inevitável, mas poderia ser evitada se assim o desejarem. Com efeito, as mulheres sofrem uma série de desvantagens e veremos quais são para tentar superá-las. Mas as mulheres não têm de se dedicar a ocupações triviais, pois são capazes das maiores realizações. Nem Deus nem a natureza lhes negaram a capacidade de serem o adorno da sua família e úteis à sua geração. (Astell, 1694, p. 17)
A citação acima mostra um aspecto importante da teoria de Astell: ela acreditava que Deus criou mentes iguais para serem igualmente desenvolvidas e que a recusa dessas oportunidades era uma afronta direta à Deus. Sendo assim, a educação dada às mulheres deveria não se limitar apenas ao aspecto formal, mas também uma educação voltada para servir a Deus. Sendo assim, a autora sugeria que o mosteiro serviria como um local para “diversões mais gratificantes para aquelas que estão convencidas do vazio dos prazeres terrenos” (Serious Proposal I, p.41). Dessa forma, afastando as mulheres dos maus costumes instaurados na sociedade.
Em A Serious Proposal To The Ladies For the Advancement of their True and Greatest Interest (1694), Astell desenvolve uma teoria que distinguia dois tipos de mulheres: o primeiro, caracterizado por uma mente fraca e viciosa, era superficial e preocupava-se apenas com a beleza exterior, negligenciando o desenvolvimento interior da mente. Por outro lado, o segundo tipo de mulher, idealizado por Astell, compreendia que sua felicidade não dependia senão de sua própria mente. Essa mulher viveria com propósito, buscando incessantemente a sabedoria. Astell considerava que na educação estava a possibilidade de oferecer às mulheres um caminho diferente do casamento, um caminho que não fosse centrado nos homens, mas nelas mesmas:
Pois quando a paixão de um amante se evapora na indiferença de um marido, e o habituar-se a essa companhia diminui o fascínio que os encantos provocados no início, só será preservado o respeito formal que a decência e a boa educação exigem, e talvez nem isso; A menos que seja um homem excepcional (e, de fato, o mundo ainda não está cheio deles), os escassos méritos da esposa farão com que perca o direito ao afeto, que quase nunca permanece, exceto na forma de veneração e estima. Enquanto uma mulher sábia e compassiva é útil e valiosa em todos os momentos e situações; aquela que se preocupa com a única coisa que é necessária e boa e que ninguém jamais lhe tirará, vive uma existência alegre e plácida, inocente e calma, pacífica e sedativa, e finalmente faz uma saída gloriosa; ser transferido da vida mais afortunada da terra para uma felicidade indescritível no céu; (Astell, 1694, p. 119)
O que ela procurava e desejava era uma existência plena, onde as mulheres pudessem gerir as suas vidas sem a dependência de um homem ou de um casamento infeliz.
A sociedade da época incentivava o primeiro tipo de mulher. Conforme expresso em sua afirmação: “As mulheres são, desde a sua mais tenra infância, privadas dessas vantagens [a educação], por cuja falta são depois reprovadas, e são criadas nesses vícios que mais tarde lhes serão censurados (Idem, p. 60). Nesse contexto, Astell via a reclusão das mulheres da sociedade como a única maneira de quebrar esse ciclo prejudicial, permitindo a criação de uma comunidade dedicada à educação feminina, onde, posteriormente, as freiras poderiam influenciar positivamente a sociedade. Astell acreditava que, ao se afastarem do mundo cotidiano, as mulheres estariam protegidas dos perigos éticos que as tentavam para a vaidade, inconstância e orgulho. Essa reclusão possibilitaria que desenvolvessem hábitos positivos, guiando-as em direção à virtude e à sabedoria. Com tempo para reflexão e autoconhecimento, Astell acreditava que as mulheres poderiam alcançar seu pleno potencial.
Em Some Reflections Upon Marriage (1700), a autora faz uma crítica ao casamento baseada na história da Duquesa de Mazarine, que nasceu em Roma em 1646. Quando mais velha, atraiu muita atenção devido à sua extrema beleza, se casando com o Duque de Meilleraye que trocou de nome -— para Mazarine — após receber uma enorme fortuna — infelizmente, o casamento não foi bem sucedido, o que fez com que a duquesa fugisse disfarçada de homem:
A curiosidade, que às vezes é uma ocasião para o Bem, e muito frequentemente para o Mal, por perturbar o nosso Próprio, ou o Repouso do nosso Vizinho, tendo-me levado a ler o Caso do Duque e da Duquesa de Mazarine; pensei que uma Tarde não seria completamente desperdiçada em perseguir algumas Reflexões que ele ocasionou. O nome de Mazarine é considerável o suficiente para atrair os olhos dos curiosos, quando alguém se lembra do barulho que ele fez na Europa. (Astell, 1700, p. 2)
Astell destaca o fato de que os homens não se casam por boa vontade em relação às mulheres, mas sim por motivações básicas, como ‘cobiça’ –— desejo desordenado — e outras paixões excessivas. Primeiro, diz ela, existem aqueles homens que se casam por ‘amor à beleza’, um desejo carnal de possuir uma mulher atraente só para eles. Em segundo lugar, há aqueles que se casam pelo desejo de dinheiro, a fim de aumentar sua riqueza: “Não há grande diferença entre casar por amor ao dinheiro ou por amor à beleza, pois em nenhum dos casos o homem age com sensatez, mas antes se deixa levar por apetites desordenados.” (Astell, 1700, p. 31) Então, qual seria o motivo mais razoável para um casamento alcançar a sua felicidade? Para Astell, uma mulher que é admirada pela sua inteligência (sabedoria) chegará mais próximo do padrão que se pode alcançar:
[…] mas como a existência de casamentos felizes não só é possível, mas também bastante provável, se formos prudentes, agirmos com sabedoria e fé cristã, e nos comportarmos adequadamente (Astell, 1694, p. 20 ).
A instituição cristã do matrimónio oferece o melhor cenário possível para alcançar a paz e a alegria doméstica, bem como para a educação dos filhos (Astell, 1694, p. 22)
Aos olhos de Astell, o amor pela beleza, riqueza e inteligência nunca poderiam ser motivos moralmente sólidos para se casar. Para entender o porquê, devemos nos voltar às cartas que Astell trocou com John Norris, nas quais ela destaca os sentimentos de vazio e insatisfação que resultam de amar outras pessoas com um amor que somente envolve a cobiça.
Sendo assim, para evitar a infelicidade, devemos aprender a controlar a nossa vontade para regular as paixões excessivas como orgulho, desejo e vaidade. A felicidade só pode ser alcançada através da virtude e, para isso, é necessário desenvolver a disposição correta de caráter, que, por sua vez, é uma disposição de espírito em que a generosidade e a caridade são os principais traços.
Porém, Astell deixa claro em seu texto que a culpa por um casamento infeliz não vem somente do lado masculino, mas o lado feminino também tem a sua parcela de culpa, já que, na maioria das vezes, é possível que haja uma recusa por parte da mulher:
Mas será que as mulheres nunca erram na sua escolha? Os homens são os únicos culpados? Não é isso que estou sugerindo, já que, para ser justo, deve-se reconhecer que nenhum dos sexos está completamente certo. Na realidade, não se pode dizer que a mulher escolha, tudo o que lhe é permitido fazer é rejeitar ou aceitar uma proposta. (Astell, 1700, p. 37)
Por outro lado, a infelicidade deles é inteiramente o resultado de sua própria falha moral — uma falha em regular suas vontades e governar suas paixões de acordo com a razão. Ao contrário das mulheres, os homens têm todas as vantagens de poder e educação para ajudá-los a tomar decisões prudentes.
Então, por quais motivos se casar? Não surpreendentemente, a resposta de Astell é que os homens devem se casar por motivos de benevolência ou boa vontade amorosa. Em um mundo ideal, um homem faria da amizade com a sua esposa o principal incentivo para escolhê-la, para que assim pudesse preferi-la antes de qualquer outra consideração. Para Astell, a amizade consiste em querer o bem da outra pessoa, ela segue Norris, afirmando que a manutenção de tal amizade exige que consideremos nosso amigo como ‘outro de mim’, e considerando o eu essencialmente como alma. Seguindo uma lei do século XVII, quando um homem e uma mulher se casavam, tornavam-se ‘uma só pessoa’, no sentido de que a existência legal da mulher era subsumida à de seu marido. Sendo assim, uma vez que ela tenha se tornado uma esposa, suas propriedades passam para o marido, que ganha o direito de dispor delas como achar adequado. Por meio de um acordo de casamento, uma mulher poderia tomar certas precauções para não perder suas terras e bens depois de casada, contudo, Astell acrescenta que: “acordos entre Marido e Mulher, assim como Leis em um Governo arbitrário, são de pouca força, a vontade do soberano é tudo em todos” (Astell, 1700, p. 52). A partir do momento em que se casavam, as mulheres entravam em um estado de incerteza e insegurança — elas não podiam ter a convicção de que seriam bem tratadas no futuro; e se não o fossem, se o marido olhasse desfavoravelmente para elas, as mulheres não teriam meios de reparação ou recurso à lei por quaisquer danos ou injustiças cometidas. Mesmo que o marido fosse gentil e honrado, ele ainda seria o mestre absoluto sobre ela. Sendo assim, em Some Reflections, Astell caracteriza o casamento como o estado de estar sujeito ao poder absoluto e a vontade de outrem e que não há recurso às leis por quaisquer danos ou injustiças cometidas:
Visto que a esposa permanece inteiramente sob o poder do marido, se o jugo conjugal se revelar insuportável, nem a lei nem o costume, dispensam a indenização que o marido obtém. Quem goza do poder soberano não considera as provocações de um súdito rebelde, mas sabe subjugá-lo com facilidade e se obrigará a obedecer; (Astell, 1700, p. 45)
Nesse contexto, Astell adota o conceito de escravidão delineado por John Locke, para quem esta condição se caracteriza pela submissão ao inconstante, incerto, desconhecido, à vontade arbitrária de outro homem. Embora Locke defenda que os seres humanos não podem voluntariamente se sujeitar à escravidão, Astell argumenta que as mulheres muitas vezes são coagidas ou ludibriadas a entrar em matrimônio devido aos costumes sociais predominantes. A citação mais conhecida da autora diz: “Se todos os homens nascem livres, por que as mulheres nascem escravas?” (Astell, 1700, p. 152).
Astell via no casamento um dos principais instrumentos de opressão das mulheres, destacando como muitas vezes elas eram enganadas ou forçadas a entrar nessa instituição contra sua vontade. Ao adotar o conceito de escravidão delineado por John Locke, Astell destaca como as mulheres se encontram submetidas à vontade arbitrária de seus maridos, enfrentando uma condição marcada pela incerteza e falta de controle sobre suas próprias vidas. Porém, é no casamento que Astell observa que as mulheres podem alcançar a glória do reino dos céus:
Mesmo que não seja vantajoso para você neste mundo, quando bem realizado, o casamento pode ser um mérito para alcançar a glória eterna. Pois aquela que se casa exclusivamente para fazer o bem, para educar os outros na salvação da sua alma, chegando ao ponto de se mortificar a ponto de renunciar à sua própria vontade e aos seus desejos, a prestar uma submissão abnegada e vitalícia a alguém de quem ninguém pode garantir que sempre o merecerá, de fato, ao se casar empreende um ato de heroísmo superior ao dos homens épicos, pois suportará um martírio contínuo para a glória de Deus e o benefício da Humanidade, pensamento este que pode ajudá-la a superar todos as dificuldades. (Astell, 1700, p. 123)
Em seu chamado à reflexão e mudança, Astell oferece uma visão alternativa do casamento, onde a amizade e a benevolência amorosa deveriam ser os motivos primários para o matrimônio. Sua crítica incisiva às motivações baseadas na beleza, riqueza ou inteligência ressoa até os dias de hoje, lembrando-nos da importância de cultivar relacionamentos fundamentados na virtude e no respeito mútuo.
Teoria da educação proposta por Mary Astell
O projeto de educação proposto em A Serious Proposal to the Ladies for the Advancement of their True and Greatest Interest [Uma Proposição Formal às Damas para o avanço de seus verdadeiros e maiores interesses] (1694) visava estabelecer uma comunidade educacional semelhante a um retiro religioso. Mary Astell provavelmente foi influenciada por vários autores que discutiam a educação feminina, como Juan Luis Vives, que escreveu De Institutione Christianae Feminae [A Educação da Mulher Cristã] em 1523, promovendo a educação das mulheres; François Fénelon, autor de De L’Education des Filles [A Educação das Filhas]; e Madame de Maintenon, amante de Luís XIV, que fundou a Maison Royale de Saint-Louis, a primeira escola para meninas na Europa, voltada para a educação de jovens da nobreza.
Ao elaborar sua teoria da educação, Mary Astell direciona-se a um grupo específico que ela denomina de “Religious”. Sua ideia inicial consistia na criação de um retiro exclusivo, onde as mulheres pudessem se isolar do mundo, promovendo, assim, a busca pela virtude e pelo conhecimento:
A minha proposta não é outra senão a de erigir um mosteiro ou, se preferirem, chamá-lo-emos de retiro religioso (para não ofender as pessoas mais escrupulosas e susceptíveis com um nome que, embora inocente, pode ter sido mal utilizado em práticas excêntricas). Como tal, terá uma dupla finalidade, sendo não apenas um local de retiro do mundo para quem deseja usufruir destas vantagens, mas também uma instituição cuja disciplina facilitará o exercício do Bem em toda a sua extensão. (Astell, 1694, p. 41)
Porém, a execução do retiro proposto por Astell não foi bem aceita, uma vez que a autora foi acusada pelo Bispo Burnet de estar desenvolvendo um Convento Anglicano. Sendo assim, seu plano não conseguiu ser implementado. Apesar disso, Serious Proposal Part I, traz consigo, talvez, a informação mais importante do trabalho de Astell: a afirmação da igualdade intelectual entre os sexos:
A deficiência, se houver, é adquirida e não natural; E esta estupidez também não é inevitável, mas poderia ser evitada se assim o desejarem. Com efeito, as mulheres sofrem uma série de desvantagens e veremos quais são para tentar superá-las. Mas as mulheres não têm de se dedicar a ocupações triviais, pois são capazes das maiores realizações. Nem Deus nem a natureza lhes negaram a capacidade de serem o adorno da sua família e úteis à sua geração. (Astell, 1694, p. 17)
Mary Astell aborda algumas questões políticas em seus escritos. Por um lado, ela discute como as mulheres de sua posição são dominadas pelos homens e pelas instituições que os apoiam. No entanto, Astell não teoriza sobre como essas mesmas mulheres — incluindo ela própria — foram favorecidas por sua posição social e origem nacional, bem como pelas instituições coloniais que sustentavam a sociedade de seu tempo. Em outras palavras, Astell teoriza sobre a dominação que ela e seu público feminino sofriam nas mãos dos homens, mas não sobre os privilégios que essas mulheres também possuíam.
Além disso, é igualmente importante reconhecer para quem Astell estava escrevendo. Astell se concentrava na educação e no desenvolvimento moral dessas mulheres, procurando elevar seu status através do conhecimento e da virtude. Suas propostas educacionais estavam voltadas para um grupo específico que, em seu contexto social e histórico, enfrentava limitações significativas em termos de acesso à educação e à autonomia intelectual.
Dessa forma, Astell apresentou duas propostas para a educação das mulheres a quem se dirige. A primeira é um mosteiro feminino que ela chamava de “Aposentadoria Religiosa”. A segunda proposta pode ser implementada fora dessa instituição. Esta segunda proposta provavelmente surgiu porque, conforme seus biógrafos apontam, a ideia inicial de Astell em A Serious Proposal to the Ladies I [Uma Proposição Formal para as Damas] não se concretizou devido a suspeitas de que visava restaurar conventos católicos. Em A Serious Proposal to the Ladies II, Astell enfatiza que o instituto teria um caráter mais acadêmico do que monástico. Decepcionada pela falta de apoio para a criação de sua academia, Astell escreve esta segunda parte para fornecer um método filosófico que as mulheres pudessem praticar em casa.
Astell, como os platônicos de Cambridge, sustentava que o ser humano é um ser “deiforme”, e divinamente imbuído de uma “partícula de Divindade” que existe “dentro” de sua alma (Serious Proposal, p. 53). Quando uma pessoa é saudável, essa divindade interior se expressa como uma “centelha de piedade” (p. 107). Mas quando as pessoas internalizam preconceitos que aprenderam com o “Costume Tirano” (p. 67), elas não alimentam esta partícula de Divindade, mas antes desenvolvem uma doença que traz consigo muitos preconceitos. A cura virá para as senhoras que ingressam na aposentadoria religiosa quando aprenderem como transformar cada “mancha” que se transformou em um preconceito que está estragando “a beleza de [suas] amáveis almas” (p. 87).
Para se curar, as “Senhoras” do aposentado religioso teriam que se envolver em práticas espirituais individuais e comunitárias que as ensinariam como “olhar para dentro” de suas próprias almas. Quando uma pessoa pratica o “olhar para dentro” de si mesma, do próximo e da comunidade, seu corpo e alma se reuniriam com esses corpos e almas adicionais, de modo que eles formariam “um só corpo, cuja Alma é o amor” (p. 87). Quando cada pessoa do grupo faz isso, a centelha de uma pessoa se junta à centelha de outra pessoa e, juntas, essas faíscas se uniriam em uma, “expirando-se em chamas de desejos sagrados por DEUS e atos de benevolência entre si” (p.87).
Astell afirma que, à medida que estas “Senhoras” se engajariam nessas práticas, elas estariam mais perto de alcançar uma condição espiritual aperfeiçoada que consiste em piedade, apreensão da verdade, generosidade e amizade, cada uma das quais é necessária para estas “Senhoras” buscarem suas próprias vocações.
Mary Astell se dedicou a fornecer um método pelo qual mulheres em uma comunidade monástica poderiam adquirir conhecimento. Ela explica detalhadamente como e por que esse método é eficaz, fundamentando-se em sua compreensão da natureza humana e do potencial para cair na ignorância.
Em Serious Proposal to the Ladies II, Astell sugere que as mulheres de seu público adotem seis regras para guiar suas reflexões metafísicas (pp.176-9):
- Familiarizar-se completamente com a questão: Ter uma compreensão clara e distinta do assunto em questão e dos termos utilizados, sabendo exatamente o que está sendo abordado.
- Eliminar ideias desnecessárias: Remover todas as ideias que não tenham uma conexão necessária com o tema em consideração, evitando distrações e focando no essencial.
- Conduzir os pensamentos de forma ordenada: Começar com os objetos mais simples e fáceis de entender, e gradualmente progredir para o conhecimento dos mais complexos.
- Examinar todas as partes do assunto: Não deixar nenhuma parte do tema sem exame minucioso, garantindo uma compreensão completa e detalhada.
- Manter o foco no assunto: Sempre manter o tema diretamente à vista e segui-lo de perto durante todo o progresso do estudo.
- Julgar apenas com base na percepção clara: Não julgar além do que é evidentemente percebido como verdadeiro, evitando suposições sem fundamento.
Ao implementar essas regras, Astell acredita que as mulheres podem alcançar uma compreensão mais profunda e estruturada dos temas metafísicos. Essas orientações não só facilitam a aquisição de conhecimento, mas também promovem um pensamento crítico e rigoroso. A abordagem de Astell destaca a importância de uma metodologia clara e disciplinada no processo de aprendizado, sublinhando seu compromisso com o desenvolvimento intelectual e espiritual das mulheres.
Além disso, essas regras refletem que Astell estava destoando dos filósofos de sua época ao incentivar um pensamento analítico e sistemático para as mulheres. Fornecendo essas ferramentas, ela empodera as mulheres a se tornarem pensadoras independentes e críticas, capazes de desafiar as normas estabelecidas e contribuir significativamente para o discurso intelectual de sua época.
As regras propostas por Astell são comparáveis às de Descartes em Discurso sobre o Método. Astell reconhece que, antes de qualquer reflexão, o meditador deve primeiro se libertar da situação cética criada pelos preconceitos sociais que adotou. Em vez de manter crenças apenas porque as autoridades as impõem, ou porque sempre foram aceitas, essas mulheres devem aprender a sustentar crenças que sejam evidentes. Para ajudar nessa tarefa, Astell sugere várias estratégias. Uma delas envolve refletir sobre como os preconceitos anteriores levaram ao erro e impediram a liberdade de pensamento. Outra estratégia é considerar como esses preconceitos permitiram que o ceticismo se enraizasse.
Na biblioteca do Magdalene College, em Cambridge, encontra-se uma coleção de livros que pertenceu a Mary Astell. Identificada pela bibliotecária Catherine Sutherland, essa coleção revela que Astell não só possuía, mas também estudava, obras de Descartes. Essa descoberta sugere fortemente que Astell foi inspirada e influenciada pelo autor ao desenvolver seu próprio método de raciocínio.
No entanto, Astell diverge do projeto cartesiano ao apresentar outra estratégia que suas discípulas podem utilizar para se libertar da situação cética. Essa estratégia envolve refletir sobre argumentos teleológicos que discutem o propósito da criação de Deus. Esses argumentos seriam destinados a ajudar a discípulo a perceber que Deus não o teria criado de forma naturalmente defeituosa, ou seja, naturalmente orgulhosa, vaidosa e impossível de ser melhorada. Ao contemplar esses argumentos, o discípulo é levado a buscar as perfeições que Deus lhe concedeu e o papel que desempenha em sua vida, assim como na comunidade e na criação como um todo. Através dessas considerações, o discípulo chegará à conclusão de que é um ser racional capaz e, portanto, deve buscar aprimorar sua racionalidade para cumprir o plano de Deus para a criação.
Sendo assim, através de seu método de raciocínio e das estratégias propostas, Astell oferece às mulheres uma poderosa ferramenta para o desenvolvimento intelectual e espiritual. Suas orientações proporcionam um meio para que as mulheres transcendam as limitações impostas pela sociedade da época, que frequentemente restringia o acesso feminino à educação e ao pensamento crítico. Ao enfatizar a importância de uma metodologia clara e disciplinada, Astell encoraja as mulheres a cultivarem habilidades analíticas e reflexivas, essenciais para o crescimento pessoal e intelectual.
Além disso, ao introduzir estratégias que envolvem a reflexão sobre a natureza dos preconceitos e a busca pelo conhecimento claro e evidente, Astell promove uma educação que é ao mesmo tempo introspectiva e expansiva. Ela convida as mulheres a se libertarem das imposições externas e a explorarem suas capacidades inatas, reafirmando sua dignidade e potencial como seres racionais.
A combinação de sua influência cartesiana com uma abordagem teleológica oferece uma perspectiva única que integra fé e razão. Astell sugere que, ao buscar a perfeição concedida por Deus e ao entender o papel de cada indivíduo na criação, as mulheres podem alcançar uma compreensão mais profunda e um propósito mais elevado. Essa visão holística do desenvolvimento humano destaca a interconexão entre o crescimento espiritual e intelectual, propondo uma educação que é tanto moral quanto mentalmente enriquecedora.
Em suma, a obra de Mary Astell representa um marco na história da educação feminina, desafiando as limitações impostas às mulheres e fornecendo-lhes as ferramentas necessárias para se tornarem pensadoras críticas e independentes. Sua contribuição perdura como um testemunho da importância da educação e da capacidade de todos os indivíduos, independentemente de gênero, alcançarem seu pleno potencial através do conhecimento e da reflexão.
Referências Bibliográficas
Literatura primária:
Obras de Mary Astell
- A Serious Proposal To The Ladies For the Advancement of their True and Greatest Interest (link para a obra no projeto Gutenberg https://www.gutenberg.org/files/54984/54984-h/54984-h.htm)
- Letters concerning the love of God between the author of the Proposal to the ladies and Mr. John Norris, wherein his late discourse, shewing that it ought to be intire and exclusive of all other loves, is further cleared and justified (Link da obra na Universidade do Michigan – https://quod.lib.umich.edu/e/eebo/A52424.0001.001?view=toc)
- Some Reflections Upon Marriage (Link para a obra na Livraria Digital da Universidade da Pensilvânia https://digital.library.upenn.edu/women/astell/marriage/marriage.html)
- The Christian Religion As Profess’d by a Daughter of the Church of England (Link para a obra via Google Books https://books.google.com.br/books?id=wpDcrMD7dgkC&printsec=frontcover &hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false)
Literatura secundária:
Broad, J., 2002a, Women Philosophers of the Seventeenth Century, Cambridge: Cambridge University Press.
Broad, J., 2002b, “Mary Astell (1666–1731)”, in British Philosophers 1500–1899, P.B. Dematteis and P.S. Fosl (eds.), Dictionary of Literary Biography 252, pp. 3–10.
–––, 2003, “Adversaries or Allies? Occasional Thoughts on the Masham-Astell Exchange”, Eighteenth-Century Thought, 1: 123–49.
–––, 2007, “Astell, Cartesian Ethics, and the Critique of Custom”, in Mary Astell: Reason, Gender, Faith, W. Kolbrener and M. Michelson (eds.), Aldershot: Ashgate, pp. 165–179.
–––, 2009, “Mary Astell on Virtuous Friendship”, Parergon: Journal of the Australian and New Zealand Association for Medieval and Early Modern Studies, 26(2): 65–86.
–––, 2014, “Mary Astell on Marriage and Lockean Slavery”, History of Political Thought, 35(4): 717–738.
–––, 2015, The Philosophy of Mary Astell: An Early Modern Theory of Virtue, Oxford: Oxford University Press.
–––, 2016, “Mary Astell and the Virtues”, in Feminist Interpretations of Mary Astell, Alice Sowaal and Penny A. Weiss (eds.), State College, PA: Pennsylvania State University Press, pp. 16–34.
Broad, J. and K. Green, 2009, A History of Women’s Political Thought in Europe, 1400–1700, Cambridge: Cambridge University Press.
Sowaal, Alice, “Mary Astell”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2023
Edition), Edward N. Zalta & Uri Nodelman (eds.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/sum2023/entries/astell/>.
Tom Almeroth-Williams, A head of her time Magdalene College Cambridge has discovered a treasure trove of women’s intellectual history. Disponível em: https://www.cam.ac.uk/stories/mary-astell-collection-magdalene-college
Linha do tempo
Sobre imagens
Considerando a condição financeira de Mary Astell e, por ter pedido a família muito nova, é pouco provável que ela tenha posado para algum retrato durante a vida. Porém, quando procuramos o nome da autora no principal site de busca fica evidenciada uma imagem:

Após uma pesquisa iconográfica, ficou evidente que o quadro em questão foi pintado por Joshua Reynolds (1723-1792), um dos principais retratistas de sua época. No entanto, surge um ponto de estranhamento em relação à data de nascimento do pintor, pois Mary Astell faleceu em 1731, o que torna improvável que Reynolds, que teria apenas oito anos na época, pudesse ter pintado seu retrato. Além disso, Reynolds costumava nomear seus retratos com o nome da pessoa representada, mas o título deste quadro é ‘Portrait Study of a Young Lady’ [Estudo de retrato de uma jovem], o que reforça a conclusão de que o retrato não pode ser de Mary Astell.
No verbete do Project Vox atribuído à autora, há uma menção da obra de Ruth Perry (1986), The Celebrated Mary Astell: An Early English Feminist [A celebrada Mary Astell: uma das primeiras feministas inglesas], onde ela inclui a imagem de uma mulher anônima, contemporânea a Astell, onde podemos imaginar como a autora poderia parecer:

Sobre as traduções
Gostaria de deixar uma nota sobre as traduções que foram feitas aqui: não há nenhuma obra da Astell traduzida para o português, portanto, as traduções feitas neste verbete se deram de forma livre, tentei me aproximar o máximo possível do original em inglês, porém, algumas palavras foram adaptadas de forma a deixar o texto mais coeso.