Gisèle Freund
(1908-2000)
Gabriela Reboredo Evora,
Doutoranda em Filosofia na UNICAMP.

© IMEC, Fonds MCC, Dist. GrandPalaisRmn / Gisèle Freund
Biografia
Em uma das primeiras páginas de sua autobiografia, Le Monde et Ma Camera (1970) [O mundo e minha câmera] Gisèle Freund faz um forte relato de como quase foi pega pelas tropas alemãs ao tentar fugir para Paris:
Sempre me lembrarei daquela noite de maio de 1933. Mais de trinta anos se passaram, mas cada detalhe ficou gravado na minha memória. O terror nazista assolava a Alemanha quando cheguei à estação ferroviária de Frankfurt, já era noite. A plataforma estava quase deserta; poucas pessoas se deslocavam naquela época […] ao me aproximar do trem, ouvi botas pesadas batendo nas pedras molhadas. As silhuetas de dois SS uniformizados se destacavam na penumbra enquanto eu subia no trem. Meu coração começou a bater forte. “Espero passar despercebida!” Eu era uma garota robusta de vinte anos. Meus cabelos castanhos caíam sobre os ombros; eu usava uma saia simples e uma jaqueta de camurça marrom. […] Ao amanhecer, o trem atravessava os subúrbios de Paris. Eram seis horas da manhã quando chegamos à Gare du Nord. Eu não suspeitava que todos os meus companheiros haviam sido presos e que eu nunca mais voltaria ao país onde nasci (Freund, 1970, p. 11-15).
Com essa narração, começamos esse texto deixando claro que a vida e a obra da autora vão conversar a todo momento, afinal, era uma judia vivendo no contexto da Segunda Guerra. Gisèle Freund nasceu em 1908, no distrito de Schöneberg, em Berlim, e veio de uma rica família judia. Seu pai, Julius Freund (1870–1941), um comerciante apaixonado pela arte alemã, foi o responsável por introduzi-la na fotografia, apresentando-a ao trabalho de Karl Blossfeldt e presenteando-a com sua primeira câmera, uma Voigtländer 6×9, que se tornou uma grande companheira de Gisèle por muitos anos. Dessa forma, a fotógrafa, como muitos na época, começou de forma amadora. É interessante observar que a fotografia abriu possibilidades para muitas mulheres nessa época, principalmente no que diz respeito a ter uma renda. Todavia, mesmo sendo uma das responsáveis por fotografar grande parte das transformações da modernidade, Freund ainda é apagada na história da técnica.
Em 1929, Gisèle Freund ingressou na Universidade de Frankfurt para estudar Sociologia, tendo aula com vários dos principais nomes do Instituto de Pesquisa Social, como Theodor Adorno e Max Horkheimer: “É precisamente no cruzamento da Escola de Frankfurt com a sociologia durkheimiana que reside a originalidade do trabalho de Freund” (Fernández, 2019). Durante seus anos na universidade, Freund fotografava constantemente a vida em Frankfurt. Em 1932, a fotógrafa chegou a documentar um comício de Primeiro de Maio, que foi um indício da ascensão do nazismo. Sobre esse fato, Freund escreveu que: “Em janeiro de 1933, Hitler tornou-se chanceler do Reich e estabeleceu sua ditadura na Alemanha. Muitos daqueles que fotografei naquele primeiro de maio de 1932 tornaram-se membros do partido nazista; outros acabaram em campos de concentração” (Meeker, 1999). Em 1933, a fotógrafa foi para Paris se refugiar, chegando à cidade apenas com uma mala, sua câmera Leica e seus filmes. Foi nesse período que, para se sustentar, Freund começou a realizar suas imagens de forma profissional, voltadas principalmente para o fotojornalismo, pois assim conseguia dinheiro vendendo para revistas da época.
Gisèle Freund continuou seus estudos na Sorbonne, recebida pelo filósofo Charles Lalo (1877-1953), que naquele ano assumiu a cadeira de Estética na universidade. Com auxílio dele, desenvolveu sua tese defendida em 1936, La Photographie en France au XIX siècle [A fotografia na França no século dezenove], considerada por muitos o primeiro escrito sobre a sociologia da fotografia. Por conta da sua clara paixão também pela pesquisa, além de fotógrafa, Freud se destacou no meio filosófico e sociológico. Além de sua tese, podemos citar como importantes aportes teóricos a obra Le monde et ma camera (1970) [O mundo e minha câmera] e Fotografia e Sociedade (1974), que, além de abordarem importantes considerações sobre a técnica, não abrem mão de explorar ao mesmo tempo as mudanças que a fotografia estava trazendo para a modernidade. Nesse sentido, Freund se aproximou muito dos intelectuais da Escola da Frankfurt – trabalhando diretamente com alguns deles, como foi o caso de Walter Benjamin –, pois analisava de que forma todo o conceito de arte estava sendo modificado no mundo moderno pelo advento das novas técnicas, além de entender como a indústria cultural se moldava pelo capitalismo, produzindo desejo, ou seja, transformando a arte em objeto de compra, ao invés da “arte pela arte”.
Além da amizade e troca intelectual com Walter Benjamin, Freund se inseriu muito rapidamente no círculo intelectual francês daquele período, isso porque logo em seus primeiros dias em Paris conheceu Adrienne Monnier (1892-1955), uma das mais importantes livreiras daquela época, dona da Maison des Amis des Livres. Além disso, ao saber que Gisèle Freund falava inglês fluentemente, Adrienne logo a apresentou para sua amiga Sylvia Beach (1887-1962), proprietária da Shakespeare and Company, livraria que ficava em frente à sua própria. Ambas eram muito famosas nos círculos literários e intelectuais da época, e praticamente todos os principais escritores, filósofos e artistas frequentavam suas livrarias: “A Shakespeare and Co. de Sylvia Beach era o ponto de encontro dos autores de língua inglesa, enquanto a Maison des Amis des Livres reunia os escritores franceses” (Freund, 1970, p. 60). Além de livraria, esses locais de certa maneira também eram editoras, inclusive, a primeira edição em francês do romance Ulysses de James Joyce foi publicada pela Maison des Amis des Livres. Foi também graças à Adrienne Monnier que a tese de doutorado de Freund foi publicada e apresentada à sociedade francesa. Por conseguinte, todo esse envolvimento com a parte intelectual da França incentivou Freund a nunca se dedicar somente à fotografia, não à toa, exerceu seu papel como escritora até os últimos anos de sua vida.
Embora tenha se naturalizado francesa em 1936, sua condição de judia a obrigou a fugir da França em 1940, por conta da invasão de Paris pelas tropas alemãs. Felizmente conseguiu se refugiar na Argentina, com a ajuda de Victoria Ocampo (1890-1979), importante intelectual argentina da época e que tinha conexões com intelectuais europeus, principalmente por ser a responsável pela revista Sur. Antes de falar dos anos de Freund na América Latina, é importante ressaltar que no momento em que a fotógrafa chega ao continente ainda não existia um conceito formado de uma fotografia latino-americana, sendo assim, a construção fotográfica aqui ainda era muito influenciada pelo que era realizado na Europa e nos EUA. Foi somente no ano de 1978 que a América Latina construiu uma identidade fotográfica marcante, graças à Primeira Mostra da Fotografia Latino-americana Contemporânea e ao Primeiro Colóquio Latino-americano de Fotografia que ocorreram no México naquele ano. O colóquio reunia fotógrafos de toda a América Latina, além de apoiantes de outros países. Freund, que já havia retornado para Paris nessa época, foi uma das participantes, demonstrando que, mesmo após sair do continente, ainda possuía por ele muita afeição e engajamento político pelos anos que passou aqui. Nesse evento, em que ocorreram várias palestras gratuitas que mesclavam teoria e prática, Gisèle Freund contribuiu com o curso nomeado “El retrato”, no qual fez uma recapitulação de sua carreira e dos anos que passou fotografando os intelectuais europeus. Além disso, a fotógrafa escreveu o artigo “Mexico hosts first Latin American conference on photography” [México sedia o primeiro congresso latino-americano de fotografia], publicado em outubro de 1978 na revista Afterimage. De acordo com Ferrer (2016), Freund contribuiu com muito além de sua participação no congresso, pois:
No caso do Primeiro Colóquio, em nosso critério, a principal fonte […] será encontrada na obra de Gisèle Freund, que retorna à França na década de 60 e aposenta a câmera para voltar à escrita. Para nós, o livro de Freund, Photographie et Société, publicado originalmente em Paris em 1974, e dois anos mais tarde lançado em espanhol como La fotografia como documento social, se ajusta de forma ideal à proposta em torno da ‘Fotografia Latino-americana’ (Ferrer, 2016, p. 93).
A autora faz essa afirmação pois o livro da fotógrafa pode ser sintetizado em três grandes frentes: na história, reconstruindo cronologicamente os períodos marcantes da fotografia; na filosofia da arte, pois enquanto fotógrafa profissional também faz uma avaliação técnica e estética das imagens produzidas em cada período e, por último, na sociologia, pois analisa principalmente como os fenômenos anteriores diferem de acordo com a classe social e a herança cultural de cada indivíduo. Essa tríade formulada por Freund torna-se tão importante para o contexto latino-americano que podemos pensar a história da fotografia nesse continente pelo mesmo método, afinal, a aplicação dessa metodologia não se restringe a uma parte específica do globo:
O que queremos ressaltar com estas reflexões a respeito do papel de Freund como convidada dos eventos de 1978 – antes de aprofundarmos na análise dos debates – , é que consideramos que o livro da socióloga franco-alemã pode ser compreendido mais do que como uma fonte bibliográfica específica, como uma porta de entrada para temas que virão a ser abordados desde diversas perspectivas durante as reuniões (Ferrer, 2016, p. 98).
Dessa maneira, as análises teóricas de Freund contribuíram, mesmo que indiretamente, para a construção de pesquisas acerca da fotografia na América Latina. Dessarte, é importante contextualizar que a fotógrafa não via a América Latina apenas como o local em que precisou se esconder na guerra, mas sim como polo importante da produção fotográfica mundial. Mesmo retornando para a Europa, nunca poderia ter esquecido os anos em que viveu por aqui. Durante o período vivendo na América do Sul, Gisèle visitou diversos países e conheceu inúmeras pessoas, registrando todo seu percurso em belas imagens documentais e publicando suas histórias em diversas revistas. Gisèle Freund retornou a Paris somente em 1953, permanecendo lá até o fim de sua vida, escrevendo suas lembranças e trabalhando em diversas obras, principalmente autobiográficas. Em 1980, foi a primeira fotógrafa a receber o Grand Prix National des Arts da França. Freund faleceu no dia 31 de março de 2000, com sua carreira e obras consagradas, e sendo, para muitos, uma das maiores fotógrafas de sua época.
Principais conceitos abordados
As obras de Freund são, de maneira geral, muito interligadas. Todavia, há de se considerar um escrito como o principal de sua carreira, a saber, Fotografia e Sociedade (1974). Na obra em questão, que começa com uma adaptação de sua tese de doutorado, a escritora alemã analisa os aspectos sociais e culturais que formaram a história da fotografia até o momento em que a técnica se expandiu como hobby amador. Sendo assim, os principais conceitos de Freund envolvem as seguintes problemáticas: a fotografia como documento social e como uma afirmação de classe; a fotografia como mercadoria; a democratização artística que a fotografia realizou e as mudanças que a técnica fotográfica trouxe para a modernidade.
1. A fotografia em seus primórdios: Documento social e afirmação de classe
O primeiro ponto a ser levado em consideração por Freund são as movimentações anteriores à ascensão da fotografia. Segundo a autora, o interesse em fotografar os indivíduos da sociedade moderna não foi mero acaso, pois esse movimento deu-se principalmente por conta de técnicas muito populares na Europa antes da criação do daguerreótipo: os retratos em miniatura e o fisionotraço. Ambos eram esforços artísticos que refletiam os ideais predominantes na França desde antes da Revolução Francesa, segundo os quais a classe predominante possuía uma grande necessidade de autoglorificação. Os retratos em miniatura eram pinturas de tamanhos pequenos, uma forma de a aristocracia se afirmar visualmente enquanto classe dominante, e para, além disso, perpetuar a imagem que pretendiam deixar sobre si mesmos. Posteriormente, uma nova classe começa a ascender na Europa, a saber, a burguesia. Dessa forma, “ao fazer o retrato de alguém, um indivíduo das classes ascendentes poderia afirmar visualmente seu novo status social tanto para si mesmo quanto para o mundo em geral” (Freund, 1979, p. 9), assemelhando-se, portanto, aos desejos da aristocracia com o retrato em miniatura. Por todas essas mudanças sociais e ideológicas, deve-se à burguesia parisiense da época a popularização posterior da fotografia, pois a técnica foi primeiramente adotada por esses membros da classe dominante, para depois seguir gradualmente se infiltrando nas classes populares.
É interessante notar a direta aproximação de Freund com a filosofia, pois seguiu caminhos semelhantes aos de Walter Benjamin – na verdade, os dois foram amigos e pesquisavam juntos na Biblioteca Nacional durante o refúgio em Paris. Antes de estudar a própria técnica, ambos montaram uma linha histórico-social para entender o surgimento, a ascensão e a democratização da fotografia, bem como os pontos positivos e negativos de cada uma dessas fases. Tanto em Benjamin como em Freund, o estudo da técnica confunde-se com uma análise social e cultural da sociedade moderna. Outro ponto interessante para atentar é o fato de ambos formularem suas teorias da fotografia no século XX, mas retornando aos seus primórdios, ou seja, ao século XIX, cujo movimento vai de encontro à formulação do conceito de imagem dialética. Sendo assim, seguindo esse conceito, para ambos os pensadores, as imagens não pertencem a uma época fixa, portanto, devem ser vistas de forma descontínua, eliminando linearidades, criando uma mescla entre presente e passado, na qual um lançaria luz sobre o outro.
Walter Benjamin escreveu sobre a tese de Gisèle em dois textos: o primeiro foi em Pintura e Fotografia (1936); e depois publicou uma recensão à tese em 1938. No primeiro texto, Benjamin faz uma interessante nota de objeção metódica em relação a tese de Freund:
“Quanto maior”, escreve a autora, “é o gênio do artista, tanto melhor sua obra reflete, e mesmo na força da originalidade da sua forma, as tendências da sociedade que lhe é contemporânea” (Freund, p. 4). O que sobressai de questionável nessa afirmação não é sua tentativa de circunscrever as consequências artísticas de um trabalho com referência à estrutura social de seu tempo de origem. Questionável é apenas a pressuposição de que essa estrutura apresenta-se sempre sob o mesmo aspecto (Benjamin, 2020, p. 232).
Para Benjamin, esse aspecto poderia mudar com as diferentes épocas, por isso discorda de Freund afirmar que o significado de uma boa obra de arte é sempre concomitante a sua estrutura social do período. Por último, é interessante notar que, por essa afirmação, a filósofa possui traços bem mais claramente marxistas do que Benjamin.
2. O conceito dos “fotógrafos-artistas” e o declínio da fotografia
Nos termos freundianos, a primeira fase da fotografia foi denominada “fotógrafos-artistas”. Trata-se do primeiro decênio da fotografia, ou seja, entre 1839 e 1849, na França, período no qual ela ainda não havia se tornado mercadoria. Essa fase começa a expandir-se quando a necessidade econômica leva os pintores e artesãos a recorrerem à fotografia como meio de sobrevivência, já que a nova técnica fez diminuir bruscamente a procura da população por esses outros tipos de arte. Nesse momento, a fotografia já havia deixado de ser experimental, chegando ao ponto em que os fotógrafos não precisavam de muito conhecimento científico e químico para realizá-la. As ferramentas já estavam sendo fabricadas por indústrias especializadas e os equipamentos fotográficos já podiam ser encontrados em diferentes modelos e preços nas lojas. Tudo cooperava para a rápida difusão da técnica. Todavia, depois que Eugène Disdéri (1819-1889) [Fotógrafo francês que criou os “cartões de visita”, imprimindo mais fotos em menos tempo] conseguiu tornar a fotografia uma produção em massa, diminuindo seu tamanho e seu custo, os primeiros fotógrafos foram substituídos pelos fotógrafos comerciais, e o lucro passou a se sobrepor à qualidade estética. A fotografia se tornou, segundo Freund, tão industrializada quanto os indivíduos que buscavam ser retratados: “Os artesãos individuais estavam sendo substituídos por máquinas […] e a própria sociedade francesa estava se tornando cada vez mais padronizada” (Freund, 1979, p. 19). Mesmo que não explícita, temos aqui uma clara crítica à indústria cultural, no sentido de que a autora busca entender o quanto as modificações econômicas francesas estavam afetando a criação de arte, tirando a produção artística de um local artesanal para a produção em massa, na medida em que precisava atender um público muito maior. Essas modificações, ao invés de privilegiar o estético, dão prioridade ao comercial. Posto isso, aponta-se novamente às proximidades filosóficas de Freund com os pensadores da Escola de Frankfurt.
Uma das grandes marcas da fotografia comercial, segundo Freund, foi a criação dos grandes estúdios especializados em ambientações e retoques. A grande característica tanto das fotografias de Disderi quanto do período em geral era a ausência da expressão individual, algo fortemente presente nas fotografias da primeira fase: “Enquanto os artistas-fotógrafos geralmente enfatizavam a cabeça em seus retratos, os novos fotógrafos fotografavam o corpo inteiro” (Freund, 1979, p. 61). Além disso, os estúdios viraram verdadeiras salas de adereços, dando ao fotografado a oportunidade de fingir ter qualquer personalidade que desejasse e vestir qualquer papel social. O próprio indivíduo parecia um objeto de decoração da foto.
3. A expansão da fotografia: democratização e uso amador
Em 1864, décadas após o primeiro registro fotográfico, a técnica já estava em incrível expansão ao redor do mundo, principalmente enquanto comércio. Diversos países já tinham revistas que falavam unicamente sobre a fotografia; foram criados clubes fotográficos responsáveis pela conexão entre fotógrafos e compradores; os fotógrafos investiram em marketing para expandir seus trabalhos e até mesmo um sindicato foi criado para a técnica. Com essa amplificação, diversos gêneros fotográficos começaram a surgir, como por exemplo, além dos retratos individuais, a encomenda, por parte da população, de retratos de cantores e atores famosos, produzidos no formato de carte-de-visite. Além disso, é nesse período que também começa a surgir a fotografia documental e social, gênero ao qual a própria Gisèle Freund aderiu em sua carreira tardiamente. No final do século XIX, foram desenvolvidas câmeras com uma facilidade tão grande de utilização que os fotógrafos amadores começaram a surgir de todos os lugares. “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”: com esse famoso slogan, a Kodak revolucionou o mercado da fotografia e tornou possível que muitos amadores começassem a tirar suas próprias fotos.
Além da Kodak, outra empresa que revolucionou o mercado fotográfico foi a Polaroid, que causou euforia ao apresentar a câmera de bolso SX-70, capaz de revelar e produzir uma impressão fotográfica final em alguns segundos. Nessa fase, tecnicamente, ninguém poderia mais estragar uma foto. Até mesmo uma criança já sabia como manusear uma câmera, o que fez a população se interessar pela fotografia amadora. Além disso, segundo Freund, a vida se tornava cada vez mais monótona e regrada, dominada por um sistema industrial e tecnológico que apagava cada vez mais a individualidade de uma pessoa. Desse modo, a fotografia acabou atraindo tantas pessoas por lhes dar uma forma de serem criativos e expressarem seus próprios sentimentos e vontades. De acordo com Freund, “Durante a Renascença, dizia-se que uma pessoa culta tinha ‘um bom nariz’. Hoje dizemos que ela tem ‘visão’, pois a visão é agora o sentido mais frequentemente invocado” (Freund, 1979, p. 215).
Conclusão
Além dos escritos teóricos, as vivências práticas de Gisèle Freund fornecem registros importantes do século XX e como a sociedade moderna se transformou com o advento da fotografia. Freund fez questão de evocar o passado, estudando a origem social da fotografia, para dar luz aos seus pensamentos presentes. Foi uma das primeiras a perceber que a fotografia só se popularizou à medida que emergia uma nova classe, a saber, a burguesia, que pela primeira vez alcançou um status econômico e social, buscando desesperadamente perpetuar essa imagem de alguma maneira, usando a fotografia como a aristocracia anteriormente havia usado a pintura. Ademais, Gisèle Freund consegue, assim como muitos pensadores da época, formular todas essas ideias ao mesmo tempo que enfrenta um grande conflito pessoal causado pela ascensão do nazismo. Além de seus escritos teóricos, Freund surpreende por sua história de vida, pois conheceu e retratou as figuras mais influentes do século XX, como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Henri Matisse, André Breton, Virginia Woolf, Jean Cocteau, entre muitos outros. Além de ter se aventurado pela fotografia documental, explorado vários países, principalmente na América Latina, continente onde ficou refugiada durante a Segunda Guerra. Sem dúvida, toda essa experiência foi ponto-chave para os seus escritos apresentarem questões tão pertinentes e atuais. A metodologia de Freund abre caminhos para pensar questões que caminham junto de modalidades contemporâneas, como a fotografia digital. Por último, é de grande importância entender como os estudos interdisciplinares da escritora, que ora era socióloga, ora filósofa e ora fotógrafa, fortalecem suas pesquisas, que em momento algum se registrem em uma área específica do saber. A convergência entre filosofia, sociologia e fotografia conferem um caráter e uma grandiosidade única a Gisèle Freund, e que, sem dúvida, amplia nosso campo de visão sobre como uma técnica moderna como a fotografia consegue suscitar problemáticas em todos esses sentidos.
Referências bibliográficas
Obras da filósofa:
Freund, Gisèle. (1968). Au pays des visages, trente ans d’art et de littérature à travers la caméra de Gisèle Freund: exposition-spectacle du 9 avril au 5 mai 1968. Paris: Musée d’art moderne.
Freund, Gisèle. (1979). Photography & Society. Boston: David R Godine Pub.
Freund, Gisèle. (1985). Itinéraires. Trad. de João Tiago Proença, Paris: Albin Michel.
Freund, Gisèle. (1970). Le monde et ma caméra. Paris: Grand format femme.
Freund, Gisèle. (1977). Mémoirs de l’Oeil. Trad. de João Tiago Proença, Paris: Éditions du Seuil.
Literatura secundária:
Cosnac, Bettina de. (2008). Gisèle Freund. Ein Leben. Hamburgo e Zurique: Arche Verlag.
Fernández, Silvia Pérez. (2019). Fotografía y sociedad : a partir de Gisèle Freund. Studium, Campinas, SP, n. 41, p. 20–32. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/studium/article/view/12615. Acesso em: 20 ago. 2025.
Masnatta, Clara. (2021). Grete Stern and Gisèle Freund: Two Photographic Modernities in Argentine Exile. Paris: Artelogie, no. 16.
Meeker, Carlene. (1999). “Gisèle Freund”. Jewish Women’s Archive. Disponível em: https://jwa.org/encyclopedia/article/freund-gisele. Acesso em: 01/02/2025.
Freund, Gisèle; Jamis, Rauda. (1991). Portrait: Entretiens avec Rauda Jamis. Trad. de João Tiago Proença, Paris: Des Femmes.
Villares, Mónica Ferrer. (2016). “Feito na América Latina 1978: teoria e imagem, um debate reflexivo sobre a fotografia da ‘Nossa América’”. Recurso online (488 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: 20.500.12733/1629451. Acesso em: 01 ago. 2025.
Links relevantes
Site para busca do acervo digital de Gisèle Freund: https://images.grandpalaisrmn.fr/
Biografia de Freund no site da Universidade de Frankfut: https://www.uni-frankfurt.de/68263528/Gis%C3%A8le_Freund__1908_2000