Brasil x Costa do Marfim – A anatomia de um gol
Esse foi com o pé mesmo
Fonte: www.fifa.com
Brasil e Costa do Marfim, 24 minutos do primeiro tempo, Robinho invade a intermediária densamente povoada de jogadores da Costa do Marfim, toca para Luis Fabiano que, de calcanhar, passapara Kaká. O meio-de-campo limpa um pouco a jogada e devolve para Luis Fabiano que manda uma bomba por cima do goleiro.
Ao receber o serviço do Kaká, o artilheiro (agora sim, pelo menos) acompanha com os olhos a bola e registra mentalmente a posição dos zagueiros e do goleiro.
Feita a mira e encontrada a oportunidade o camisa 9 prepara o chute contraindo bíceps femurais e glúteos direitos, o equilíbrio é garantido pelos braços erguidos pela contração dos deltóides, nos ombros.
Bendito seja o fabuloso quadríceps do Luis Fabiano
Fonte: auladeanatomia.com
Neste momento, impulsos nervosos cefálicos descem a coluna vertebral até um alargamento nervoso no início das vértebras lombares, dali saem diversos nervos que seguem por dentro das cavidades vertebrais até a altura das vértebras lombares 2 a 4, quando deixam a coluna e formam um nervo femoral. Neurônios motores destes nervos irão inervar o quadríceps, o músculo da parte da frente da coxa. Axônios terminais destes neurônios descarregam substâncias de comunicação em um estreito espaço entre a célula nervosa e a muscular chamada de fenda sináptica, estas substâncias de comunicação, neste caso a acetilcolina, irão fazer com que proteínas na membrana da célula muscular da coxa do Luis Fabiano se abram, deixando entrar uma grande quantidade de íons de sódio e expelindo íons de potássio, um efeito semelhante a um choque elétrico em escala microscópica. A consequência deste “choque”, espalhado pelo interior da célula através de canais especializados, é que um reservatório dentro da célula muscular irá jogar no citoplasma íons de cálcio, um elemento essencial para a contração muscular em si.
O que faz a perna do Luis Fabiano se estender e acertar com o peito do pé a famigerada Jabulani, mandando-a para a rede é um encurtamento do quadríceps, que começa na parte alta do fêmur e na bacia e termina na patela com prolongamentos que vão até a tíbia, um dos ossos da canela. Este encurtamento é o resultado da contração de inúmeras células musculares. No interior delas há um arranjo de proteínas organizadas em filamentos chamadas actina e miosina, os filamentos mais grossos são de miosina e os mais finos de actina, um desliza sobre o outro em ciclos de reações químicas levadas a cabo pelo cálcio e por ATP, a molécula energética. Para que a actina deslize sobre a miosina, uma parte da miosina precisa se encaixa no filamento de actina e puxá-lo, o problema é que exatamente esta parte da actina fica coberta por um outro filamento, a tropomiosina. Ao cair no citoplasma da célula muscular o cálcio se gruda a uma molécula chamada troponina, que arrasta a tropomiosina para o lado, descobrindo o local onde a actina irá se ligar. Actina e miosina se conectam, a miosina dobra a parte da sua estrutura que conecta as duas proteínas e faz a actina caminhar sobre a miosina. Depois, uma molécula de ATP é quebrada para desfazer a conexão e disponibilizar a miosina para repetir o movimento, contraindo ainda mais o músculo da coxa.
Como junções celulares no músculo espalharam o que eu chamei aqui de micro choque por todo o quadríceps, muitas células são contraídas ao mesmo tempo, dando muita força ao chute. A bola foi tão rápida que o goleiro marfinense ergue os braços depois que ela já tinha passado e a bomba do Luis Fabiano explodiu na rede encerrando seu jejum de seis jogos.
Outros dois gols Brasileiros se seguiriam e um vacilo da nossa defesa permitiria umzinho da Costa do Marfim, mas o que importa é que estamos na próxima fase.
O adaptativo é ser feliz e mais nada
Outro dia li um artigo do Alex Leal, Editor do jornal Rir & Pensar, uma edição independente distribuída gratuitamente em Brasília, intitulado “O bom é ser feliz e mais nada”. No artigo o Alex se remete a outro publicado na Time pelo Robert Wright, autor de uma das pedras angulares da Psicologia Evolucionista: “O animal Moral”.
Em seu artigo, Wright propõe que tudo o que nos faz feliz assim é por representar uma vantagem adaptativa, ou seja, favorecer nossa sobrevivência, redução dos custos energéticos para realizar tarefas ou acesso à reprodução. Assim, uma bela refeição nos alegra porque nutre e dá energia para encararmos a vida, sexo deixa feliz porque pode levar à reprodução, conseguir um emprego melhor deixa feliz porque vemos nele um salário melhor (sobrevivência), redução das pressões do emprego anterior (redução de custos) e quem sabe até umas colegas de trabalho gostosas (reprodução). De fato, existe uma parte de nosso cérebro responsável exclusivamente pelo mecanismo de recompensas, é a amigdala. Comemos um doce, a amígdala recompensa; beijamos na boca, a amigdala recompensa; corremos, de novo a amígdala; ganhamos dinheiro numa máquina caça-níquel; lá está ela de novo. Aí surgem os desvios, todo vício é uma exacerbação de uma amígdala ansiosa. Obesidade, drogadição, obsessões, todos são resultados desse mecanismo de recompensa nos levando a repetir comportamentos que causaram a felicidade uma vez.
No artigo da Rir & Pensar o Alex protesta que este mecanismo não explica tudo, porém, ele elenca dois exemplos: um homem que permanece fiel a seu time mesmo que ele perca repetidamente e uma mulher que mesmo com calos e dores nas pernas continua usando seu salto alto. Acontece, Alex, que os mecanismos de recompensa não são tão óbvios às vezes. Talvez a maioria das vezes! Isso que nos faz tão interessantes.
Vamos começar pelo exemplo do salto alto, apesar dele causar dor e calos ele gera também dois efeitos, torna a mulher mais alta e aumenta seu bumbum. Ao ficar mais alta uma mulher pode sobressair entre as outras, atraindo o olhar e interesse de um parceiro potencial. Quanto mais pretendentes uma mulher tem, mais opções ela terá para escolher. Nem preciso enfatizar muito o efeito dos saltos sobre o traseiro, né. É que apoiar-se na ponta dos pés faz a mulher projetar-se para a frente, esse desvio postural tem que ser compensado por uma curva mais acentuada na lombar, a famosa lordose, o que resulta em um derrière mais empinado, fator aparentemente utilizado por nós homens para averiguar a idade de uma pretendente, e quanto mais nova, mais fértil. Está favorecido aí o uso do salto alto a despeito de seus custos em dores e calos. Alex, não se preocupe, continuaremos sendo enganados, no último encontro de etologia assisti uma palestra sobre a avaliação da idade de mulheres no qual a pesquisadora sugeriu que (estudos ainda em fase preliminar) determinadas cores de batom podem disfarçar a idade das bocas que o portam.
E quanto ao time de futebol que só perde, mas continuamos fiéis? Bem, primeiro devemos nos perguntar o que é um jogo de futebol. Há um ensaio incrível num dos últimos livros de Carl Sagan no qual ele compara esportes de equipe com guerras ritualizadas. A copa do mundo é uma guerra ritualística em que várias nações se enfrentam e apenas uma sai vencedora, mas é uma guerra segura, sem mortos ou feridos (graves). Uma outra pesquisa feita pelo Instituto de Psicologia Aplicada de Portugal comparou a quantidade de testosterona, o hormônio da agressividade, entre jogadores prestes a entrar em campo e soldados prestes a irem para o front, convenientemente semelhantes. Agora imagine que sua tribo vai a uma guerra, perde uma, duas, dez batalhas, de repente você troca sua tribo derrotada por outra invicta. Não se faz isso, isso não deixa ninguém feliz! Não deixa feliz pelo fato de sermos uma espécie altamente social, dependemos do grupo para a nossa sobrevivência, e virar a casaca assim pode nos trazer grandes problemas com o grupo. Assim, mesmo que nosso time do coração só nos dê desgostos, o fato de não sofrermos sozinhos, de partilharmos nossa dor e podermos contar com outros malfadados como nós nos deixa felizes. Precisamos pertencer a grupos para sermos felizes, nem que seja um grupo de pessoas que apóia um determinado exército numa guerra ritualizada em que a vitória significa colocar um objeto esférico o maior número de vezes dentro de uma área retangular guardada pelo inimigo.
Há coisas muito mais estranhas que nos deixam felizes e lógicas ainda mais retorcidas para identificar qual a vantagem de termos prazer naquilo. Correr 41,2 km dá prazer porque, a princípio, se esforçar fisicamente significava abater mais caças e ter mais alimento. Andar de montanha-russa dá prazer depois que saímos dela porque passamos próximo da morte, mas sobrevivemos. Esses dias um amigo voltou de viagem todo alegre porque tinha acabado de tirar seu pós-doutorado. A titulação não lhe conferiria um salário maior, outro emprego, não favoreceria significativamente a conquista de recursos, era apenas uma patente. Mas a patente é um símbolo carregado de significados, aquele diploma em pele de cabra emoldurado em seu laboratório reconhece a sua tenacidade, sua experiência e sua inteligência, isso sim é felicidade.
Alex, independente de ser adaptativo ou não, o bom é ser feliz. A esperança e a fé são desejos da amígdala de voltar a ter aquele tesão que uma vez nos ocorreu por um coquetel de neurotransmissores que nos invadiram o sistema nervoso, aquele barato licérgico auto-produzido. Repetimos as alavancas que nos deixam felizes, evitamos as que nos deixam tristes. Somos todos ratinhos em uma caixa de Skinner sentimental, sim, mas isto não tira o mérito de nossas alegrias.