Os meus dias já foram mais pequenos
Actualizado com artigo de 2020 em 18 de Fevereiro de 2021.
Aproveito-o agora para para ser publicado aqui e também no jornal Sul Informação).
Quando crianças os dias parecem durar e durar, havendo tempo para (quase) tudo. Há tempo de sobra para brincar, rir e fazer tudo e mais alguma coisa.
À medida que ganhamos rugas e dores nas costas, a divindade do tempo infinito encolhe e parece que o tempo já não é o que era.
Ele não chega para nada, que está cada vez mais curto, que o tempo corre mais que a gente.
Quantas vezes já escutámos “O meu dia deveria ter 25 horas” ou “Só queria mais umas horas por dia”.
As mudanças de percepção que a idade traz à duração dos dias são isso mesmo, mudanças na percepção.
Mas os dias já foram mesmo mais pequenos. Por outras palavras, a Terra já demorou menos tempo a efectuar o seu movimento de rotação.
O nosso planeta já teve dias mais pequenos do que as 24 horas a que estamos habituados.
A responsabilidade pelo aumento dos dias cabe às marés, sendo estas provocadas pela atracão gravitacional da Lua sobre o nosso planeta.
De forma breve: a atracão da Lua sobre a Terra origina acumulação de água do mar no lado que está diante dela (maré alta) e também do lado terrestre oposto*. Simultaneamente existirão locais onde essa água “faltará”, observando-se nestes locais a maré baixa.
Como o sentido da rotação da Terra é o mesmo que o da translação da Lua, mas muito mais rápido, gera-se um efeito de fricção da água do mar com os fundos oceânicos, que, aliado à inércia da própria água, abranda a rotação da Terra.
Um efeito semelhante também é exercido pela Terra sobre a Lua. Como a Terra tem muito mais massa do que o nosso satélite, o nosso planeta já conseguiu deter o seu movimento de rotação, motivo pelo qual vemos sempre a mesma face da Lua.
Não entrarei em maiores detalhes sobre a mecânica celeste deste processo, mas refiro apenas que a Terra sofre actualmente um aumento nos seus dias de cerca de 1.8 milissegundos por século – alguns autores referem 2.3 milissegundos por século.
Obrigado pela ajuda, dirão os mais necessitados de dias maiores, em tom de sarcasmo.
A estes responderei que simulações feitas por computador permitiram deduzir que os dias tinham, quando a Terra estava no seu início, apenas 6 horas. Aquilo que a maior parte de nós passa hoje a dormir era a duração de um dia inteiro há cerca de 4.5 mil milhões de anos.
Mais: a análise do ritmo do crescimento diário de corais fossilizados, por exemplo, permitiu deduzir que a duração dos dias há 400 milhões de anos era de 22 horas.
E agora, caros desejosos-de-dias-maiores, estão satisfeitos com a vossa situação actual? Dias com 24 horas?
Era muito pior há milhões de anos.
Sim, porque, ao contrário de nós à medida que envelhecemos, os dias da Terra vão ficando cada vez maiores. Literalmente.
* por motivos de simplificação para o caso que se descreve omite-se o efeito do Sol.
Referências:
Williams, George E. (2000). Geological constraints on the Precambrian history of Earth’s rotation and the Moon’s orbit. Reviews of Geophysics, 38 (1) pages 37–59.
Imagens:
1 – La Voyage dans la Lune de Georges Méliès
2 – Daqui
3 – Daqui
4 – atualização com artigo de 2020 e informação paleontológica.
5 – artigo de divulgação que resume o artigo 4.
(Este texto foi escrito como a minha colaboração para a ação interCiência, em que eram trocados de forma anónima textos entre blogs. Este texto foi a minha “oferta” para o blog Curioso Realista, onde foi publicado originalmente.
Escuva terras, ou o drama de se chamar toupeira
Na terra do meu pai havia vários montes que sempre me intrigaram. Quando digo na terra, é mesmo na terra, essa que se lavra e suja os pés.
A outra, o sítio onde se cresce ou apenas se nasce, não importa para a história, apenas que era vizinha da de Aquilino.
Os montes de terra apareciam sem eu perceber como nem porquê. Surgiam nos lameiros, terrenos junto a cursos água, bons para erva fresca e sestas olhando vacas pastar.
Nos lameiros, aqui e ali, o verde era manchado de castanho, quais pintas em cara sardenta. O caos de cores alterava-me a ordem que tentava pôr em tudo: o lameiro era verde, ladeado pelo ribeiro, escuro pela sombra das árvores que aí se encostavam e, do outro lado, um outro verde, rasteiro, de um batatal.
E depois os montes castanhos.
Essas construções desordenadas, pequenos altos de terra, moeram-me o juízo durante os verões que passava nas Terras do Demo.
Um dos dias de Agosto, em brincadeiras com o Luciano, perguntei-lhe que raio era aquilo feito de terra, no meio dos lameiros.
“Escuva terras”, largou-me ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
“Ah…que era terra já eu sabia…”, avancei, tentando ver se o outro se explicava melhor.
“São uns ratos danados, esses bichos. Sempre a fuçar, a fuçar na terra. Depois dá nisto.”
“A maneira de dar cabo deles é cortar um bocado de plástico, enterrá-lo nesses montes com o gargalo para cima que o assobio do vento na garrafa dá logo cabo deles!”.
Toma e embrulha, faltou-lhe dizer.
Toupeiras.
E não deviam gostar que lhes assobiassem nas varandas, pensei eu.
Esta história foi assim mesmo, na sua maioria, e já lá vão mais de 30 anos.
Não tenho a certeza se seriam toupeiras europeias (Talpa europaea) as escuva terras que partilhavam o lameiro do meu pai, mas é bem provável.
As toupeiras são mamíferos que pertencem à ordem Talpidae sendo mais facilmente observáveis as suas construções do que elas próprias. Vivem a maioria da sua vida debaixo do solo, escavando e construindo túneis de forma solitária, e defendendo agressivamente o seu território à excepção da época de acasalamento. Nessa altura, os machos tentam literalmente interceptar os túneis construídos pelas fêmeas, iniciando-se então o acasalamento.
As patas anteriores, com grandes garras, permitem-lhes o seu modo de vida subterrâneo, alimentando-se sobretudo de insectos ou minhocas, o seu manjar predilecto.
A anatomia especial deste animal, nomeadamente a capacidade de articulação do úmero e o grande desenvolvimento muscular nesta zona, associado às enormes garras e um osso semelhante a um polegar, colocam este animal entre os grandes construtores zoológicos. A maioria da força das patas anteriores é exercida a partir do antebraço, rádio e cúbito, sendo também necessária a colaboração das patas posteriores para empurrarem a terra que vai sendo escavada.
As construções das toupeiras garantem-lhes alguma inimizade por parte dos agricultores que se esquecem que os túneis construídos pelas toupeiras aumentam não só o arejamento dos terrenos, como contribuem para uma melhor fertilização dos mesmos.
A capacidade física destes animais é extraordinária, tendo sido observado uma toupeira, com cerca de 80 gramas, construir quatro montes de terra com cerca de 15 quilos em apenas 90 minutos. Se fizéssemos a comparação para a nossa espécie, seria o equivalente a um ser humano de 70 quilos escavar 10000 quilos numa hora.
Não consigo deixar de imaginar estas bichezas a trabalharem para o Metro de Lisboa…
Imagens:
ARKive – http://www.arkive.org
Hall, B. K. (ed). 2007. Fins into Limbs: Evolution, Development, and Transformation. Chicago: University of Chicago Press, 433 pp.
Vídeo – ARKive